Ideologia e contraideologia

Ideologia e contraideologia
(Foto: Heitor Hui)

O clássico tema da ideologia é retomado por Alfredo Bosi em Ideologia e contraideologia, de um modo, sob vários aspectos, inovador. Não apenas pelo seu estilo entre ensaístico e tratadístico, mas também pela ênfase conferida ao outro lado da moeda, a contraideologia, bem como pela constante preocupação de cotejar os acontecimentos histórico-culturais europeus, desde o fim da Idade Média até o presente, com a realidade exterior à Europa, principalmente o Novo Mundo, com atenção especial ao Brasil.

Isso fica evidente já no que Bosi chama de “pré-história do conceito de ideologia”: a partir do Renascimento, o contato com outras culturas proporcionado pelas grandes navegações teria sido o propulsor de uma crítica da ideologia dominante. Na crítica social implícita em vários ensaios de Montaigne, por exemplo, estaria embutida a perspectiva dos diferentes modos de vida não ocidentais. De modo análogo, das utopias de Morus e Campanella, passando pela crítica aos “Ídolos”, por Francis Bacon, até as Cartas Persas, de Montesquieu, teria havido ressonâncias da descoberta desses espaços de alteridade. Uma atenção especial é dada a Rousseau, principalmente em virtude do que seriam seus vários momentos contraideológicos, principalmente nas visões sobre a educação expostas no Emílio.

Nessa pré-história do conceito de ideologia, mas também no seu desenvolvimento posterior, observa-se, segundo Bosi, a diferença que separa duas vertentes que podem, à primeira vista, parecer a mesma coisa: “Pela primeira vertente, o pensamento hegemônico é sempre falso e deve ser atacado pela raiz e desmistificado implacavelmente. (…) Pela segunda vertente, o mesmo pensamento dominante deve ser analisado, interpretado, compreendido em suas relações com seus fatores condicionantes, físicos e sociais, históricos e culturais; em suma, a ideologia deve ser situada e historicizada” [p. 40]. No que concerne à história do conceito de ideologia, propriamente dita, Bosi lembra que a palavra idéologie foi usada pela primeira vez em 1792, na obra homônima de Destutt de Tracy, publicada em 1801, sendo que o paradigma contemporâneo da “primeira vertente” – radicalmente crítica – do conceito de ideologia teria sido a Ideologia Alemã, de Marx e Engels.

No entanto, sem que Bosi rejeite totalmente a concepção marxista, a posição de Karl Mannheim aparece como mais equilibrada e ocasionalmente mais “contraideológica”. Bosi procura aliviar a acusação de idealismo feita a Mannheim, assinalando que “a famosa e tão malsinada expressão ‘intelectual que sobrevoa livremente’, atribuída a Alfred Weber, não me parece aplicável ao empenho cognitivo e ético de Mannheim” [p. 82]. No mesmo espírito de balanço sobre os momentos ideológicos e contraideológicos são passadas em revista colocações de Max Weber, de Lucien Goldmann, de Giulio Carlo Argan e de Paul Ricoeur. Ocupa igualmente lugar de destaque na reflexão de Bosi a proposta de que a religião também pode ser um importante fator de desalienação, na qual o libertarismo radical, de fundo cristão, de Simone Weil, aparece como um paradigma de proximidade entre a contraideologia e a utopia.

Contraideologia de desenvolvimento

Na segunda parte do livro, intitulada “Intersecções Brasil/ Ocidente”, destaca-se a discussão sobre ideologia e contraideologia no conceito de desenvolvimento de Celso Furtado, o qual remete tanto a posições de Karl Mannheim quanto às colocações weberianas sobre a relação entre meios e fins: “Em face dessa tendência constante do discurso neoclássico, Celso Furtado propõe uma resistência ética ao seu ‘falso neutralismo’ que se degradou em ‘terrorismo metodológico’. Em outras palavras, propõe um conceito contraideológico de desenvolvimento, cuja marca registrada é o interesse geral” [p. 256]. Bosi chama ainda a atenção para o reforço que a concepção de “catolicismo social”, difundida entre nós pelo Padre Lebret, representou para uma teoria alternativa do desenvolvimento.

No bojo de uma longa discussão sobre a coexistência pacífica entreliberalismo e escravidão, a qual remonta a Locke e testemunhou tenebrosos capítulos na história brasileira, destaca-se a figura de Joaquim Nabuco como autor de obra em que a defesa do abolicionismo assumiu, segundo Bosi, traços visivelmente contraideológicos. O desfecho do livro se dá pela bela análise do que Bosi chama de “nó ideológico” no Brás Cubas de Machado de Assis, no qual a aparente adesão a privilégios e preconceitos de classe revela-se – de um modo que só uma grande obra de arte pode fazer – como uma posição profunda e radicalmente contraideológica.

A amplitude do espectro de doutrinas analisadas por Bosi, sua ênfase na necessidade da contraideologia como pressuposto da libertação dos oprimidos, assim como sua atenção especial aos reflexos do pensamento europeu sobre nosso universo político e intelectual, fazem desse livro uma peça indispensável na bibliografia brasileira sobre a ideologia.

Rodrigo Duarte é doutor em Filosofia pela Universidade de Kassel (Alemanha) e professor titular do Departamento de Filosofia da UFMG.


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