Notícias de outras ilhas: Helena Zelic
(Foto: Mariana Lazzari)
Helena Zelic (São Paulo, 1995) é poeta, comunicadora, militante feminista. Autora de Durante um terremoto (Patuá, 2018) e das plaquetes 3.255km (nosotros, 2019) e Caixa preta (Primata, 2019).
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Judite Canha Fernandes, Sophia de Mello Breyner Andresen, Natasha Felix. A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.
Escolhi três poemas que marcaram essas últimas semanas da quarentena – que deveria ter sido um direito para a maioria das e dos trabalhadores do Brasil. São três poemas, três mulheres; duas portuguesas, uma brasileira: Judite Canha Fernandes, Sophia de Mello Breyner Andresen, Natasha Felix. Custo a encontrar as palavras para explicar o fio que liga essa meada (porque não é muito fácil encontrar as palavras, assim encerrada, sem caçá-las nas calçadas). Vou tentar: os poemas, assim como muitíssimos outros, parecem fazer um apelo à humanidade, com um pé no presente e um no futuro. O de Judite retoma a luta da militante ambientalista hondurenha Berta Cáceres, assassinada em 2016, e a partir disso traça a trilha dos alimentos e da natureza, da sustentabilidade da vida, de perguntas que precisam ser feitas. O poema de Natasha é um suplício à vida e ao amor, um poema marcado pela raça, atravessado pela violência policial; um poema que, como os protestos de hoje e de antes, se levanta, se mantém vivo. O de Sophia foi escrito dois dias depois da Revolução dos Cravos e isso já diz muita coisa sobre o que é sentir-se livre e sobre toda a responsabilidade de dizer. Mês passado, o escolhi para ler em voz alta ao abrir uma plenária e, embora só pudesse ver em pixels os rostos das e dos companheiros, a tremedeira na hora de ler até se pareceu com a da vida real. A gente não sabe muito bem para onde vai esse trem desenfreado, e é daí mesmo, da contradição, que vem a necessidade de estar em movimento. É bom estar entre as pessoas. É bom se agarrar às utopias: se empenhar em velar os mortos, cuidar dos vivos, querer urgentemente transformar.
Síntese II (Poemas de Bukavu)
Judite Canha Fernandes
a terra minguara, não se via grelo nem almofada de semente,
tudo secou.
não dava milho
não dava batata
não dava nada.
cinco quilos de farinha da onu
cheia de percevejos e ilusões
para nós sete.
não se entendia.
queria adiar futuro nos filhos,
nas filhas depositar secreta esperança
cinco quilos cinco
e terra morta.
nem adiar um sonho se podia fazer.
cinco horas a pé
pés na terra imaculada
batendo, batendo
pisando minhoca, graveto espalhado
berta flor a caminho
entra na sala e pergunta:
a terra não dá nada. por quê?
entra vestida de furacão
inteligência funda, antiga, nos olhos.
(conheci-a assim, entre as bombas,
numa universidade pintada de fresco,
a tinta vermelha ainda hoje no meu vestido branco)
há diamante perto?
há.
(havia joia, não havia milho)
há buraco? há.
a água vai na companhia? vai.
(a água corre como é seu hábito)
então fez ponte.
o ar juntou água juntou enxofre
murchou tudo.
berta flor foi e comunicou aos líderes.
a minha terra morreu de tanto lhe remexerem os bolsos
disse a palestrantes do vácuo ceos e outras
araras.
calem as explosões. calem-se.
quero dormir.
e o diamante? diz um, brilho de cobiça nas mãos.
berta disparou-lhe cinco quilos de farinha da onu nos olhos
e espetou-lhe na boca os percevejos.
estão a ver como o pessoal é político?
por causa da indústria automóvel
o filho de berta ainda não anda.
por causa de um offshore no panamá a batata foi exterminada.
por causa dos estaleiros de viana o joaquim não dorme.
por causa de uma hidroelétrica
ou de uma construtora tínhamos sede,
e berta cáceres foi assassinada na sua casa,
ainda março mal começava.
***
Ao homem que se levanta comigo
para L.
Natasha Felix
espero que as unhas cresçam
só depois solicitações, juras,
os números.
qualquer justificativa.
espero que você não.
por favor.
mantenha a respiração acontecendo
beije sua mãe na testa, peça a bênção a ela.
não olhe a polícia nos olhos
se for preciso esconda-se bem.
***
Revolução
Sophia de Mello Breyner Andresen
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta
Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como página em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação