Hassane Kouyaté: a arte como um exercício do livre-arbítrio

Hassane Kouyaté: a arte como um exercício do livre-arbítrio
Pedro Napolitano Prata/Divulgação

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Hassane Kassi Kouyaté é diretor de teatro, contador de histórias e músico, e uma das mais importantes figuras da cultura francófona da África Ocidental hoje. Porém, um único substantivo pode resumir melhor as suas contribuições culturais: griô.

Nas culturas africanas, o griô atua como repositório das tradições orais; mediador de disputas; autoridade política e centro da vida cultural de uma comunidade. Radicado na França, Hassane é herdeiro de uma longa tradição de griôs burquinenses e malinenses, que chegou a ele através de seu pai, Sotigui Kouyaté, ator conhecido principalmente por sua estreita colaboração com o diretor de teatro Peter Brook, e pela divulgação da cultura da África Ocidental na Europa.

Encenador prolífico, Hassane dirigiu cerca de quarenta peças teatrais na França e em Burkina Faso, seu país de origem, além de ter exercido o cargo de diretor na companhia Deux Temps Trois Mouvements e do festival internacional de contos Yeleen, que acontece anualmente em Burkina Faso.

Hassane chega ao Brasil nesta semana para o Encontro Boca do Céu 2024, onde ministrará uma aula magna sobre cultura oral e contação de histórias. Ele conversou com a CULT sobre sua trajetória, a cultura da África Ocidental, sua história e seus paralelos com a cultura brasileira.

 

Como é a relação dos griôs com as novas tecnologias? E como a cultura oral tem se comportado frente à globalização e a digitalização?

Na verdade, o ser humano em geral, e os griôs em particular, têm de se adaptar à evolução do mundo. E as novas tecnologias fazem parte dela.  Os griôs se adaptam, sim, às novas tecnologias, e a prova disso é que você e eu estamos realizando esta entrevista a milhares de quilômetros de distância. E isso não apaga a essência de nossas culturas, o essencial e riqueza da comunicação. Se formos espertos, as novas tecnologias devem ser usadas apenas como um algo “a mais”; algo que é diferente dos tempos ancestrais. Ou seja, podemos combinar os dois, e isso, sim, pode construir riqueza. A riqueza não é eliminar, mas adicionar. Creio que o futuro só pode brotar do passado. Por isso, não podemos construir um presente, nem um futuro sem nos alicerçarmos no passado. Seria como se esquecêssemos a tradição, e uma sociedade sem tradição é como uma árvore sem raízes. Estamos vendo isso nos dias de hoje.

Uma árvore mais bem enraizada no solo pode abrir seus ramos verdes sobre todas as partes do mundo. É algo parecido com o que acontece na sociedade. O quão mais firmes estamos em nossa cultura e em nossas tradições, quanto mais nos enriquecemos dessas tradições, mais podemos enfrentar as crises da modernidade; mais podemos adaptar as tradições à modernidade. Quanto melhor entendermos as tradições, melhor conheceremos suas vantagens, seus inconvenientes e seus mecanismos. Portanto, o conhecimento da tradição é uma promessa de progresso.

Nesse contexto, a tecnologia ajuda a aproximar diferentes culturas ou a apagar suas características originárias?

A tecnologia, quando bem utilizada, ajuda a aproximar as diferentes culturas. Na verdade, podemos fazer o bom e o mal uso de tudo. O que fazemos dessas tecnologias? As usamos como um valor a mais ou como um meio de nos tornar escravos? Eu digo que devemos utilizá-las, sim, mas quando são necessárias. E elas podem nos servir a muitos propósitos. É como podemos dizer da oralidade e da cultura escrita. Eu não as oponho. Ambas se completam quando bem utilizadas. Uma não elimina a importância da outra; uma enriquece a outra. As novas tecnologias hoje podem auxiliar a compreender e a ver certas coisas. Veja, eu posso lhe mostrar certas imagens e vídeos de cerimônias, certas imagens que você não veria mesmo se eu as descrevesse de forma oral. Isso faria viajar sua imaginação. O vídeo pode mostrar muitas coisas e descrevê-las muito bem. Não seria a mesma coisa que presenciá-las, é verdade, mas podemos dizer que, nesse sentido, as novas tecnologias podem ser úteis. E podemos dizer que o ato de mostrar essas imagens torna a compreensão do outro muito mais rápida do que qualquer descrição oral ou escrita que poderia ser feita. Por isso esse processo pode ajudar a nos aproximar do outro e a compreender o outro de forma muito mais rápida. Mais uma vez enfatizo: você está no Brasil e eu estou na França neste momento. A tecnologia torna possível que nos falemos.

Você vê ressonâncias da cultura oral da África Ocidental na cultura brasileira?

Acho que, para além da questão cultural, o Brasil é composto por pessoas de todas as partes do mundo, e uma parte significativa delas veio de várias partes da África. Portanto, a cultura brasileira é colorida por uma parte da cultura africana. Quando partimos de certos ritmos musicais, de certos passos de dança, encontramos similaridades com suas contrapartes da África Ocidental. Eu diria que, de uma maneira ou de outra, há influências da África Ocidental na cultura brasileira, haja vista a história de seus povos.

Como você se vê levando adiante o legado de seu pai?

Eu tive a chance de ter herdado dele e da sociedade onde nasci alguns ensinamentos e valores importantes. Valores de partilha e valores que colocam o humano e a humanidade no centro de tudo. Valores de escuta também: escutar tudo aquilo que nos cerca e que vivemos; mas, sobretudo, o valor da militância também. Quando aplico esses valores, compartilho aquilo que penso ser importante e essencial para a humanidade. Eu tento não os trair, e compartilhar ao máximo aquilo que eu sei porque – como dizemos entre nós – nosso conhecimento não é senão uma gota de água em um oceano de sabedoria. Mas os oceanos são feitos de muitas gotas d’água.

Sotigui Kouyaté (Ali Ghandtschi/Berlinale/Divulgação)
Sotigui Kouyaté (Ali Ghandtschi/Berlinale/Divulgação)

Nesse contexto, qual é o papel da preservação do meio ambiente?

Quando falo da partilha e de respeito, lembro que é preciso respeitar tudo. É preciso respeitar o outro, mas não somente o outro humano. O outro são os insetos também. O outro são os animais e as plantas. E o respeito está no princípio de tudo. E, para respeitar o outro, é preciso primeiro amar a si mesmo. E quando você ama a si mesmo você vai amar o outro.  O outro não é apenas o humano. Falamos do meio ambiente, mas o meio ambiente é feito de muitas outras coisas, como a fauna, a flora e os minerais. Essa concepção esbarra no que muitos podem chamar de animismo, o que eu considero ser a minha cultura mais profunda: respeitar tudo que é vivo, a água, o ar, o fogo, os insetos, os animais, as pedras e o humano. Enfim, tudo.

Nos últimos dois anos houve um período de instabilidade política em vários países francófonos da África Ocidental, incluindo Burkina Faso. Como a vida cultural da região tem se comportado diante desse cenário?

É preciso ter em mente que esses países são excessivamente ricos. Não apenas em seus subsolos com seus minerais preciosos, mas ricos em sua humanidade e em suas múltiplas culturas. Em sua música, sua cultura culinária, sua indumentária e em seus rituais. Essas são riquezas enormes. Tudo pode desaparecer nesses países, menos isso, além da arte produzida lá, que é uma outra coisa.  Essa cultura é a essência de todos esses povos, e eles resistem porque são muito fortes culturalmente. Pode haver problemas políticos ou politicagem, que eu diria que é, na verdade, um mecanismo político que há no lugar da democracia. Esses problemas não fazem parte da cultura desses povos. A cultura da África Ocidental é a cultura da abertura, da alegria, da solidariedade e do exercício da felicidade. Isso é o que se mantém para além dos conflitos. Depois disso vem a arte, que é tudo que se concretiza a partir dessa cultura.

Efetivamente, esses países estão resistindo. Se tomarmos o exemplo de Burkina Faso, há festivais internacionais de cultura todos os meses. Isso é muito importante. Há também manifestações culturais e artísticas todos os dias, para além da Semana Nacional de Cultura [festival que acontece em Burkina Faso, a cada dois anos, desde 1990], como apresentações de teatro, música, dança, feiras de gastronomia, etc. Mas existe também aquilo que o imperialismo propaga. O imperialismo quer fazer crer, com os seus sistemas de comunicação, que às pessoas de Burkina Faso apenas resta chorar. Mas isso é falso. Burkina Faso é um país onde há festa e alegria, mas acima de tudo há a consciência da riqueza cultural que existe lá.

O que você tem a dizer sobre a experiência revolucionária liderada pelo ex-presidente Thomas Sankara?

A autodeterminação é o alicerce de todos os povos. Isso significa decidir por si mesmo e fazer as suas escolhas pessoais. Todos os povos devem ter o direito de decidir por si mesmos. Creio que isso é muito importante. O imperialismo, seja ele qual for, é perigoso para o desenvolvimento de todos os povos do mundo. Eu vivi a era de Thomas Sankara e estive no movimento revolucionário. E o que queríamos? Queríamos ser autônomos; queríamos a suficiência alimentar, poder andar de cabeça erguida com o orgulho de sermos burquinenses. Isso foi importante para nós. E creio que é algo importante para todos os povos do mundo: a autodeterminação, a gerência direta sobre seu destino, a influência positiva dos outros povos, não a influência imperialista.

De que forma o contato entre a cultura africana e a cultura europeia pode criar novos caminhos para a arte?

Caminhos novos não podem ser abertos senão através do respeito pelas pessoas. Uns pelos outros. Ou seja, pela perspectiva de que não existem culturas superiores nem inferiores, mas apenas culturas que se iluminam e que se enriquecem mutuamente. Desde o princípio, é preciso pressupor uma relação de igualdade, não apenas material, mas intelectual e pensar no que há de diferente no outro e que pode nos enriquecer. Não podemos esperar que a produção artística e intelectual da África Ocidental siga os padrões estéticos europeus. Não estou dizendo para desprezarmos a estética criada pelo Ocidente, mas a verdade é que somos multiculturais. Não há como não falar em multiculturalidade nos dias de hoje porque temos a internet, o rádio e outros meios que nos permitem estar em contato com outras culturas. É a pluralidade de propostas artísticas que pode nos ajudar a desenvolver o livre-arbítrio dos povos e das populações. Entretanto, o imperialismo não tem interesse em mostrar que as populações da África Ocidental também são ricas culturalmente. Apenas tem interesse em mostrar a miséria, a calamidade e que lá não se tem o suficiente – tanto quanto os europeus – para serem considerados humanos. É isso que o imperialismo quer mostrar: que não há riqueza na África, senão pelo subsolo com seus minerais. Mas temos outros tipos de riquezas que podem inquietar o espírito e o pensamento ocidentais.

Victor Kutz Manso é estudante de jornalismo e estagiário de redação da Cult.


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