Histórias de famas

Histórias de famas
Os escritores Tchekhov e Tolstói em foto de 1901

Julián Fuks

Há sempre uma distância intransposta entre a obra de arte e sua cópia, um cisma entre o autêntico artista e seu símile, aquele que tenta a ele se igualar. Abismo tantas vezes feito de um mero lapso, um detalhe originário – pinceladas sem a vibração necessária, milimétrico tempo entre as notas, palavras em desarranjo incalculado. Por que, então, a simulação, o logro, o apelo ao falso? É um mundo de ambições comuns este em que vivemos, um mundo de competições infaustas. Artista e símile compartilham as mesmas paredes nas galerias, igualam-se nas prateleiras das livrarias, ombreiam-se em salões e auditórios.

É um desses encontros, paradoxo temporal em que o impossível pretendente a artista depara com a figura que quer tornar-se, que Herman Melville narra em O Violinista e Outras Histórias, recém-lançado no Brasil.

O violinista alçado ao título, um homem de meiaidade modestamente simpático, parecendo “satisfeito, feliz e corpulento demais” para que pudesse ter sido brindado com um grande talento, revela-se no entanto síntese de toda a virtude artística. “Homem derrotado”, pois sua fama já pertence ao passado, não se deixa abater pelo infortúnio. Ao contrário, carrega “uma certa expressão serena de profundo e tranquilo bom senso”, assume “uma aura divina e imortal, como a de algum deus grego eternamente jovem”.

A ele contrapõe-se Helmstone, o narrador, garboso poeta que a crítica insiste em depreciar, expoente da pretensão deslocada, da ambição infrutífera e desmedida – vítima do mundo de ostentação que Melville deslinda em outros contos da mesma obra. Inconformado com sua própria mortalidade, para ele um destino intolerável, esse homem agoniado se empenha com débil retórica em negar os méritos do outro, em detratá-lo. Mas, desespero maior do falsário diante do autêntico artista, não consegue deixar de sentir-se também ele cativado.

O artista na vida real

Não será novidade dizer que Liev Tolstói era artista autêntico, e a perenidade de seus grandes romances, pontos álgidos da narrativa realista no século 19, impediria qualquer pessoa de juízo de pensar o contrário. É com surpreendente eloquência, entretanto, que ele confirma tal fato no contexto em que mais poderia se complicar, nos textos teóricos, nos panfletos políticos, nos sermões religiosos, nas cartas que escreveu ao fim da vida, tudo agora reunido em Os Últimos Dias.

Não que sua leitura venha a provocar um arrebato encantatório ou que resulte fácil hoje concordar com seus pressupostos: Tolstói não era um visionário, estando rigidamente ancorado no espaço e no tempo que habitava. Chega a ser penoso vê-lo advogar por um imprescindível viés religioso em toda criação literária, ouvi-lo argumentar que “o homem racional não pode viver sem religião porque
somente a religião dá ao homem racional a necessária orientação sobre o que fazer”. Mas a limpidez com que vai dispondo suas ideias sobre a página, a clareza impoluta com que se expressa e a profunda coerência de sua lógica acabam por desvelar outra coisa. Quase não há dogmatismo em Tolstói: o obscurantismo de seu discurso tem a medida exata de sua obscuridade pessoal, é apenas o ponto além do qual sua razão não conseguiu chegar.

Compreendido esse limite, o leitor poderá fruir sem ressalvas do saudável radicalismo do aristocrata russo que abdicou de sua riqueza para “enxergar a vida de verdade, do povo simples e trabalhador, e entender que a verdadeira vida é essa”. Poderá deixar-se tomar pela perplexidade diante de seu vigoroso anarquismo, sua definição dos governos como “organizações de violência em cuja base não há nada além do brutal arbítrio”, dos exércitos como “necessários para os governos apenas para dominar o povo trabalhador”, de sua visão sobre “o ultrajante direito à propriedade da terra”. Ferinas são também suas opiniões sobre a Igreja e sobre suas liturgias tolas, sem sentido – “mistura grosseira” de superstições e enganos. E até mesmo sobre a ciência: “reunião de
conhecimentos ocasionais em nada relacionados uns com os outros, com frequência inteiramente desnecessários”, que “costumam apresentar os mais grosseiros erros, hoje expostos como verdade e amanhã refutados”.

A condição indispensável

“Verdade” é palavra com destaque em seu glossário, e buscá-la pressupõe tratar de abater todas as ilusões, recusar mistificações, livrar-se da hipnose a que todos nos vemos submetidos. À arte não cabe o papel de iludir ou encantar, de agradar imitando a beleza, e sim de comunicar entre um humano e outro “o pavor do sofrimento ou o fascínio do prazer”, expressando na obra esses sentimentos a fim de promover um contágio.

Entre criador e receptor surge um mesmo estado de espírito, elimina-se a divisão entre espectador e artista, libertam-se ambos de seu isolamento e de sua solidão, e “o objeto que provocou esse estado é uma obra de arte”. “Quanto mais forte o contágio”, alega Tolstói, “melhor é a arte como arte”.

Para o artista, então, a condição indispensável seria a sinceridade, a força com que ele experimenta aquilo que decide converter em objeto, a “necessidade interior de expressar o sentimento que transmite”. Bastaria isso, e a clareza que o autor recomenda, e a singularidade que se tornou cláusula impreterível de toda criação na modernidade, para que o artista autêntico sobrepujasse as pretensões vãs e se diferenciasse dos enganadores, possibilitando que sua obra pertencesse à arte, e não às suas falsificações. Se Tolstói silenciou seus detratores e, em detrimento de suas próprias crenças, conseguiu habitar a posteridade, foi por ter-se feito o maior exemplo de sua própria hipótese.

O Violinista e Outras Histórias
Herman Melville

Trad.: Lúcia
Seixas Brito
Arte % Letra
168 págs.
R$ 30

Os Últimos Dias
Liev Tolstói
Org.: Elena Vássina
Trad.: Anastassia Bystsenko, Belkiss, J. Rabello, Denise Regina de Sales, Graziela Schneider e NAtalia Quintero
Companhia das Letras
432 págs.
R$ 29,50

Julián Fuks é jornalista e escritor

(1) Comentário

  1. À arte não cabe o papel de iludir ou encantar, de agradar imitando a beleza, e sim de comunicar entre um humano e outro
    “o pavor do sofrimento ou o fascínio do prazer”
    sentimentos a fim de promover um contágio.

    Entre criador e receptor surge um mesmo estado de espírito
    elimina-se a divisão entre espectador e artista e
    “Quanto mais forte o contágio”, alega Tolstói,
    “melhor é a arte como arte”.

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