A guerra contra o STF, as forças armadas e o jornalismo
O caso Daniel Silveira – o deputado condenado pelo STF, indultado por Bolsonaro, e promovido à presidência da principal comissão parlamentar da Câmara dos Deputados pela base governista – continua como uma ferida exposta da padecente democracia brasileira. Bolsonaro e o bolsonarismo desafiaram acintosamente o Poder da República que tem justamente a prerrogativa constitucional de conter os arbítrios do Executivo, e colocou o Judiciário em uma encruzilhada: ou aceita a escalada na colisão entre os Poderes até as últimas consequências ou recua e admite que o atual ocupante do Palácio do Planalto redefina unilateralmente os próprios poderes. Quem disser que sabe como essa situação vai se resolver, provavelmente estará mentindo.
Para completar o quadro democraticamente vexaminoso, o bolsonarismo convocou para a arena os que pretendem falar pelas Forças Armadas. Não vou aqui repercutir as reações de generais e dos clubes militares, pois repercussão é tudo o que eles desejam, mas basicamente essa gente sem a menor noção do que seja uma democracia liberal nem qualquer compreensão do papel das Forças Armadas num quadro constitucional democrático, simplesmente chamou o STF para trocar porradas na lama, arrotou intimidações e desafios típicos de valentões de rua e rugiu para mostrar quão ameaçadores são para quem se atrever a pôr freios ao movimento bolsonarista.
Os que falaram em nomes dos militares, em suma, trocaram as fardas pelo uniforme do bolsonarismo. E sugeriram em suas bravatas que não querem mais ser simplesmente o braço armado do Estado, como previsto na Constituição, mas a mão armada do atual presidente da República e apenas dele. Por atrás de toda a cortina de fumaça de Pátria e Defesa da Liberdade, conversinha mole em que já somos escolados, o que ecoa é um triste discurso de que as Forças Armadas aceitariam ser a polícia particular do bolsonarismo. Um episódio lamentável e muito triste para quem ama e respeita a Constituição brasileira.
Noves fora as bravatas, Bolsonaro e o bolsonarismo – no qual forçosamente incluo também os generais que se prestam a esse triste papel de sacrificar a imagem da instituição militar aos seus interesses como membros de uma facção política – lutam desesperadamente para parecer maiores do que efetivamente o são. Quando a vitória eleitoral em outubro lhes parece uma possibilidade cada vez mais remota, é do interesse do bolsonarismo águas turvas e agitadas e muita fumaça no ar, quer dizer, todo o caos necessário para que as pessoas não entendam o que está de fato acontecendo no país, seja politicamente que economicamente.
Fumaça nos olhos, distrações, diversionismo são táticas essenciais a este ponto para que não se notem a miséria, os indecentes preços dos alimentos, dos combustíveis e das tarifas públicas, a ausência de perspectiva de futuro, e o desemprego, que são os fatos que todo o dia marcham inexoravelmente ao encontro dos brasileiros. Mas também para não se tenha ideias claras sobre os empenhos do presidente e dos seus coligados para transformar a democracia brasileira em um laboratório para as suas fantasias autoritárias e para projeção de um Estado em que o presidente e os seus não prestem contas, não sejam contidos pela Lei nem sejam controlados por sistemas de contrapesos.
O fomento da confusão é facilitado por algumas razões, inclusive a baixa compreensão popular dos assuntos públicos. Mas há também uma falha fundamental nos sistemas que deveriam esclarecer o público sobre questões básicas de política e democracia, a começar pelo jornalismo.
Se o jornalismo cobre os ataques do presidente da República contra o Poder Judiciário em termos de ‘quem perde e quem ganha’, como podemos esperar que as pessoas entendam que se trata aqui de uma perigosa disfunção democrática, e não simplesmente de um campeonato em que, neste momento, se joga uma partida decisiva entre o time de Bolsonaro e o do STF? Enquadrar e representar as investidas contra a Suprema Corte como uma competição esportiva faz desaparecer o imprescindível horizonte normativo, baseado num juízo de valor sobre comportamentos compatíveis com regimes democráticos. Afinal, esportivamente falando, merece ganhar o time com melhores jogadores e melhores táticas – e o time do presidente acabou de marcar um gol. Mas é isso o que, de fato, está acontecendo?
Se um jornalista telefona para um general para pedir um comentário sobre um ato da cúpula do Poder Judiciário, como evitar que o cidadão comum ache que o Poder Judiciário e as Forças Armadas estão no mesmo patamar de poder no ordenamento republicano? Isso já vem de um tempo. Quando o bolsonarismo estava sendo adotado pelas viúvas da ditadura e pelos oficiais de pijama dos clubes militares, surgiu o jornalismo de caserna, pedindo a generais para comentar a crise política ou as consequências de haver ou não impeachment, e repercutindo arroubos antidemocráticos de generais que já salivavam ante a possibilidade de voltarem à política, quiçá ao governo. É evidente que essa atitude leva o público (e o próprio milico) a pensar que as Forças Armadas ocupam um lugar importante num governo civil e são praticamente mais um dos Poderes da República. Não são. Mas fica a impressão que o jornalismo ajudou a criar.
O jornalismo, portanto, deveria repensar a sua responsabilidade na manutenção das falsas impressões, estas que involuntariamente servem aos propósitos antidemocráticos do bolsonarismo. Seja revendo certos enquadramentos inadequados quando ocorre uma carga de Bolsonaro contra as instituições republicanas, que não ajudam a população a entender o que realmente está em jogo, seja evitando oferecer megafones e lentes de aumento para militares que revelam não saber o lugar que constitucionalmente lhes cabe na ordem democrática.
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Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes