Homenagem Augusto Boal

Homenagem Augusto Boal

Artista fundamental para a compreensão da cultura contemporânea no Brasil, Augusto Boal conciliou o engajamento político a uma inventividade estética surpreendente

Welington Andrade

O teatro brasileiro trilhou entre as décadas de 1950 e 1970 um sólido caminho rumo à notoriedade. Dotada do convite à polêmica, à prontidão crítica e à ousadia da experimentação, a criação teatral atraiu grande atenção do público e dos meios intelectuais no período.

Brioso e onipresente, convicto de seu poder de fogo, o teatro do Brasil desenvolvimentista e, posteriormente, dos anos de chumbo alimentou a ilusão de que tudo dependia mais ou menos de sua ação: a classe teatral, amparada por uma intelectualidade vigilante e empenhada, não só “conscientizaria” o povo como também transformaria profundamente as práticas sociais.

O percurso que congregou tantos artistas e pensadores em torno de um apaixonado clima de participação desembocava necessariamente na reflexão sobre o país. Nunca os meios culturais e artísticos produzidos e difundidos no Brasil deixaram-se seduzir tanto pela musa inspiradora da “realidade brasileira” quanto no período que compreende a segunda metade da década de 1950 e o final da década de 1970. As reflexões sobre aspectos específicos desta realidade saltaram dos estudos sociológicos e dos romances regionalistas e invadiram as mais variadas manifestações culturais organizadas a plenos pulmões nos grandes centros urbanos, impulsionadas pelos bons ventos econômicos que sopravam sobre a nação.

Tentar compreender o Brasil profundo era o objetivo maior, e ele estava lá, iluminado pela lente do cinema novo; entoado também pelos inovadores acordes da música popular brasileira; e retratado ainda – somente para citar três típicos terrenos da cultura artística –, de modo desafiador, em espetáculos cênicos experimentais que tomavam lugar em palcos diversos.

A cultura nacional, enfim, inspirava e expirava, por todos os seus orifícios, lufadas e mais lufadas do ar denso e complexo que, seja por opção programática, seja por modismo ou comodismo, convencionou-se chamar de “realidade brasileira”.

Boal e o Teatro de Arena

Augusto Boal (nascido em 1931 no Rio de Janeiro e morto no último dia 2 de maio) foi um dos mais ativos homens de teatro daquela geração, e o importantíssimo legado que ele deixou à memória cultural do país constitui uma peça fundamental para o entendimento da arte produzida em um período emblemático de nossa história recente e, consequentemente, da cultura contemporânea no Brasil.

Animador cultural dos mais inquietos, Boal aliou as atividades de dramaturgo e encenador à de teórico (sua vasta formação intelectual levou-o a escrever sobre a própria prática, num caso raro entre nós), desenvolvendo concepções bastante originais e expondo ideias sempre muito polêmicas.

Sua atuação à frente do Teatro de Arena de São Paulo – que se estende de 1956 a 1971 – investiu na formação dramatúrgica e aprofundou o trabalho de interpretação da equipe, adaptando tais elementos às condições brasileiras e ao formato do “teatro de arena”, o que resultaria numa experiência única no Brasil. Posteriormente, dedicou-se a pesquisas que conceberam o teatro-jornal e o teatro-invisível, alicerces da famosa metodologia que viria a desenvolver mais tarde, o Teatro do Oprimido, responsável por sua projeção internacional.

O projeto original do Teatro de Arena (fundado por José Renato em 1953) visava facilitar o caminho dos iniciantes na carreira, propondo uma disposição cênica intimista: atores no centro, espectadores ao redor. Entretanto, o formato de arena somente deu prestígio ao grupo quando Boal começou aliar às variáveis artísticas decorrentes dele elementos sociais tratados com grande arrebatamento emocional e intelectual.

A encenação bem-sucedida de Eles não usam black-tie (1958), a cargo de José Renato, proporcionou ao Arena as condições de realizar o Seminário de Dramaturgia (iniciativa na qual Augusto Boal exerce papel determinante), que, além de pretender revelar novos autores, empreendeu buscas de soluções dramáticas e investigações de definições estéticas e políticas. O teatro político de Erwin Piscator, o realismo socialista e a forma dialética de Bertolt Brecht constituíam a bibliografia básica das atividades do Seminário, que acabou por gerar um espécime raro, uma das mais bem acabadas experiências de teatro épico no Brasil: Revolução na América do Sul, do próprio Boal.

No texto, o autor abranda os procedimentos naturalistas, trocando o dramático pelo farsesco, a fim de denunciar a demagogia nacionalista, o populismo, as bandeiras pseudorrevolucionárias e o vazio dos mecanismos democráticos, que marcaram o clima eleitoral de 1960. Embora trate de muitos fatos e personagens esquecidos pela História, o texto permanece vivo ainda hoje, por conta de sua contundente sátira social.

No Panorama do teatro brasileiro, Sábato Magaldi assim celebra a experiência:

“Revolução guarda toda a vitalidade alegre e contagiante da farsa primitiva. Sente-se nela o sopro criador do teatro. Pelo trabalho consciente do dramaturgo, ela significa mais ainda: assimila, pelos seus vários aproveitamentos, as lições tradicionais do teatro, e mistura-as com os estímulos imediatos da experiência nacional – a revista e o circo. Torna-se um amálgama feliz de nossa aventura artística. Exprime, por esse lado, o que há de mais autêntico em nossa cultura: a aliança do aprendizado europeu e norte-americano com as forças espontâneas da nacionalidade.”

Tropicalizando Brecht

O tom que Revolução na América do Sul imprimiu ao Teatro de Arena marcou decisivamente o começo da influência do trabalho de Bertolt Brecht no Brasil. Para o autor de Mãe coragem, o teatro deve trabalhar metodologicamente com o questionamento crítico em todos os níveis de realização: o autor deve criticar a própria peça, o ator deve criticar a personagem (com a qual não deve se identificar sob o risco de perder a objetividade) e o público deve criticar a realidade, elaborando sua própria reflexão acerca do que presenciou.

Assim é que as peças seguintes do Arena, escritas por Augusto Boal em parceria com Gianfrancesco Guarnieri, são do ponto de vista estilístico respostas brasileiras ao teatro épico, nas quais os autores procuraram assimilar o método de Brecht, integrando-o a soluções dramatúrgicas originais, adaptadas às condições específicas do próprio grupo e do País, cujos acontecimentos fervilhavam tão intensamente. 

Em 1965, o Teatro de Arena estreou Arena conta Zumbi. Montagem de grande êxito, o musical criticava o golpe militar recém-deflagrado a partir da relação repressora entre os colonizadores portugueses e os negros. O sucesso levou ao Arena conta Tiradentes, encenado em 1967, também uma análise do momento político da época a partir do movimento libertário que poderia ter mudado os rumos da história do País: a Inconfidência Mineira.

As montagens de Zumbi e Tiradentes proporcionaram o surgimento de dois textos críticos de Anatol Rosenfeld (“Heróis e coringas” e “O herói humilde – o herói e o teatro popular”), que, escritos no calor da hora, hoje são considerados obras fundamentais do ensaísmo teatral no Brasil. Aliás, vale notar que as peças, encenações e reflexões de Boal sempre foram alvos da análise dos mais renomados intelectuais brasileiros, conforme atestam as citações aqui presentes.

Ao examinar as considerações teóricas expostas pelo diretor no texto introdutório da versão de Arena conta Tiradentes, publicada em livro, Rosenfeld observa que “as ideias expostas destinam-se a fundamentar um teatro que tenha eficácia para o público brasileiro e, mais de perto, para o público do Teatro de Arena, eficácia no sentido do acerto social deste teatro, isto é, da ‘humanização do homem’”, acrescentando que “apesar de todas as dúvidas, é preciso destacar que dificilmente se encontrarão no teatro brasileiro dos últimos anos experimentos e resultados dramatúrgicos e cênicos tão importantes como Zumbi e Tiradentes”, para, em seguida, concluir que “a poética de Boal é um ensaio ímpar e completamente singular no domínio do pensamento estético brasileiro”.

Em Arena conta Tiradentes, Boal aprofundou sua pesquisa com o chamado “sistema coringa”, uma síntese de várias experiências feitas pelo teatro ocidental e oriental com o objetivo de criar um elo intermediário entre autor, atores e público, de modo a que fosse apresentada dentro do espetáculo a análise da própria peça.

Em termos gerais, o encenador procurou plasmar as contribuições somadas de Piscator, Stanislaviski e Brecht, tentando superar dialeticamente as antíteses em que se debatia o teatro moderno.

Engajamento e inventividade

Ao analisar a intensa atuação de Boal à frente do Teatro de Arena, Décio de Almeida Prado, em O teatro brasileiro moderno, observa que o Arena funcionou “como ponta de lança do teatro político brasileiro, encenando alguns espetáculos memoráveis, revelando atores e autores e, antes de mais nada, realizando um notável trabalho de teorização”.

Humanista que era, Augusto Boal lutou contra todas as formas de opressão e colonialismo, posicionando-se a favor dos oprimidos e explorados. Como dramaturgo, teórico ou encenador, primou sempre pela inventividade, pesquisando novas formas teatrais que o orientaram a desenvolver um teatro libertário e transformador, por isso mesmo, de clara expressão política.

Em texto sobre uma experiência tardia de Boal (O corsário do rei, encenado em 1985), o professor João Roberto Faria reconhece inicialmente os riscos que o engajamento traz para o artista: “Como evitar certos esquematismos ou simplificações? Como conciliar satisfatoriamente a intenção didática e a finalidade artística? Muita gente torce o nariz diante de obras engajadas. Há quem faça o mesmo diante do delírio formalista. Mas a verdade é que a obra de arte autêntica resulta da relação dialética entre forma e conteúdo. Assim, é um equívoco criticar qualquer artista pelo seu ponto de partida. O que importa, sempre, é o resultado final.”

Concordando plenamente com tais ideias, podemos concluir que é muito fácil reduzir o Teatro de Arena, sob a liderança de Boal, a um movimento de inspiração esquerdista ou ainda taxar o Teatro do Oprimido, que o celebrizou, como uma vertente comunista obsoleta. Tal atitude, entretanto, não ajuda a entender um grupo de criações tão singulares que tomaram lugar inconteste na trilha da evolução histórica percorrida pelo teatro brasileiro moderno, no qual o nome de Augusto Boal está definitivamente gravado.

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