Homenagem – Claude Lêvi-Strauss

Homenagem – Claude Lêvi-Strauss

Para o “astrônomo das constelações humanas”, ao ouvirmos música, “atingimos uma espécie de imortalidade”

Eduardo Socha

O telefone tocou às 9 da manhã num domingo de outono. A voz fria e resoluta de Célestin Bouglé exigia uma resposta rápida: “Você ainda quer fazer etnografia?”. Bouglé, filósofo e diretor da Escola Normal de Paris, explicava que havia uma vaga para professor de sociologia na recém-criada Universidade de São Paulo. Os arredores da região, garantia, estariam repletos de índios. Era necessário dar uma resposta definitiva antes do meio-dia. Do outro lado, o professor de filosofia de 26 anos não precisou de muito tempo para dizer “sem dúvida”.

Foi assim – relataria Claude Lévi-Strauss em Tristes Trópicosque sua carreira havia finalmente se decidido. Era a oportunidade esperada para abandonar de vez o trabalho como professor de filosofia, disciplina institucionalizada que à época lhe parecia o palco de piruetas especulativas, sempre pronta a substituir o gosto pela verdade por acrobacias conceituais que, se por um lado fortaleciam a inteligência, por outro “ressecavam o espírito”.

A etnografia seria a “tábua de salvação” para aquele jovem insatisfeito com os protocolos de um saber esquemático no interior do quadro acadêmico francês. Os índios de São Paulo seriam, para ele, a promessa de reconciliação entre sua curiosidade intelectual apurada e uma variedade praticamente inesgotável de temas para o estudo das relações entre homem, civilização e natureza. Mais do que isso, indicariam o caminho para a compreensão do vínculo entre o inteligível e o sensível na experiência humana, o elo entre pensamento e espírito que, segundo ele, havia se perdido na disciplina filosófica.

Em 1935, poucos meses depois daquele telefonema, tomou o navio de Marselha para Santos. Descobriu logo que, ao contrário do que imaginava Bouglé, não havia índios na região de São Paulo, apenas indômitos “grã-finos” que rechaçavam qualquer referência aos indígenas, como se estes fossem a encarnação de um passado incômodo para as pretensões de uma elite cosmopolita em gestação. De fato, os índios estavam um pouco mais longe, a 3 mil quilômetros de distância da então crescente metrópole paulista.

Vocação autêntica

“Como a matemática e a música, a etnografia é uma das raras vocações autênticas. Podemos descobri-la em nós, ainda que não nos tenha sido ensinada por ninguém.” Passagens como essa, de Tristes Trópicos, testemunham o impulso que conduziu Lévi-Strauss em direção ao centro do Brasil. Mas elas trazem o risco de ocultar as hesitações do iniciante antropólogo que recusou a filosofia. Abandonar uma estável carreira universitária não tinha sido uma decisão tola? As expedições brasileiras realmente lhe dariam a certeza quanto à vocação da etnografia? Como descobrir, afinal, essa vocação autêntica?

É preciso, de início, sublinhar a sutil referência à música na passagem acima. Pois estamos diante de um aspecto pouco explorado e até certo ponto revelador na trajetória daquele rapaz taciturno que ficaria conhecido como o “astrônomo das constelações humanas”. Nos livros de Lévi-Strauss, a música frequentemente irrompe com a força de uma epifania, seja ela originada pelo súbito desvelamento de sua própria interioridade, seja ela a cristalização da descoberta inovadora de um método. Dois exemplos claros nesse sentido, um descrito em Tristes Trópicos, outro em O Cru e o Cozido, comprovam o lugar marcante da arte musical em sua vida e em sua obra.

A Tristesse de Chopin

Em 1938, Lévi-Strauss encontrava-se nos confins de Mato Grosso, em Campos Novos, aguardando o resto da expedição que ficara 80 quilômetros atrás por causa de uma epidemia que provocava cegueira temporária e que havia atingido inclusive sua mulher. O cenário era dantesco. No calor insuportável do planalto, pessoas morriam de malária e de fome, e os índios que passavam por ali não eram nada amigáveis. As semanas anteriores também não tinham sido as melhores.

O antropólogo recorda que em seu espírito emergia um devaneio sereno e melancólico: perguntava-se qual o sentido de tudo aquilo, o que estava fazendo ali, que esperança, que finalidade almejava encontrar, afinal. Iria fazer cinco anos que abandonara a carreira universitária. Seus amigos agora eram bem-sucedidos na carreira, alguns já eram deputados, em breve seriam ministros. “Quanto a mim”, confessava, “eu corria os desertos perseguindo detritos de humanidade. Quem ou o que me levara, afinal, a jogar para os ares o curso normal da minha vida?”

Nesse momento quase febril do relato de Tristes Trópicos, Lévi-Strauss lembra que seu devaneio se entrelaçava a alguns fragmentos de música e poesia guardados na memória, vestígios daquela sociedade distante contra a qual de certo modo se rebelava ao escolher a etnografia. O devaneio suspendia provisoriamente a realidade a seu redor. “Semanas a fio, naquele planalto do Mato Grosso ocidental, eu vivera obcecado, não pelo que me rodeava e que eu nunca mais reveria, mas por uma melodia muito batida que minha lembrança empobrecia ainda mais: a do Estudo n. 3, Op. 10, de Chopin (…) no que parecia se resumir tudo o que eu deixara atrás de mim.”

A altivez de Lévi-Strauss relativiza, no livro, o teor emotivo do que estava em curso: para alguém “criado no culto wagneriano”, a obra de Chopin era, reconhecia, um pouco banal. No entanto, foi a banal e discreta melodia desse Estudo (também conhecido como Tristesse) que serviu de plataforma para a redescoberta do significado daquilo que vivia na expedição. Ocupando um dos mais belos parágrafos de Tristes Trópicos, a breve análise da ação dessa melodia insistente sobre a memória de Lévi-Strauss mostra quanto ela foi determinante em sua vida. A análise torna-se ela própria musical ao acompanhar o crescendo daquele tema em mi maior que se resolve em uma solução “dissimulada” e em uma saída “insuspeita”. Depois de quilômetros percorrendo a vastidão do Brasil central, eivado pela obsessão interna da velha melodia de Chopin agarrada à sua memória, uma revelação apareceu-lhe em sursis: “Seria então isso, a viagem? Uma exploração dos desertos de minha memória, e não tanto daqueles que me rodeavam?”. A Tristesse resumia o que deixara para trás, o que se projetava no fluxo emotivo ocasionado por uma vacilante escolha de vida, empreendida pelo inocente “sem dúvida” em um telefonema.

 Música e mito

O Cru e o Cozido, primeiro volume das Mitológicas, foi publicado em 1964, quase dez anos depois de Tristes Trópicos, quase 30, portanto, depois daquela expedição a Mato Grosso. Lévi-Strauss já era o antropólogo internacionalmente reconhecido. Nesse livro, ambicionava constituir um método seguro para a análise estrutural dos mitos, uma sintaxe da mitologia. Aqui, a música retornava, assumindo outros contornos. Por ser a linguagem privilegiada que supera a antinomia entre o inteligível e o sensível, ela surgia desta vez, para Lévi-Strauss, como o próprio método que procurava. Para o pesquisador maduro que buscava identificar as formas do pensamento mítico, a música representava “o supremo mistério das ciências do homem, contra o qual elas esbarram, e que guarda a chave de seu progresso”.

Sua aposta era a de que música e mito acionam estruturas mentais comuns, pois conciliam internamente pensamento e sensação, razão e emoção, tempo lógico e tempo psicológico. Lévi-Strauss não tinha dúvidas de que essa afinidade estrutural era o que lhe permitia encontrar na música um método consistente para resolver “problemas de construção análogos aos que a análise de mitos levantara, e para os quais a música já tinha inventado soluções”.

Essas soluções ficariam explicitadas na própria organização do livro. O Cru e o Cozido não se divide em capítulos, mas em seções cujas estruturas são tomadas de empréstimo das formas musicais: “abertura”, “canto”, “fuga”, “concerto”, “recitativo”, “cantata”, “sinfonia”. Essa divisão não corresponde (como a leitura apressada poderia induzir) a um maneirismo ilusório, a um artifício estilístico e extravagante de redação. É, antes, a rigorosa exigência de método que se impõe. Afinal, a análise de mitos, dizia, era comparável à de uma grande partitura.

Coda

Esses dois exemplos, assim como outros que desenham o arco metafórico que liga vida e obra, indicam quanto a música foi decisiva para Lévi-Strauss. Assim como não são os homens que pensam os mitos, mas são os mitos que se pensam pelos homens, na música também há sempre um “outro” que passa pelo filtro da subjetividade e que se pensa pelo homem em sua singularidade. Como sabemos, a descrição desse “outro”, objeto a um só tempo explícito e oculto na antropologia e na música, foi, “sem dúvida”, a vocação de Lévi-Strauss.

Não deveríamos, portanto, ficar surpresos ao encontrar o seguinte trecho em O Cru e o Cozido: “A audição da obra musical, em razão de sua organização interna, imobiliza o tempo que passa; como uma toalha fustigada pelo vento, atinge-o e dobra-o. Ao ouvirmos música, atingimos uma espécie de imortalidade”. Em 1938, nos momentos difíceis de uma expedição por Mato Grosso em que uma renitente melodia lhe permeava o espírito, Lévi-Strauss provavelmente atingia uma espécie de imortalidade. Hoje, é a grandeza de sua obra que nos dá essa certeza.  

A música em O Cru e o Cozido

“Na música, a mediação da natureza e da cultura, que se realiza no seio de toda linguagem, torna-se uma hipermediação: de ambos os lados, os ancoramentos são reforçados. Instalada no ponto de encontro entre dois domínios, a música faz com que sua lei seja respeitada muito além dos limites que as outras artes evitariam ultrapassar. Tanto do lado da natureza quanto do da cultura, ela ousa ir mais longe do que as outras. Assim se explica o princípio (quando não a gênese e a operação, que continuam sendo, como dissemos, o grande mistério das ciências do homem) do poder extraordinário que possui a música de agir simultaneamente sobre o espírito e sobre os sentidos, de mover ao mesmo tempo as ideias e as emoções, de fundi-las numa corrente em que elas deixam de existir lado a lado, a não ser como testemunhas e como respondentes.”
(Lévi-Strauss, O Cru e o Cozido, “Abertura”, p. 48)

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