Indústria cultural da antipolítica – o caráter manipulador
Discursos e manifestações revelam o caráter manipulador como parte fundamental da antipolítica de nossa época. Política é a capacidade humana de criar laços comuns em nome da boa convivência entre todos, o que requer defesa de direitos para todos e respeito por cada um. Antipolítica, por sua vez, é a destruição orquestrada dessas potencialidades.
Importante ter em vista que a luta pela defesa de direitos em qualquer sociedade inscreve-se no cenário da valorização tanto do comum quanto do singular que nele floresce. O que chamamos de comum exige a singularidade que é, ao mesmo tempo, a função do “outro” como uma dimensão essencial na vida de cada um. Ora, o comum – aquilo que construímos entre nós em termos políticos – é feito de singularidade e de alteridade. O comum não é simplesmente o coletivo, pois a antipolítica também implica algo de coletivo. Podemos dizer que o comum une, enquanto o coletivo simplesmente reúne. A união é diferente da simples reunião.
Hoje em dia ouve-se falar da diferença teórica entre massa e multidão. Enquanto a massa seria amorfa e manipulável, a multidão seria feita de singularidades que se expressam politicamente em busca do comum. Para usar a distinção anterior, as multidões são políticas, as massas antipolíticas. A multidão é a união das singularidades, a massa a reunião das individualidades. A multidão preserva a alteridade, a massa aniquila a singularidade. A massa é manipulável, a multidão não. A massa é autoritária, a multidão emancipada. A massa é regressiva, a multidão progressiva. A massa precisa de um líder que a conduza, a multidão só precisa do desejo de cada um.
É verdade que as ruas foram ocupadas por multidões desde 2011 pelo mundo afora e no Brasil em junho de 2013. No entanto, um fenômeno interessante precisa ser levado em conta. Retomando a diferença entre união e reunião, entre comum e coletivo, podemos dizer que as manifestações nas ruas foram um misto de massa e multidão. Justamente por conta de seu caráter híbrido é que se explica a sua aparência. O que, no caso das multidões remeteria à grandiosidade sublime e por isso, seria algo impressionante, no caso das massas remeteria a uma monstruosidade apavorante como vimos em manifestações fascistas nas avenidas de algumas grandes cidades tais como São Paulo.
A manifestação antipolítica depende de líderes manipuladores (deputados, torturadores, apresentadores de televisão, pseudo-jornalistas são vistos nesse papel em nossos dias). É o caráter manipulador que opera na formação das massas. Os meios de comunicação tem um papel fundamental nesse processo: a propaganda disfarçada de jornalismo, contudo, não consegue esconder o seu fascismo, mas consegue transformar a visão de mundo fascista (de ódio e negação da alteridade) em valor que é louvado por quem nunca pensou em termos políticos e, por isso mesmo, cai na armadilha antipolítica muitas vezes pensando que se tornou um cidadão.
O analfabeto político é antipolítico
O que leva um indivíduo a reunir-se em um coletivo sem pensar com cuidado crítico nas causas e consequências dos seus atos configura aquilo que chamamos de analfabetismo político. Mas, no caso dos personagens jovens que surgem atualmente, tais como Kim Kataguiri ou Fernando Holiday do fascistóide Movimento Brasil Livre, está em jogo a forma mais perversa de analfabetismo político. Aquele de quem foi manipulado desde cedo e não teve chance de pensar de modo autocrítico porque sua formação foi, no sentido político, “de-formação”, a interrupção da capacidade de pensar, de refletir e de discernir.
Theodor Adorno no famoso texto “Educação após Auschwitz” (1969) falava de sua preocupação quanto à repetição do nazismo. A educação depois da catástrofe teria um papel como política e como autocrítica. Por meio dela as pessoas poderiam investigar a formação da própria subjetividade perguntando-se como se tornaram quem elas são. Essa é uma das perguntas mais importantes que precisamos fazer hoje quando nos damos conta dos processos de “dessubjetivação” ocultos em crenças de livre expressão e liberdade. Trata-se de uma pergunta ética por excelência, uma pergunta que, levada a sério, forja a política e impede a antipolítica.
Se pensarmos em figuras antipolíticas tais como deputados homofóbicos, que fazem da homofobia sua bandeira delirante, ou em outros golpistas corruptos que com o poder governamental nas mãos propõem todas as formas de retrocesso social, podemos ficar muito preocupados, pois o governo brasileiro atual está cheio de líderes fascistas com alto poder de manipulação das massas. São personagens manipuladores criados e, eles mesmos, manipulados pelos meios de comunicação, mas que tem uma vasta experiência a oferecer a estes mesmos meios que os manipulam. O acordo entre esses indivíduos manipuladores e as instituições é perfeito. Esses indivíduos manipuladores não são autônomos, são peças de uma engrenagem que os vende como heróis e, de modo corrompido, se servem dela. São os corruptos de um sistema corruptor. Vendo-os em ação poderíamos pensar que o “caráter manipulador” seria coisa de homens velhos, forjados pela ditadura militar, por algum tipo de educação fria e violenta.
Isso é verdade. Mas o que dizer dos jovens que discursam de maneira fascista? Jovens manipulados, usados pela indústria cultural da antipolítica que tem seus empresários e patrocinadores, sabem o que dizem? Creio que não. Manipular jovens e crianças é o que há de mais perverso, pois se trata de uma manipulação em segunda potência, aquela que opera sobre quem não tem como se defender. Por outro lado, essa manipulação implica a morte da esperança no futuro simbolizado por jovens e crianças. A indústria cultural da antipolítica criminaliza e mata jovens negros e pobres (a redução da maioridade penal que ameaça a juventude negra e pobre brasileira hoje é a face legal da matança de jovens negros e pobres nas periferias) enquanto elege outros jovens pobres (e, inclusive, negros como é o caso de Fernando Holiday do Movimento Brasil Livre) a heróis fascistas manipulando a opinião pública quanto ao sentido das intenções e interesses nesse tipo de jogo.
Neste sentido, o capitalismo é altamente pedófilo, no sentido de manipular as consciências imaturas e inocentes. Toda a manipulação das crianças e dos jovens pela propaganda e pelos meios de comunicação configura o “caráter pedofílico” do capitalismo em sua fase atual.
A irresponsabilidade que configura a antipolítica, no entanto, reúne a todos esses “líderes” – sejam velhos, sejam jovens – dispostos a manipular massas.
Somente a união em outra direção, contra o fascismo em nome da democracia, pode mudar o rumo perverso da história que se desenha hoje.
P.S.: um passeio na história da juventude hitlerista nos serviria de espelho hoje? Remeto ao texto de Ana Maria Dietrich sobre A juventude hitlerista à brasileira, para quem quiser olhar a história da questão.