“A inteligência artificial pode criar as mais perfeitas ditaduras”

“A inteligência artificial pode criar as mais perfeitas ditaduras”
O escritor Leonardo Padura (Luís Costa/Revista Cult)

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No Brasil para uma série de encontros, o escritor cubano Leonardo Padura conversou com a Cult sobre literatura, utopias, a realidade cubana pós-Fidel e o mundo contemporâneo. Para o autor de O homem que amava os cachorros, livro que completa 15 anos de lançamento em 2024, o mau uso da inteligência artificial pode representar uma ameaça às democracias.

Escolhido em votação aberta, Padura foi o autor convidado da última edição do Clube de Leitura do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Nesta quarta-feira, 11, ele participou de encontro com o também escritor Rodrigo Labriola, mediado por Suzana Vargas. Em São Paulo, Padura passa ainda pela 35ª Bienal e pelo Festival Literário de Cultura Judaica. Em seguida, cumpre agenda nas regiões Norte e Nordeste do país.

Cinco anos depois da última visita, o sr. reencontra os leitores brasileiros. Como foi construída sua relação com o Brasil?

O Brasil sempre esteve na minha cabeça. Em Cuba, há uma imagem muito gentil do país.

O Brasil é música, futebol, é o Cinema Novo. São as novelas, é Maria Bethania, Chico Buarque, Elis Regina, Milton Nascimento. Em suma, é uma enorme quantidade de relacionamentos, cultura e literatura.

Principalmente no meu caso, uma relação que se tornou pessoal com Rubem Fonseca, que me parece um dos grandes escritores do século 20 e infelizmente pouco conhecido fora do universo da língua portuguesa.

Volto para reativar algo que para mim tem sido muito importante, que é a comunicação com os leitores brasileiros. Acredito que são poucos os países fora do mundo da língua espanhola onde tive um encontro mais eficaz e afetivo com os leitores. Porque, aqui no Brasil, existe aquele costume que horroriza os europeus: as pessoas se olham nos olhos e também se tocam.

Lançado há 15 anos, O homem que amava os cachorros expõe a derrota das utopias igualitárias do século 20. Sem utopia, o que resta ao sonho humano? É possível viver sem ela?

É difícil, mas não impossível, porque neste momento vivemos sem utopia. Quais são os grandes modelos socioeconômicos hoje? Estados Unidos, Rússia e China, e os três me causam espanto. Por isso acredito que seria necessário refundar uma utopia verdadeiramente justa e igualitária, verdadeiramente democrática, algo que a União Soviética e o mundo socialista não conseguiram, porque a igualdade era obrigatória.

Sempre digo que sou otimista às segundas, quartas e sextas, pessimista às terças, quintas e sábados, e aos domingos descanso. Ultimamente tenho mais dias de pessimismo. O bom e o muito ruim que um fenômeno como a inteligência artificial podem trazer, por exemplo, é algo que me preocupa muito.

A inteligência artificial pode criar as mais perfeitas ditaduras, porque pode ser aquela que governa a mente de cada um dos indivíduos e cria verdades que não são verdades, cria opiniões que não são opiniões. Estamos em um momento muito complicado na história da humanidade e acho que seria preciso um pouco de sensatez para saber aonde estamos indo.

Mario Conde, seu detetive, é um tipo nostálgico e melancólico. Um policial que, como o sr., um ex-repórter investigativo, examina o que está envolto em mistério. É uma espécie de alterego? O que há de Leonardo Padura em Mario Conde?

Não existe propriamente um alterego, pois Mario Conde tem toda a sua história pessoal que envolve o fato de ter sido policial e ter comportamentos e formas de entender a vida muito peculiares. Mas é um personagem muito próximo. Primeiro, porque ele é um homem da minha geração. Segundo, porque é um homem com alguns gostos e preferências muito parecidos com os meus.

Pela literatura, pelas relações com as pessoas, pela sua perspectiva sobre a sociedade e porque Mario Conde me ajudou desde o início a criar o ponto de vista a partir do qual observo, tento me explicar e tento escrever a realidade cubana. Isso o torna muito próximo a mim. Mario Conde envelheceu comigo, evoluiu comigo, viu o desenvolvimento da vida cubana e a deterioração de muitos elementos da sociedade cubana nestes anos comigo.

E essa proximidade torna muito fácil transmitir ao Conde as minhas preocupações, as minhas obsessões, as minhas questões, para tentar encontrar alguma resposta possível.

A literatura pode tanto descrever um tempo e um lugar histórico quanto abordar a essência do humano. Na sua prosa, como o sr. alia o que está enraizado na realidade cubana ao que é universal?

Isso tem uma solução muito difícil, mas uma resposta muito fácil. A resposta está na compreensão daquela frase dita há um século por Miguel de Unamuno. Ela diz que a essência da arte é encontrar o universal nas entranhas do local e o eterno no circunscrito e limitado.

Se em um dos meus romances falo, por exemplo, da perversão da utopia igualitária, esse é um fenômeno que nos afetou a todos. Se falo de um sentimento como o medo, é um sentimento que já sofremos todos. Então, penso que, a partir desse contexto específico cubano, tenho tentado defender esse olhar para o universal, e às vezes tenho feito isso até me abrindo para histórias que não acontecem em Cuba.

Em O homem que amava os cachorros, isso é muito claro. Tive que ir a Moscou, México, Espanha, França, onde a história ocorria. Em um romance como Hereges, onde eu queria falar sobre a liberdade do indivíduo, não era essencial que eu fosse à Amsterdã de Rembrandt, mas descobri que para ser mais universal naquele fenômeno, o desejo humano de praticar a liberdade individual, eu deveria passar por diferentes momentos históricos e diferentes contextos geográficos e culturais.

E fui a uma sociedade à qual haviam chegado judeus que tinham sido perseguidos na Espanha pela sua religião e, ao praticarem-na, podiam agora reprimir os membros da sua própria comunidade que não a seguissem conforme alguém dissesse que devessem seguir.

Se você ler isso com uma perspectiva universal, estaremos falando de uma ditadura, em um sentido muito local, mas que pode ter uma proporção universal.

Milan Kundera disse algo no caso do romance que considero muito importante, que a essência da arte do romance é a investigação da condição humana. Considero isso uma grande verdade.

Quando morreu Fidel Castro, em 2016, houve quem afirmasse que desaparecia com ele o próprio século 20. Passados quase dez anos, o quanto do imaginário revolucionário do último século sobrevive na vida cubana?

O atual governo cubano se autoproclama um continuador das políticas estabelecidas por Fidel e posteriormente continuadas por seu irmão Raúl. O lema é Somos continuidade. No entanto, eles foram forçados a fazer certas mudanças econômicas e sociais. Isso alterou bastante a sociedade. Na época de Fidel, por exemplo, era impossível ter acesso à internet normalmente em Cuba. Nos últimos dez anos, isso foi possível. Não era possível viajar sem autorização de saída, e agora é possível. Existem pequenas empresas privadas.

Mas a essência do sistema não mudou. O sentido de independência e soberania do país é um tema essencial nesse projeto, como também é uma questão essencial a melhor condição de vida para as pessoas. E essa condição deteriorou-se muito. Hoje em Cuba faltam alimentos, remédios, água, eletricidade e também esperança.

Nos últimos três anos, mais de 1 milhão de pessoas, ou 10% da população, deixou Cuba. Isso mostra que há um grande número de pessoas insatisfeitas que não encontram espaço no país. E estou falando apenas daqueles que conseguiram sair, não daqueles que gostariam de partir, que são muito mais, mas que não têm recursos econômicos nem possibilidades para fazê-lo. Isso, creio eu, é o que melhor ilustra a situação atual que se vive em Cuba hoje.

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