Privado: Iconoclasta e antinarrativa

Privado: Iconoclasta e antinarrativa

Terceiro volume da “trilogia íntima”, O Manto, de Marcia Tiburi, leva a cabo a vingança de Clitemnestra contra Orestes e Apolo

Marcio Seligmann-Silva

O Manto – Ornitomance das Berenices é o terceiro volume da “trilogia íntima” que lançou Marcia Tiburi como romancista. Como em Magnólia e em A Mulher de Costas, a questão da esfera da intimidade – e sobretudo do espaço íntimo feminino – está no centro gravitacional da escrita. O Manto é destas obras que, como comemorava Friedrich Schlegel no fim do século 18, já trazem em si a sua análise, a sua crítica e a sua própria autodissolução. É uma obra em movimento constante de autofagocitose. É um organismo intenso, ou mesmo, pode-se dizer, uma ferida aberta, uma fratura exposta: talvez isso seja também um outro nome para a nossa intimidade hoje.

O livro é romântico em sua ambiguidade entre reflexão e criação literária, que suspende a narrativa, implode o plot, transformando em seus protagonistas a própria escritura em seu jogo e luta com a intimidade. O prólogo da autora, com suas mais de 200 páginas, é um tour de force. Creio que poucos leitores resistirão a esse caminho espinhoso. E ele não leva de modo algum ao “paraíso da narrativa”, já que a segunda parte do livro é fragmentada e apresentada como a transcrição de nove fitas que teriam sido deixadas como “herança” pela mãe da autora do texto. Desde o início a figura do “autor” já é ficcionalizada e tudo no livro é apresentado ao mesmo tempo como testemunho e como simulação. Se todo testemunho é de certo modo ficção, O Manto mostra como toda literatura é de certo modo testemunho. No livro, a indistinção entre ergon (obra) e parergon (anexos da obra) performatiza esse fato.

O livro Lucinde, de Schlegel, já era um não romance como este de Tiburi, mas a autora deve também a outros românticos, como a Poe – autor de uma “Berenice” (outra protagonista de O Manto) –, mas sobretudo a uma linhagem de autoras que abriram o campo literário para nosso íntimo: Mary Shelley, Virginia Woolf, Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar. Como os românticos alemães – e Walter Benjamin –, Tiburi também aposta em uma estética da ruína. Seu livro já nasce despedaçado. Inútil enumerar outras possíveis influências, pois todas estão explicitadas neste texto autorreferente. Mas as alusões a Hildegard von Bingen e Sei Shonagon remetem a uma tentativa de construir uma descendência próxima à de outra autora brasileira (bem diferente de Tiburi, mas com essas duas referências). Trata-se de Maria Esther Maciel. Aliás, as duas são desde logo estrelas nacionais de um novo “gênero” latino-americano: o romance acadêmico feminino. Outros exemplos podem ser encontrados, do México à Argentina.

Origem docta

Esta obra, por causa de sua origem docta, faz a história da literatura (e da cultura) passar por um mix no qual não sobra quase nada: a não ser, justamente, a figura da intimidade. O Unheimlich cobre com um manto aquilo que antes o ocultava! A “voz feminina”, a “loucura” (outros personagens centrais aqui) tomam o comando da literatura, até então dominada falicamente pela narrativa. A metáfora do manto é explorada ad nauseam neste livro. O manto em questão é tanto o próprio texto tecido como os mantos míticos de Penélope e de Clitemnestra. “Penélope generosamente dá O Manto a Clitemnestra”, lemos ao final do livro. A Penélope submissa, que desfazia seu tecer à noite para proteger sua aliança com Ulisses, passa o manto (que é também agora um desmanto, uma capacidade de desconstruir) para Clitemnestra, que com ele assassina Agamêmnon. Tiburi, aliás, nessa luta simbólica corta frases, palavras e letras. Rasga-as. É o ato de castração da literatura/do masculino que esta obra encena com todas as letras. Ela desfaz o triunfo de Orestes/Apolo (sobre Clitemnestra) e reinstaura a força das Eríneas/A Noite vingadoras, protetoras da rainha Clitemnestra.

O gesto de transcrição das nove fitas é apresentado como um trabalho de parir a própria mãe e ao mesmo tempo de dar um túmulo para ela. A escrita é tecida como ato de parição e de ritual fúnebre. É fusão de passado, presente e futuro, já que ornitomancia é a arte de ler o futuro interpretando voos de pássaros. Tirésias, o mais famoso dos ornitomantes, não por acaso era cego, como os adivinhos trágicos costumavam ser. Essa cegueira remete à capacidade de se concentrar no cerne e não na superfície do mundo. A mãe, no livro de Tiburi, fala ao gravador presa à ausência de luz, já que ela mora dentro de um armário. Assim, cria-se um modelo de revelação do íntimo, que por sua vez lembra o monstro Frankenstein, de Mary Shelley, que se formou escondido em um armário dentro de uma casa burguesa. Era o momento – início do século 19 – em que o Unheimlich começou a se manifestar ao lado da figura do “íntimo” na cultura ocidental.

Um dos gestos mais irritantes (programaticamente irritantes) deste livro é sua insistência em dialogar com o leitor. Esse leitor recebe vários apelidos, todos também irritantes, como o de Sancho (momento em que a autora se coloca como uma Rocinante). Essa postura enfant terrible é uma marca da pena de Tiburi. Mas ela sabe que nada mais pode épater le bourgeois. Esse gesto autorreferente leva ao absurdo a interrupção, a parataxis e o arruinamento do texto. Mas, se não é possível chocar o leitor, é possível fazê-lo apear do cavalo: por causa de seu trote monótono, que não sai do lugar. No livro não vemos paisagens. Ele é (apesar de suas imagens, desenhos de Tiburi) iconoclasta, antinarrativa, e descarta também toda sensualidade. O ousado deste projeto literário está em ir nessa linha até as últimas consequências. A autora mesma revela sua intenção de “chatear” o leitor. Ela funda – ironicamente, como tudo neste livro – a “literatura (assumidamente) chata”. Com isso, sabe que reduz o número de leitores. O que é uma pena, pois, justamente graças a essa radicalidade, o livro merece ser lido com toda a atenção.

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