Privado: Imagens cintilantes

Privado: Imagens cintilantes

 

CULT:  O que te motivou a escrever esse livro sobre artes plásticas? Como ele se relaciona ao seu livro mais recente sobre poesia?

Camille Paglia: Na sala de aula, como professora há mais de quarenta anos, tenho ficado cada vez mais preocupada com a diminuição de conhecimento de literatura e arte entre meus alunos. A cultura popular e os meios de comunicação de massa, com seu imediatismo sedutor, venceram tão completamente que os jovens com frequência veem as obras de arte complexas e mais antigas como monótonas e tediosas. Além disso, os estudantes hoje em dia se distraem constantemente com banalidades fragmentárias das mídias sociais, como mensagens de texto e Instagram.

A minha geração dos anos 1960, que foi criada à base de rock ’n’ roll, televisão e filmes Technicolor no cinema, era apaixonada pela cultura pop, e é por isso que meu ídolo na faculdade era Andy Warhol, com aquela iconografia escandalosa de sopas enlatadas e estrelas de Hollywood. Mas naquele período, ainda na sombra dos eventos recentes da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, tínhamos bastante consciência do sentido trágico da vida, assim como do valor da arte e a perspectiva profunda que ela pode ter sobre aspiração e perda. Mas há muito pouco na educação de hoje que possa ajudar os jovens a elevarem os olhos para além da diversão passageira e do entretenimento.

Imagens cintilantes, um livro pequeno que consumiu cinco anos para ser escrito, tem a intenção de acordar os jovens ao prazer e à iluminação da arte séria. O livro é também para adultos que estudaram arte há muito tempo, mas cujos parâmetros críticos foram diluídos pela retórica inflada da arte contemporânea, promovida pelo mercado de arte com contribuições néscias tanto de parte dos museus quanto de parte das universidades. O excesso desvairado de elogios à arte contemporânea, grande parte da qual não faz mais que imitar a arte já feita no passado por modernistas desbravadores, e que é de longe, muito superior, leva o grande público para longe das artes e em direção à cultura pop.

Eu detesto particularmente as teorias pós-modernas e pós-estruturalistas, cujos jargões elitistas contaminam tanto a escrita sobre arte. Assim como fiz no meu livro sobre poesia, Break, blow, burn [sem edição no Brasil, o título traduzido literalmente é Quebre, bata, queime, trecho de verso do poeta inglês John Donne] escrevo numa linguagem simples, lúcida e acessível, para tentar atingir um público geral que perdeu o interesse pela crítica cultural. Minha estrutura cronológica é militantemente fora de moda. Ao contrário desses pós-modernos míopes, acredito haver padrão e significado na história, e a trajetória artística dos últimos cinco mil anos pode ser lida como uma série de construções, rupturas e reparações. Espero que o Glittering images possa trazer revelações e iluminação a jovens intelectuais ambiciosos que perderam suas almas ao pós-modernismo.

Como você se insere na tradição de pensadores que se concentram sobre teses dos grandes cânones da arte ocidental?

A formação de um cânone, assim como a revisão de outros que existem são as obrigações do verdadeiro crítico. A tradição artística é como uma árvore maravilhosamente florida cuja vitalidade dos ramos espraiados precisa ser traçada até as raízes. A afirmação pós-moderna de que todo cânone é fruto de ideologias políticas é uma propaganda maliciosa. Fazer parte do cânone é algo que, em primeiro lugar, os próprios artistas determinam. Isto é, nós definimos a importância de um artista pela influência que ele tem sobre outros artistas, seja durante o momento em que vive ou num futuro distante (como é o caso de El Greco e Emily Dickinson).

No nascimento da segunda onda do feminismo, no fim dos anos 1960, nos disseram que logo iríamos descobrir uma leva de “Michelangelos femininos” – grandes artistas mulheres cujos nomes teriam sido apagados da história da arte por acadêmicos machistas. Profetizaram uma enorme reescrita do cânone oficial. Bom, meio século se passou e nenhuma artista mulher que chegasse minimamente perto dos feitos titânicos de Michelangelo foi encontrada. É verdade que hoje sabemos mais sobre mulheres artistas menores, como Artemisia Gentileschi ou Mary Cassatt, mas o velho cânone da história da arte permanece essencialmente o mesmo, porque sempre se baseou na evolução artística, não na política.

De fato, foram negadas oportunidades para mulheres trabalharem em atividades que exigem um ateliê, como a escultura. Mas quanto à composição musical, por exemplo, mulheres de classe média tiveram acesso a pianos em casa há mais de dois séculos. E, no entanto, não surgiu até hoje uma Mozart mulher. Como argumentei em meu primeiro livro, Sexual personae [Personas sexuais, na edição brasileira da Companhia das Letras], as mulheres jamais criaram um grande estilo novo nas artes porque para que fosse possível criar, seria preciso primeiro destruir – algo que a maioria das mulheres reluta em fazer.

A centralidade dos cânones é visível na música popular. As baladas inglesas do século dezessete, preservadas nas montanhas Apalaches dos Estados Unidos [cordilheira que atravessa do Canadá ao Alabama], foram reinterpretadas nos anos 1930 e 40 pelos cantores folk esquerdistas Woody Guthrie e Pete Seeger. Bob Dylan, discípulo devoto de Guthrie, em seguida moldou o imaginário de toda uma geração e causou um impacto imenso em outros cantores e bandas ao redor do planeta. O cânone na música negra é igualmente evidente: motivos do oeste africano (de tonalidades muçulmanas melismáticas) sobreviveram durante a escravidão no blues afro-americano rural e foram transmitidos através de cantores como Robert Johnson e Howlin’ Wolf a músicos jovens do revivaldo blues no pós-guerra inglês, como os Yardbirds, Rolling Stones e Led Zeppelin. No Brasil, figuras canônicas prolíficas, no patamar de gênios, como Antonio Carlos Jobim e Dorival Caymmi, são facilmente identificáveis.

Os críticos devem envolver o público para questionar os cânones estabelecidos e propor novos. Por exemplo: há anos batalho contra a afirmação amplamente difundida nos EUA de que a Meryl Streep é a maior atriz do mundo. Para mim, a Jane Fonda, com sua profundidade emocional e encanto físico maleável, é de longe uma atriz maior que Streep, que eu acho mecânica, superficial e pretensiosa. De fato, em termos de influência cultural, não há figura mais canônica que a de Marlene Dietrich, criadora do hard glamour sofisticado que estampa tantas capas de revista de moda, e que, através do impacto direto que exerceu sobre Madonna, influenciou imensamente o estilo de comportamento afirmativo e o modo de se vestir de mulheres ao redor do mundo.

Você declarou repetidas vezes ser ateia, mas expõe em seu livro que a arte é espiritualidade. Como é possível ser ateu e ao mesmo tempo efetivar a espiritualidade sem perder-se no pântano da irracionalidade?

Quase todos os capítulos de Imagens Cintilantes expõem a espiritualidade do trabalho artístico – surpreendentemente, inclusive no caso de artistas abstratos como Mondrian e Jackson Pollock. Como mostrei em Sexual personae, arte e religião andam juntas desde as primeiras pinturas rupestres e minúsculas efígies da Idade da Pedra. Hoje, na idade do materialismo cínico, a elite secular sente-se constrangida diante da fé religiosa e a trata ofensivamente como uma ingenuidade infantil. É exatamente por isso que a arte tem se tornado cada vez mais vazia.

A minha geração, a da revolução sexual, rebelou-se contra as autoridades tirânicas das religiões organizadas; mas nós também estávamos envolvidos com uma busca espiritual. Herdamos um interesse no zen budismo dos poetas Beat dos anos 1950, e também lançamos uma nova empreitada em direção ao hinduísmo, como é possível ouvir nos riffs de cítara e raga dos Byrds ou dos Beatles. Infelizmente, muitos da minha época que buscavam a verdade usaram o LSD como um atalho à consciência cósmica, danificando para sempre seus cérebros e impossibilitando-os de registrar as próprias descobertas na forma coerente de um livro.

Sabiamente, nunca usei LSD, mas mantenho-me comprometida com a visão psicodélica de energias sagradas que permeiam o universo. Não acredito em Deus, mas sim, em todos os deuses, que são projeções simbólicas da imaginação humana. Acho muito estimulante o sincretismo afro-brasileiro da Bahia, em que os antigos cultos Iorubá da natureza se mesclaram ao catolicismo ibérico barroco. Quanto à irracionalidade, concordo com Nietzsche no que ele diz sobre a dança de forças contrárias entre o apolíneo e o dionisíaco. O cérebro possui recantos distintos, que precisam ser mantidos em equilíbrio. Dante encena essa distinção quando se separa de Virgílio – que representa a razão – para realizar o ato de fé que oferece a visão de Deus como uma luz completamente branca no Paraíso. Artistas contemporâneos e intelectuais não vão readquirir criatividade, relevância, nem visão, até que deixem de lado o esnobismo chique diante da religiosidade e retomem a vocação para buscas espirituais.

Tradução Sofia Nestrovski

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