Imagem perfeita do gênio

Imagem perfeita do gênio

Para além do fato consabido de pertencer ao cânone da cultura ocidental, para além do amálgama supreendente entre biografia e obra que sua existência produziu, Goethe (1749-1832) mobiliza um interesse peculiar para nós nos dias de hoje. Pois rever seu percurso intelectual responde a um duplo propósito, nem tão evidente quando se fala do escritor alemão, caricaturado pelo pathos romântico do Werther ou pelo rigor descritivo da soberba fáustica. Em primeiro lugar, Goethe era acima de tudo um polímata, no sentido forte do termo: dedicava-se, como sabemos, não apenas à literatura (em sua dimensão poética, romanesca, dramatúrgica ou de crítica) e às artes plásticas, mas versava com propriedade sobre temas que iam da anatomia à ótica, da botânica à zoologia, da mineralogia è meteorologia. Em um mundo que exorta continuamente o conhecimento à sua fragmentação instrumental, que reduz o saber à tarefa exclusiva de especialistas, e que estabelece por isso uma visão de mundo estreita e propensa ao dogmatismo, o projeto multifacetado da obra de Goethe pode parecer à primeira vista um exercício de diletantismo datado e atualmente insensato. Desvelar essa aparência e questionar o saber compartimentado, contudo, é justamente um dos propósitos que a leitura de Goethe hoje pode cumprir.

Em segundo lugar, a concepção de “literatura universal” desenvolvida por Goethe talvez possa fornecer as coordenadas fundamentais para a reflexão apurada sobre o multiculturalismo, tema cada vez mais urgente. Pois não se deseja essa globalização que tende a homogenizar culturas e esterilizar diferenças regionais a partir de um padrão ideologicamente hegemônico. Pelo contrário, o que se busca, como queria Goethe, é a intensificação das diferenças culturais pela circulação das idéias sem hierarquias, pela necessidade de um contato desarmado com outras tradições; um contato que afinal dinamiza o pensamento. Se isso não era tão óbvio na época de Goethe, é surpreendente que mesmo hoje não o seja.

Por fim, lembremos que, ao longo dos 83 anos do poeta, o mundo germânico passou praticamente de seu estágio medieval para o início da modernidade técnica e industrial. Frederico II ainda era o rei da Prússia e Johann Sebastian Bach estava vivo, quando Goethe era jovem; ao morrer, Karl Marx era adolescente e Richard Wagner já tinha vinte anos. Durante a vida de Goethe, Hegel e Beethoven nasceram e morreram. Se, por um lado, o universalismo atemporal é umas das marcas inegáveis de sua obra (como afinal de todo grande clássico), por outro, ela representa o testemunho privilegiado de uma época marcada por profundas transformações. Seu interesse é, portanto, mais do que simplesmente histórico ou circunstancial; ele se amplifica, na verdade, em épocas de grandes mutações, como a nossa.

Dado o peso de sua herança na literatura ocidental, optamos neste dossiê pela análise da obra literária de Goethe. Assim, Izabela Kestler explica o conceito de literatura universal, apresentado por Goethe como programa estético de intercâmbio cultural para os escritores e poetas; Magali Moura fala sobre a polêmica em torno de Os sofrimentos do jovem Werther, ícone do movimento romântico que à época de sua publicação teria levado vários jovens ao suicídio; Wilma Patricia Mass examina a influência de Shakespeare sobre o pensador alemão; Eloá Heise expõe as origens do mito de Fausto e da estrutura da peça emblemática do autor; Marco Aurélio Werle apresenta, por fim, o trabalho de Goethe como crítico literário. Acreditamos, com isso, oferecer uma sólida introdução à obra daquele que foi, nas palavras de Walter Benjamin, “a imagem perfeita do gênio”.

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