Huizinga e a nova Idade Média

Huizinga e a nova Idade Média

Rodrigo Petronio

Quando, hoje em dia, ouvimos expressões como história das mentalidades, o leitor não especializado imagina logo algo de muito complexo, provavelmente um estudo eivado de jargão acadêmico dos mais impenetráveis. Certamente, ele não saberá que um dos criadores dessa modalidade de estudo foi um autor cujo campo de interesses era tão vasto e cujo gosto artístico e intelectual tão variado que hoje em dia ele provavelmente seria desdenhado pelos próprios especialistas em história das mentalidades como um generalista ou um mero colecionador de curiosidades.

O ambiente cultural das últimas décadas do século 19, no qual o holandês Johan Huizinga foi criado, é um espelho da riqueza inesgotável de seu pensamento. Otto Maria Carpeaux definiu-o como um Erasmo de tempos sombrios. Protestante, liberal, de extração burguesa, Huizinga habitou, espiritual e geograficamente, a mais europeia das regiões da Europa, entre a Basileia e Antuérpia, em quase nada distante do esplendor da Borgonha do século 15 que ele historiou. Conseguiu extrair dessa sua condição social o que de melhor ela poderia oferecer: uma aptidão natural em hierarquizar valores e uma defesa irrestrita da liberdade. A primeira fez dele um enorme intelectual.

A segunda levou-o ao encontro da morte. Ambas são complementares, tanto o outono das formas feudais analisado pelo historiador quanto o declínio político sofrido pelo homem, provavelmente como realização profética de uma obra que lhe serviu de base, O Declínio do Ocidente, de Spengler.

Talvez tenha sido por causa dessa dupla consciência – de sua situação e de seu lugar social –, que Huzinga tenha se sentido tão responsável pela história. Mas foi a liberdade também que o levou a reinventar o modo de ler o passado e a rever a hierarquia dos valores cristalizados a respeito da Idade Média.

Em outras palavras, deve-se, sobretudo, a Huizinga ter quebrado com o estigma do período medieval, bem como demonstrado a fluidez, e não ruptura, existente entre Idade Média e Renascimento, coisa que ao longo do século 20 se tornou moeda corrente entre os maiores estudiosos de ambos os períodos, seja um Le Goff ou um Kristeller.

Huizinga apoiou-se na definição paradigmática de outro clássico, A Cultura do Renascimento na Itália, de Jacob Burckhardt. Mas de certo modo superou-a, pois mitigou a importância mítica que o historiador alemão conferira à Itália e ao Renascimento, ressaltando o fundo medieval que o gestou e se preservou na cultura renascentista, sobretudo na França e nos Países Baixos. Como diz o historiador francês Jacques Le Goff, Huizinga conseguiu mostrar uma “íntima imbricação” entre esses dois períodos em sua obra mais conhecida. Estamos falando de O Outono da Idade Média, de 1919 (Cosac Naify, 2010), quase uma década, portanto, antes de Charles Haskins empreender sua revisão do período medieval em The Renaissance of the Twelfth Century, de 1927. É essa obra de Huizinga que chega ao Brasil pela primeira vez na íntegra, traduzida direto do holandês, com um dossiê organizado por Anton van der Lem, um dos responsáveis pelo espólio do historiador, além de um aparato crítico e biobibliográfico. E mais ainda: com um rico repertório iconográfico das obras citadas, geralmente de difícil acesso em museus e indisponíveis mesmo em catálogos e livros de arte.

A vida
Como nos lembra o historiador inglês Peter Burke, o escopo intelectual desse mestre ia do gosto pelos poetas simbolistas à arte chamada decadente de um Huysmans; de sua ojeriza pela política ao cuidado meticuloso no estudo da arte flamenga dos séculos 14 a 16, de um Memling, dos Van Eyck, de Van der Weyden ou de um Petrus Christus; de seus estudos iniciais de sânscrito ao seu interesse juvenil em escrever uma história do Islã; de seu desprezo pelo marxismo, pela psicanálise e pela arte moderna às suas análises meticulosas da vida cotidiana da Baixa Idade Média, com seus hábitos, costumes, relações simbólicas e formas materiais; de sua tese sobre o papel central, e não periférico, do jogo como elemento estruturante da cultura, desenvolvida em Homo Ludens (Perspectiva, 2008), até sua monografia que trata de questões microscópicas, tais como o asseio entre os holandeses, o que contribuiu para ampliar o campo de temas da historiografia.

Nada escapava ao olhar fino e amoroso que lançava à história. A obra em questão abre com um capítulo sobre a “veemência da vida”. Vida. Talvez essa seja a palavra mais empregada por Huizinga, mesmo quando trata, por exemplo, dos rituais de morte e do imaginário fúnebre. Isso não se dá por acaso. Justamente porque ele se valia da história para fazer uma microscopia da vida. Nada em Huizinga é estático. O que o filósofo alemão Dilthey fez em filosofia Huizinga realizou na historiografia. Ou seja: uma abordagem dinâmica, vitalista e compreensiva dos temas tratados.

Como nos lembra Carpeaux, na obra significativamente chamada Nas Sombras de Amanhã, edição de Leiden, 1935, leem-se na epígrafe as palavras de Santo Agostinho: “Este mundo tem as suas noites, e não são poucas”. A obra é quase um panfleto contra a platitude e a brutalização da vida das primeiras décadas do século 20, além de uma crítica às teorias eugênicas em expansão e aos regimes totalitários de todos os quadrantes. Foi assim que Huzinga também viveu o seu outono.

Também ele teve a sua noite, em um campo de concentração na Holanda, em fevereiro de 1945. A loucura deixou de ser absurda, a boba da corte. O avesso da norma não estava mais no palco cômico de Erasmo, sendo difamado, nem nas danças macabras medievais, mas ganhou a realidade e as ruas.

Como assinala Carpeaux, uma triste ironia, para aquele que flagrou a Idade Média em todo o seu esplendor, em sua metamorfose e em sua agonia, ter sido vitimado por um tempo de progresso técnico provavelmente mais sombrio do que os descritos em seus livros. Mas esses são os seus testamentos. E, para quem nunca separou cultura e vida, escondendo-se atrás da lupa anódina de alguma ciência, esse foi também o seu legado.

Rodrigo Petronio é professor do curso de criação literária da Academia Internacional de Cinema

O Outono da Idade Média
Johan Huizinga
Trad.: Francis Petra Janssen
Cosac Naify
656 págs.
R$ 140

(3) Comentários

  1. Adquiri ontem o livro. Já lera a respeito da obra há muitos anos, mas nunca tivera acesso a ela. A edição é um primor e de um cuidado profissional pouco visto em edições brasileiras. Hesitei pelo preço salgado, mas o conjunto até justifica o valor. Agora é deliciar-se. Nessas horas é que se pensa sobre o debate livro/e-livro. Ainda há espaço para obras como esta em papel. Vale a pena!!

Deixe o seu comentário

Artigos Relacionados

TV Cult