Indígenas isolados: a defesa de uma linha de distância

Indígenas isolados: a defesa de uma linha de distância
O ancião Cari Tenharim, liderança de seu povo no sul do Amazonas (Foto: Reprodução/Youtube Instituto Socioambiental)

 

Entre indígenas, há aqueles que são chamados de isolados ou em isolamento voluntário. Apesar de serem isolados, o voluntário está longe de corresponder ao que acontece na realidade: evidentemente, nos modos efetivados, seus isolamentos não são voluntários. Ou melhor, se são voluntários, de modo geral, é apenas em segunda estância, como decorrência majoritária de um contato anterior inteiramente traumático, involuntário. Deles, poderia ser dito que são indígenas em isolamento involuntário ou que, havendo um voluntarismo possível nesses casos atuais de isolamentos, ele, quase sempre, é reativo à uma violência anterior que lhes fora causada, não apenas, mas sobretudo, pelos brancos ou pelos não indígenas, com os quais, como proteção, por medo justificado, passaram a recusar o contato. Esse contato recusado com os não indígenas, mas também com outros povos da floresta, se deve, igualmente, à busca da preservação possível de suas autonomias em relação a outros povos e de seus equilíbrios comunitários materiais e simbólicos.

O tópico 8 da “Declaração de Belém sobre povos indígenas isolados”, de novembro de 2005, decorrente da Aliança Internacional para a proteção dos povos indígenas isolados, chama atenção, junto com sua “condição de debilidade, vulnerabilidade [e] desproteção”, para a flagrante “assimetria desses povos frente aos Estados e as sociedades nacionais” que “ameaça e põem em risco os seus direitos”. Melhor seria chamar esses que reagem à violência com o isolamento – ou que se preservam por vontade própria – de indígenas em fuga, indígenas fugitivos, indígenas em rota de escape, indígenas em busca de varadouros de fuga, indígenas que, altamente vulnerabilizados, debilitados e desprotegidos, tentam, acossados, resistir protegendo-se e se refugiando do encurralamento continuamente progressivo a que são submetidos para poderem sobreviver de modo minimamente correspondente às suas formas de vida tradicionais sem serem violentados nem assassinados. Eles ainda poderiam ser chamados de ameaçados, vivendo constantemente em estado de risco.

Seja como for, em qualquer desses casos, o modo de denominação ou de atribuição é dado por não indígenas, sobrepondo a eles nossas maneiras de os ver, nossas maneiras de compreendê-los, sem poder receber o desconhecido de como eles se veem, se autodesignam ou se autodeterminam. E, ainda mais, de como nos veem. Mesmo nisso, não saímos, portanto, da história colonialista e do que desde então decorreu. Se tais indígenas vivem em isolamento, em zonas de refúgio cada vez menores onde ainda conseguem minimamente se amparar em uma situação emergencial, não é por uma autodeterminação exclusiva. Em outras palavras, o isolamento em que vivem é um modo de relação com os não indígenas, mesmo que em busca de evitar o contato com o branco que, infelizmente, encurralando-os, inclusive com os barulhos cada vez mais próximos e árduos das máquinas, não quer permitir tal preservação de distância, aproximando-se cada vez mais (a pé, em barcos, tratores, aviões, helicópteros…) para se apropriar da floresta, de suas árvores, de seu solo, de seu subsolo, de seus animais, de suas pessoas, de suas línguas, de suas tradições, de suas cosmopoéticas, de suas cosmofilias, de suas cosmopolíticas, enfim, de suas vidas.

A angústia dessa solidão em rota de escape e em estado constante de ameaça, a angústia desses que para nós vêm de tão longe que nos são, na maior parte das vezes, totalmente desconhecidos, a angústia desses que chegam do aniquilamento de constituições de mundos e de modos de povoar a terra bem diversos dos com que estamos acostumados a viver e a lidar, a angústia dos ameaçados e dos que vivem constantemente em estado de risco de seus direitos pode ser comovidamente lida ou ouvida na história e no canto de Cari Tenharim tal como contados por Karen Shiratori no texto “O homem que falava cantando: um panorama da presença de povos indígenas Kagawahiva em isolamento na bacia do rio Madeira”, no livro Cercos e resistências; povos indígenas isolados na Amazônia brasileira (Instituto Socioambiental).

Antes que ele falecesse em 2019 com mais de 100 anos, sendo a pessoa mais velha de seu povo, tendo vivido muitos tempos distintos e acompanhado muitas transformações, Cari Tenharim recebeu Karen Shiratori com uma equipe para uma conversa filmada visando uma série de documentários sobre os crimes cometidos durantes os anos da ditadura militar contra povos indígenas. Devido à idade avançada e à frágil saúde, apesar do esforço do ancião, a conversa era difícil de se sustentar, os pensamentos intermitentes, o fôlego, curto, a fala, confusa. O corpo cansado se sobrepunha à fluência do simbólico. Silêncios e lágrimas ocupavam os lugares das palavras. Percebendo a extrema dificuldade, para não sobrecarregarem Cari Tenharim, Karen Shiratori e a equipe, delicadamente, passaram a entrevistar seu sobrinho. Foi quando o ancião “começou repentinamente a cantar e os cantos se sucederam, sem interrupção”, tendo sido “apenas por meio dos cantos que Cari conseguiu resgatar sua memória e expressar o que a fala não mais permitia”.

Antes de colocar um fragmento desse canto que antecede à fala, ou que, vindo depois de sua impossibilidade, diz o que, traumático, a fala já não pode dizer, em seu ensaio, Karen Shiratori oferece uma explicação necessária: “Com a ocupação das terras dos povos kagwahiva por não-indígenas e suas máquinas ruidosas, muitos de seus parentes fugiram com medo. Foram em busca de refúgio em lugares afastados dos invasores que os coagiam a trabalhar em troca de nada ou parca mercadoria, raptavam seus filhos, violavam as mulheres, os deixavam perecer de suas doenças sem oferecer socorro. Assim, foi nessa época que muitos kagwahiva espalharam-se nas matas, decididos a deixar para trás os conflitos, mas também os seus. Contudo, os cantos do ancião, em consonância com os relatos dos demais Tenharim, evidenciam que permanece muito viva a lembrança da partida dos que hoje são chamados de ‘isolados’, como Anã, irmã de Cari, conhecida por Cunha’uwa pelas gerações mais jovens; Kaidjuwa e sua família; o chefe Kwandudjuwa do clã Taravé, para citar somente alguns dos principais grupos mencionados”. Tais lembranças de muitas mortes de indígenas pelos não indígenas vêm nos cantos com o medo de um novo extermínio dos que foram para as matas, aqueles que, como dito por uma liderança feminina tenharim, “ficaram para trás”.

Para Cari Tenharim falar daqueles que “ficaram para trás” e dos brancos que os fizeram ficar para trás, para ele falar do desespero perante a real ameaça do desaparecimento de seus parentes e de seu povo, é preciso o canto, que vai “para atrás” da fala ou para depois de sua impossibilidade. Cari Tenharim canta para conseguir dar conta da memória – quase impossível – do acontecimento doloroso, da memória de um real sofrido a uma distância inaproximável senão pelo canto. Dessas lembranças, vem o único fragmento do canto que aparece no texto – imagino, ou ao menos desejo, que outros momentos do canto virão na série documental. Um pequeno trecho do canto foi traduzido por seus sobrinhos:

 

Os brancos estão fechando o cerco, perseguindo os Kagwahiva que estão distantes.
Eles dependem da gente para defendê-los.
Se os madeireiros matarem os parentes, eles vão desaparecer.
Cada dia mais, os madeireiros ameaçam os Kagwahiva.
Eu conheci essas pessoas que estão no mato.

 

 

O fragmento cantado por Cari Teharim é suficiente para nos mostrar que, anteriores à fala ou a ela posteriores – mas nunca coincidentes com ela –, o canto e a poesia são lugares privilegiados de constante elaboração de um pensamento dolorido a lidar diretamente com o trauma deixo pelo horror do vivido. Nele, não se trata de modo algum da colocação de uma essência ou de uma identidade indígena da qual se poderia apropriar nem do imaginário de uma origem nativa, pura, isolada, descontaminada, livre. Trata-se, antes, de um conjunto atual e potencial dos efeitos das vicissitudes de nossa história a se perpetuar nos corpos e nas vidas dos mais vulnerabilizados; da memória atual e potencial do sofrimento causado por nosso passado colonialista atualizado na tensão entre os neocolonizadores de todas as espécies e os mais precarizados, no caso, os que “ficaram para trás” em fuga da violência sofrida pelo contato anteriormente estabelecido e outros sobreviventes que, traumatizados, já não conseguem falar senão pelo canto, exatamente quando são levados a, apesar do esforço, terem de abrir mão da fala, que, agora impossível, insiste em lhes faltar.

É evidente que os que “ficaram para trás”, ou aqueles de quem no poema são ditos “os que estão distantes”, já trazem consigo a presença dos madeireiros mencionados e muitos outros que não se cansam de persistir cada vez com mais força, inclusive, e sobretudo, o Estado. O canto trás tanto a explicitação da ameaça quanto da necessidade da defesa, na qual ele se inclui. Longe de qualquer neutralidade, é em tal interstício que o poema se coloca, tomando uma posição contra os que estão fechando o cerco assassino e a favor dos parentes que, isolados, querem sobreviver. No poema ou no canto, há o testemunho – se não fossem eles, impossível de ser prestado – de que o “cerco” do europeu-branco-colonizador atualizado no brasileiro-neocolonizador-neoliberal está se fechando a ponto de praticamente não se conseguir mais estabelecer qualquer distância dele, ou seja, a ponto de o que lhe é diferente estar em estado de quase total desaparecimento.

Com o fechamento do cerco, com esses humanos que predam, mais que todos, outros humanos, animais e a natureza, mesmo se a floresta permanecer, será de modo cada vez mais precário, levando um ou outro sobrevivente a não conseguir mais resguardar suas distâncias dos não indígenas, tendo mesmo que viver conosco, ao nosso modo. Tanto o ficar para trás quanto o canto fazem parte, portanto, de um gesto de resistência ou de uma política de resistência pela fuga e/ou pela memória do resguardo mais do que necessário da distância. Quando, ao fim da passagem, Cari Teharim canta “Eu conheci essas pessoas que estão no mato”, unindo-se aos que “ficaram para trás”, vinculando-se a eles, ele quer defender, a todo custo, o traçado de uma linha de distância do cerco que está praticamente fechado.

Entre exemplos desses indígenas em tentativa de escape dos não indígenas ou desprotegidos, há dois, registrados em filmes, que estão, certamente, entre os mais trágicos: 1) o chamado “índio do buraco”, que habita oito mil hectares da Terra Indígena Tanaru, em Rondônia, e vive sozinho pelo menos desde 1996 (quando seus últimos poucos parentes foram assassinados), é, muito provavelmente, mesmo tendo sofrido um atentado à bala em 2009, o sobrevivente exclusivo de um povo que, exterminado por pistoleiros de fazendeiros, desaparecerá com ele levando o enigma dos buracos escavados no chão das pequenas choças de palha – ele, que recusa qualquer contato, fora filmado no filme Corumbiara, de Vicent Carelli; 2) conduzido pelo sertanista Jair Candor, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruema (vinculada à Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) e ao Sistema de Proteção aos Índios Isolados e de Recente Contato (SPIIRC)), que acompanha os chamados Piripkura desde 1989 e, em 2007, encontrou os dois últimos de seus remanescentes viventes na mata, falantes do tupi-kawahib, o filme Piripkura, dirigido por Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, mostra algo da história deles (Pakyî e Tamandua) e de Rita, irmã do primeiro e tia do segundo.

 

 

Escravizada em uma fazenda onde fora feita de escrava sexual, Rita havia sido encontrada em 1984 por um piloto de avião, tendo sido então resgatada pela Funai. Ela fora levada a viver com os Karipuna, falantes da mesma língua dela, até ser integrada na equipe de Jair Candor na busca por seus parentes (além do filme, fatos dessa história impressionante pode ser lido no texto “Sombras da selva”, de Felipe Milanez, no livro Povos indígenas do Brasil; 2006-2010). Encontrados, quando perguntava a eles a respeito de seu passado com as mortes de seus parentes, o pequeno grupo indígena se recusava a falar. Depois, quando finalmente conseguiram falar, a história contada repetidamente soa das mais terríveis: enquanto um deles colhia mel em cima de uma árvore, um grupo de seus parentes atravessou um grande rio (aparentemente, o Roosevelt) em uma canoa. Quando chegaram ao outro lado, foram recebidos a balas por brancos. Muitos morreram ali mesmo, outros voltaram, outros fugiram. Os brancos, entretanto, seguiram os indígenas até sua aldeia e, chegando lá, prenderam-nos, amarraram as mãos de muitos, decapitaram vários, inclusive crianças, incinerando-os em seguida. Foi quando, junto com outros, os dois fugiram, encontrando-se mais tarde na floresta e jamais se afastando um do outro. Nome dado pelo povo inimigo Gavião, e, consequentemente, mais uma designação externa, Piripkura, que quer dizer borboleta, mariposa, esses seres frágeis que não param em lugar algum.

Essas e muitas outras maneiras de se viver em zonas de refúgio, tendo de, involuntariamente, inúmeras vezes, refugar sem poder parar de andar, forçados pela pressão do entorno que, reduzindo seus espaços de perambulação em seus varadouros, os deseja aniquilar, levam tais indígenas isolados a uma suportabilidade da vida, a um adensamento da solidão, a um aguçamento tanto das percepções quanto de pensamentos alternativos e a uma reinvenção constante de maneiras de subsistência inimagináveis pela maioria de nós, urbanos e, mesmo, rurais.

Nesses casos, resistir significa a recusa à vida dos e com os brancos, reinventando uma vida possível em escape, mesmo no extremo da desproteção e do risco, esforçando-se ao extremo para garantir minimamente a linha de distância em meio de tanto horror das múltiplas mortes e perseguições que lhes são impostas. Linha de distância defendia, a todo custo, como já mencionado, no comovente canto de Cari Tenharim, com o qual faço questão de terminar esse texto:

 

Os brancos estão fechando o cerco, perseguindo os Kagwahiva que estão distantes.
Eles dependem da gente para defendê-los.
Se os madeireiros matarem os parentes, eles vão desaparecer.
Cada dia mais, os madeireiros ameaçam os Kagwahiva.
Eu conheci essas pessoas que estão no mato.

 

 

Alberto Pucheu é poeta e professor de Teoria Literária na UFRJ. Publicou, entre outros, de Que porra é essa – poesia?A fronteira desguarnecida e Para que poetas em tempos de terrorismo?


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