Privado: Gosto se discute

Privado: Gosto se discute
O sociólogo Pierre Bourdieu (Reprodução/ Organ Museum)

 

Considerado um dos maiores sociólogos de língua francesa, Pierre Bourdieu (1930-2002) foi também um dos mais importantes pensadores do século 20. Sua produção intelectual, desde a década de 1960, estendeu-se por uma grande variedade de objetos e temas. Crítico mordaz dos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais, Bourdieu construiu um importante referencial no campo das ciências humanas.

No entanto, mesmo reconhecida pela originalidade, a obra de Bourdieu é objeto de grande controvérsia. A maior parte de seus críticos, numa leitura parcial de seus trabalhos, classifica-o como um teórico da reprodução das desigualdades sociais. Não obstante, a reflexão de Bourdieu se destacava por uma singularidade. Para ele, os condicionamentos materiais e simbólicos agem sobre nós (sociedade e indivíduos) numa complexa relação de interdependência.

Ou seja, a posição social ou o poder que detemos na sociedade não dependem apenas do volume de dinheiro que acumulamos ou de uma situação de prestígio de que desfrutamos por possuir escolaridade ou qualquer outra particularidade de destaque, mas está na articulação de sentidos que esses aspectos podem assumir em cada momento histórico.

Para o autor, a sociologia deve aproveitar sua vasta herança acadêmica, apoiar-se vida cultural, sobre as práticas de lazer e de consumo de cultura entre os europeus, sobretudo entre os franceses.

Fruto dessas experiências de investigação, Bourdieu publica, em 1976, uma grande pesquisa intitulada Anatomia do Gosto. Mais tarde, essa mesma pesquisa passa a ser objeto de publicação de sua obra-prima, lançada em 1979: o livro intitulado A Distinção (Ed. Zouk).

Nessas duas obras, Bourdieu e uma equipe de pesquisadores tentam explicar e discutir a variação do gosto entre os segmentos sociais. Analisando a variedade das práticas culturais entre os grupos, Bourdieu acaba por afirmar que o gosto cultural e os estilos de vida da burguesia, das camadas médias e do operariado – ou seja, as maneiras de se relacionar com as práticas da cultura desses sujeitos – estão profundamente marcadas pelas trajetórias sociais vividas por cada um deles.

Mais especificamente, Bourdieu afirma que as práticas culturais são determinadas, em grande parte, pelas trajetórias educativas e socializadoras dos agentes. Em outras palavras, ele afirma, causando um grande mal-estar à época, que o gosto cultural é produto e fruto de um processo educativo, ambientado na família e na escola – e não fruto de uma sensibilidade inata dos agentes sociais.

Capital cultural incorporado

Nesse sentido, Bourdieu põe em discussão um consenso muito em voga, relativo à crença de que o gosto e os estilos de vida seriam uma questão de foro íntimo. Para o autor, o gosto seria, ao contrário, o resultado de imbricadas relações de força poderosamente alicerçadas nas instituições transmissoras de cultura da sociedade capitalista.

Para fundamentar essa afirmação, Bourdieu argumenta que essas instituições seriam a família e a escola; seriam elas as responsáveis pelas nossas competências culturais ou gostos culturais.

De um lado, chamou atenção para o aprendizado precoce e insensível desde a primeira infância, no seio da família, e prolongado por um aprendizado escolar que o pressupõe e o completa (aprendizado mais comum entre as elites).

De outro, destacou os aprendizados tardio, metódico e acelerado, adquiridos nas instituições de ensino, fora do ambiente familiar, em tese um conhecimento aberto para todos.

Assim, a distinção entre esses dois tipos de aprendizado, o familiar e o escolar, refere-se a duas maneiras de adquirir bens da cultura e com eles se habituar.

Ou seja, os aprendizados efetuados nos ambientes familiares seriam caracterizados por seu desprendimento e invisibilidade, garantindo a seu portador certo desembaraço na apreensão e apreciação cultural; por sua vez, o aprendizado escolar sistemático seria caracterizado por ser voluntário e consciente, garantindo a seu portador uma familiaridade tardia com a produção cultural.

Essas duas formas de aprendizado, segundo Bourdieu, seriam responsáveis pela formação do gosto cultural dos indivíduos.

Seria, especificamente, o que chamaríamos de “capital cultural incorporado”, uma dimensão do habitus de cada um; uma predisposição a gostar de determinados produtos da cultura, por exemplo, filmes, livros ou música, consagrados ou não pela cultura culta; uma tendência desenvolvida em cada um de nós, incorporada e que supõe uma interiorização e identificação com certas informações e/ou saberes; um capital enfim, em uma versão simbólica, travestido em disposições de cultura, portanto, fruto de um trabalho de assimilação, conquistado à custa de muito investimento, tempo, dinheiro e desembaraço, no caso dos grupos privilegiados.

Descompasso educacional

Seria pertinente perguntar: qual o significado dessas contribuições de Bourdieu para a interpretação das culturas? Qual o significado da perspectiva crítica sobre a produção do gosto cultural nas sociedades capitalistas?

Para responder a essa questão, valeria fazer uma pequena digressão. É sabido, entre os sociólogos da educação, que todas as relações educativas e socializadoras são relações de comunicação. Isto é, a mensagem comunicativa, mais propriamente o conjunto de regras culturais disponibilizadas pela escola, sobretudo aquelas relativas às artes eruditas ou à cultura letrada, depende da posse prévia de códigos de apreciação.

Em outras palavras, a sensibilidade estética, a capacidade de assimilar e se identificar com um objeto artístico dependem fundamentalmente do acesso e, sobretudo, de um aprendizado prévio de códigos e instrumentos de apropriação, isto é, uma sensibilização anterior, normalmente conquistada no seio familiar.

Ora, diria Bourdieu, em uma sociedade hierarquizada e injusta como a nossa, não são todas as famílias que possuem a bagagem culta e letrada para se apropriar e se identificar com os ensinamentos escolares. Alguns, os de origem social superior, terão certamente mais facilidade do que outros, pois já adquiriram parte desses ensinamentos em casa.

Assim, existiria uma aproximação e uma similaridade entre a cultura escolar e a cultura dos grupos sociais dominantes, pois estes há muitas gerações acumulam conhecimentos disponibilizados pela escola.

Nesse sentido, o sistema de ensino que trata a todos igualmente, cobrando de todos o que só alguns detêm (a familiaridade com a cultura culta), não leva em consideração as diferenças de base determinadas pelas desigualdades de origem social. Bourdieu detecta então um descompasso entre a competência cultural exigida e promovida pela escola e a competência cultural apreendida nas famílias dos segmentos mais populares.

Em síntese, para Bourdieu o sistema escolar, em vez de oferecer acesso democrático de uma competência cultural específica para todos, tende a reforçar as distinções de capital cultural de seu público.

Agindo dessa forma, ele limitaria o acesso e o pleno aproveitamento dos indivíduos pertencentes às famílias menos escolarizadas, pois cobraria deles os que eles não têm, ou seja, um conhecimento cultural anterior, aquele necessário para realizar a contento o processo de transmissão de uma cultura culta.

Essa cobrança escolar ele chamou de violência simbólica, pois imporia o reconhecimento e a legitimidade de uma única forma de cultura, desconsiderando e inferiorizando a cultura dos segmentos populares.

Assim, convertendo as desigualdades sociais, ou seja, as diferenças de aprendizado anterior, em desigualdades de acesso à cultura culta, o sistema de ensino tende a perpetuar a estrutura da distribuição do capital cultural, contribuindo para reproduzir e legitimar as diferenças de gosto entre os grupos sociais.

Posto isso, as disposições exigidas pela escola – como, por exemplo, a sensibilidade pelas letras ou pela estética visual ou musical, enfim, uma estética artística, privilégio de alguns poucos – tendem a intensificar as vantagens daqueles mais bem aquinhoados, material e culturalmente.

Distinções

Desse modo, o gosto não é uma propriedade inata dos indivíduos, mas é produzido, resultado de um feixe de condições materiais e simbólicas acumuladas no percurso de nossa trajetória educativa. Para ele, o gosto cultural se adquire; mais do que isso, é resultado de diferenças de origem e de oportunidades sociais e, portanto, deve ser denunciado como tal.

Nesse sentido, as distinções do gosto cultural revelam, sobretudo, uma ordem social injusta, em que as diferenças de cultura de origem podem ser transubstanciadas em diferenças entre o bom e o mau gosto, numa permanente estratégia de classificar hierarquicamente a cultura dos segmentos sociais.

Para finalizar, seria interessante fazer algumas ressalvas a esse pensamento. Bourdieu é ainda hoje respeitado como um dos fundadores do paradigma teórico acerca das práticas de cultura. Contudo, uma série de trabalhos vem tentando atualizar suas contribuições, admitindo a existência de outros espaços transmissores e legitimadores de um dado gosto cultural. Entre eles podemos destacar o poder das mídias ou, no caso específico dos jovens, seus grupos de pares.

Portanto, nas sociedades modernas, uma gama complexa de referências de cultura partilharia com a escola e a família a formação do gosto de todos os segmentos sociais.


MARIA DA GRAÇA JACINTHO SETTON é professora livre-docente em sociologia na Faculdade de Educação da USP, autora de Rotary Club – Habitus, Estilo de Vida e Sociabilidade (Ed. Annablume).

VIDA E OBRA Pierre Bourdieu (1930-2002) – Filho de família humilde, Bourdieu ingressou em 1951 em letras, em Paris, e, quatro anos depois, se graduaria em filosofia. Prestou serviço militar na Argélia, assumindo, em 1958, o cargo de professor-assistente na Faculdade de Letras de Argel, quando iniciou pesquisas sobre a sociedade cabila e escreveu seu primeiro livro, Sociologia da Argélia. De volta à França, foi professor-assistente de Raymond Aron, em Paris. Dirigiu, por muitos anos, a revista Actes de la Rechercheen Sciences Sociales, presidiu o Comitê Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos e também lecionou no Collège de France. Morreu em Paris. Entre suas obras estão A Distinção (Zouk), Sobre a Televisão (Zahar), O Poder Simbólico (Bertrand Brasil) e A Economia das Trocas Simbólicas (Perspectiva).

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