Gosto pela experimentação

Gosto pela experimentação

Mariana Marinho

Cena de “Os ancestrais”, peça do grupo mineiro Teatro Invertido apresentada no FENTEPP

Desde o início do mês, Presidente Prudente foi tomada por corpos inquietos. As praças, ruas, teatros e ginásios da cidade paulista se transformaram num grande palco por onde passarão cerca de trinta espetáculos até o dia 21. Em sua vigésima edição, o FENTEPP – Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente optou por privilegiar trabalhos que reflitam sobre as inquietações contemporâneas rompendo com a narrativa linear e propondo novas formas de interação com o público.

“Há um movimento que não é de agora, mas que se fez muito presente no FENTEPP. A nova cena teatral brasileira não está cabendo nos espaços tradicionais, na sala italiana. Ela tem um gosto muito grande por espaços alternativos ou por um tipo de intervenção fora do espaço fechado. Essa é uma percepção interessante, porque o teatro começa a se desvincular do umbigo da tradição, indo em direção às pessoas, às ruas e aos espaços que não abrigam comumente a atividade cênica”, afirma Kil Abreu, que, ao lado da também jornalista Soraya Belusi, é o responsável pela crítica teatral do festival.

Ainda neste semestre, outros festivais de teatro acontecem pelo país. É o caso do Festival de Teatro de Fortaleza e o Festival Recife do Teatro Nacional, marcados para novembro. Para Abreu, é importante que o teatro brasileiro circule além do eixo Rio/São Paulo. “A população das cidades, sobretudo as que não têm uma vida cultural muito intensa, passa a conhecer de forma concentrada o teatro não comercial, presente na maior parte dos festivais”, diz.

Na entrevista a seguir, o jornalista, crítico e pesquisador de teatro Kil Abreu fala sobre a importância dos festivais de teatro e a atual cena teatral brasileira encontrada neles, em especial no FENTEPP.

CULT – Qual a principal importância dos festivais que acontecem fora do eixo Rio/São Paulo?

Kil Abreu – Acredito que a importância resida, sobretudo, no fato dos festivais promoverem uma circulação dos trabalhos. Algumas produções que acontecem, por exemplo, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte – que têm uma vida teatral com um volume bastante razoável – nem sempre conseguem circular, muitas vezes por causa de questões envolvendo a produção. Os espetáculos que mais me interessam são aqueles mais desamparados do ponto de vista da produção. Os festivais acabam sedimentando isso, porque, no geral, apresentam curadorias que zelam pela qualidade na pesquisa de linguagem. Acho que a maior importância está nesse lugar: a população das cidades, sobretudo as que não têm uma vida cultural muito intensa, passa a conhecer de forma concentrada o teatro não comercial, presente na maior parte dos festivais.

Hoje há uma visão negativa que circunda o universo teatral. Há quem diga que o teatro não tem público e que tampouco a cena brasileira vive um período de efervescência. Você concorda com essa perspectiva?

Numa cidade como São Paulo, que tem uma média de 400 estreias por ano, há uma plateia bastante generosa. É lógico que essa não é a situação de todos os lugares do país. Mas temos, às vezes por motivos inexplicáveis, uma situação que vai na contramão absoluta desse pensamento pessimista. O festival de teatro de rua do Acre, por exemplo, conseguiu reunir cerca de 5 mil pessoas em torno de uma apresentação. Isso é um acontecimento, algo fora da ordem. Um festival quase no meio da floresta.

Seria até algo para se pesquisar: o que faz com que as pessoas se sintam atraídas a transformar um espetáculo teatral quase que em um evento de massa, reunindo gente espontaneamente, num mesmo contexto em que dizemos que o teatro não tem público? Há uma dialética interessante.

Você acredita que os festivais contribuam para esse aumento de público?

De uma maneira ou de outra, sim. Como são eventos pontuais e normalmente têm grande visibilidade em lugares que não são megacidades, eles tendem a concentrar a atenção do público, fortalecendo sua formação. Não é apenas uma programação aleatória, mas uma programação com um conceito. Isso faz com que o público que está formando seu olhar teatral por meio desses festivais construa uma visão mais sofisticada do ponto de vista da linguagem.

Não estou dizendo que o teatro experimental é sempre consequente, bom e de boa qualidade. Estou dizendo que é uma área de relação com o olhar do espectador que é mais aventurosa, mais sofisticada e que se permite correr mais riscos, saindo do lugar comum de uma cena tradicional colada no naturalismo mais televisivo. Esse modo de fazer teatral fica mais visível dessa forma porque não está disperso na vida ordinária. É como se você pudesse indicar com o dedo um pedaço da produção teatral que precisa ser vista.

No Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente você dividiu as críticas com Soraya Belusi. O que você observou de mais interessante?

Há um movimento que não é de agora, mas que se fez muito presente no FENTEPP. A nova cena teatral brasileira não está cabendo nos espaços tradicionais, na sala italiana. Ela tem um gosto muito grande por espaços alternativos ou por um tipo de intervenção fora do espaço fechado. Essa é uma percepção interessante, porque o teatro começa a se desvincular do umbigo da tradição, indo em direção às pessoas, às ruas e aos espaços que não abrigam comumente a atividade cênica.

Quanto aos espetáculos em si, vivemos uma espécie de primavera no teatro brasileiro nesse sentido do gosto pela experimentação. Esse processo, que teve início nos anos 1980, se aprofundou nas últimas duas décadas. Agora, definitivamente não estamos seguindo estruturas modelares, de dramaturgias mais ou menos reconhecíveis. A criação no teatro brasileiro passa a ser efetivamente a criação no sentido radical. Cada espetáculo é uma forma, uma maneira e uma tentativa de se relacionar com a realidade particular recortada num determinado projeto.

Você poderia exemplificar essa criação radical com alguns espetáculos vistos no FENTEPP?

Vi muitas coisas interessantes. Destaco alguns espetáculos. Os ancestrais, do grupo mineiro Teatro Invertido, sob a direção de Gracê Passô, é um espetáculo bastante fincado na realidade brasileira. A cena começa com uma família sobre os escombros. Aconteceu uma catástrofe e a família está debaixo da terra, resistindo, viva. Essa cena é objeto de reflexão não só para essa situação: é uma reflexão que simbolicamente aponta para a própria sociabilidade brasileira.

A pior banda do mundo, da Cia. dos Outros, é um especulo desconcertante e muito radical no sentido que tematiza uma espécie de visão sobre o fracasso da existência ou da existência como um fracasso fundamental. Esse assimila isso na própria forma. O espetáculo corre um risco incrível, pois os atores se colocam na beira do precipício que eles mesmos constroem. São meninos aventureiros que criam uma cena totalmente distensa, fora da ordem.

[outras] Histórias reais, de Carlos Canhameiro é uma resposta cênica masculina à autobiografia Histórias Reais de Sophie Calle. Na obra, a escritora francesa traz revelações pessoalíssimas de uma vida totalmente fora de ordem. A performance é muito bem dirigida e instigante.

Por fim, destaco o Relampião, espetáculo de rua da Cia. Do Miolo e da a Cia. Pauliceia. É um teatro de rua militante, com todas as fichas, mas extremamente bem acabado. Uma dramaturgia com qualidade poética, presente na cena de rua hoje, sobretudo em São Paulo.

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