Os anos que precedem o golpe militar pelo olhar de Ruy Guerra

Os anos que precedem o golpe militar pelo olhar de Ruy Guerra
O cineasta Ruy Guerra (Divulgação)

 

A partir dos anos 1960 o cinema independente torna-se cada vez mais essencial em um processo de revisão de conjuntura que se desenvolve em oposição ao fracasso da experiência do cinema industrial, e era composto por uma produção artesanal, rápida e fora dos estúdios. O movimento era composto por uma nova geração de artistas que, influenciados pelo pensamento marxista, propunham uma militância em diversos campos artísticos, um processo amplo e não exclusivo do cinema. Com forte influência do neorrealismo italiano, o movimento que será denominado de Cinema Novo surge como maior tentativa de representação política da classe popular a partir do realismo crítico cinematográfico. Havia uma movimentação em prol da criação de uma cultura brasileira autêntica, fazendo um contraponto aos grandes estúdios que marcavam as produções das décadas anteriores.

A experiência do Cinema Novo na história do cinema foi uma marcante divisão de período para o cinema nacional: a partir de um inédito olhar ao outro de classe e de análise social, o protagonismo se voltava para a denúncia de cineastas brasileiros de maneira coletiva. O movimento de vanguarda conhecido pela apropriação do povo como maneira de demonstração de um mecanismo de exploração tem como base o campo artístico, e mais especificamente cinematográfico, como forma de fomentar a discussão e esclarecimento político. Seu âmbito estético é dimensionado com foco em um realismo crítico, que se revela motivado por um telos ordenador do processo histórico, em que uma futura Revolução era prevista. As obras do período, no geral, tinham em comum esse posicionamento político e ideológico.

“Os quadros de realização e, em boa parte de absorção do Cinema Novo foram fornecidos pela juventude que tendeu a se dessolidarizar da sua origem ocupante (…) Ela sentia-se representante dos interesses do ocupado e encarregada de função mediadora no alcance do equilíbrio social”, escreveu Paulo Emilio Sales Gomes em 1996.

Dessa maneira, houve uma diversidade de questões sociais e inquietações políticas que constituiriam a base para o movimento repercutir, sendo que esse poder foi dividido essencialmente em duas partes, uma anterior e outra posterior ao golpe militar de 1964. A primeira fase do Cinema Novo (1959-1964) foi marcada pelos anos que antecederam o golpe, uma supressão política dos ideais de esquerda. Esses fatores, que geraram intensa movimentação social, relacionavam-se com ideais românticos que se proliferaram de maneira significativa através dos anos 1960. Eles buscavam, em diversos âmbitos artísticos, uma identidade nacional que estaria não na população urbana, extensão da indústria e da alienação do homem, mas sim naqueles que estavam longe de todos esses símbolos duvidosos de progresso. Durante esse contexto histórico-social, as temáticas do Cinema Novo passaram a se voltar cada vez mais para os propósitos que retratavam os equívocos do discurso histórico e alienador.

Nessa experiência da primeira fase, passa a haver um deslocamento para o polo mais avançado da miséria brasileira: o sertão. Isso partia do pressuposto filosófico romântico e idealizado de conceber o popular-urbano contaminado ideologicamente pelo capitalismo, mas que no sertão haveria forças não-corrompidas que viveriam a força da revolução. A figura do operário é deixada de lado para o privilégio do sertanejo com respaldo na base literária realista dos anos 1930, muito presente na questão da valorização sertaneja – o modernismo literário atualiza o cinema e as profundas contradições do Brasil são encarnados no sertão e na figura do sertanejo. É nesse contexto que o longa Os fuzis (1964), de Ruy Guerra, se enquadra no movimento cinematográfico brasileiro, especificamente em sua primeira fase: na reflexão antropológica do conteúdo, linguagem e função do cinema nas questões sociais.

O filme conta a história de uma cidade miserável no sertão nordestino – Milagres – que deposita sua esperança em um beato adorador de um boi supostamente sagrado e onde soldados chegam para proteger um armazém com condimentos do ataque e saqueio da população faminta. Enquanto eles estão na cidade, um dos soldados acerta acidentalmente uma bala de fuzil em um morador, e essa morte causa uma breve revolta no cotidiano da cidade. Gaúcho, motorista de caminhão, fica indignado após a morte de uma criança por fome e rouba o fuzil de um dos soldados, tentando parar os caminhões, mas é assassinado.

Um aspecto de grande relevância para a forma do filme é uma divisão que se percebe por meio do contraste entre um caráter documental e ficcional. A estrutura do longa coloca lado a lado esses contrapontos entre a cidade e o campo, e é possível perceber o sertanejo com uma distância que se faz verossimilhante com o intuito do filme: o camponês não possui voz ativa e protagonismo marcante, uma vez que a passividade e a inércia do povo se reflete formalmente. A presença do autoritarismo, de um suposto heroísmo e de uma consciência se fazem exclusivas aos soldados, aos homens que vieram da cidade para controlar aqueles que mal sabem falar.

Nas cenas que os nativos são retratados podemos distinguir uma observação que se assemelha mais ao formato documental e expositivo, enquanto os soldados são enquadrados com maior dramaticidade. Os primeiros são constantemente tratados como uma coletividade, como um todo, ao passo que aqueles que são a personificação da autoridade e da ordem são dotados de complexidade. É como se dois filmes incompatíveis entre si fossem sobrepostos – um documentário sobre miséria e fome, e uma ficção com breve ação e suspense. No retrato da população local, supostamente refém de uma ignorância intrínseca ao ambiente e materializada na figura do boi sagrado, há a exposição de uma denúncia social trazendo a fragilidade e passividade de uma situação recorrente. Na outra esfera, há um grande contraste marcado pela onipotência e liberdade refletida em armas, fardas e repertório linguístico.

Cartaz de ‘Os fuzis’ (1964), de Ruy Guerra (Divulgação)

Como escreveu Renata Telles em Ler e ver: um crítico literário vai ao cinema (2007), “a imagem da população local, que infelizmente não é o operariado de Benjamin e Brecht, revela o vazio, o nada nunca preenchido, que deve ser apagado. A imagem do ator, que tem a capacidade de representar um personagem fictício criado pelo diretor e pelo roteirista, revela psicologia, senso e preenchimento”.

Nesse deslocamento entre o contraste estabelecido nos dois núcleos do filme há uma contraposição formal entre a dramatização e aproximação com camadas de complexidade dos soldados, e o distanciamento simbólico e evidente nos retirantes. Duas realidades implícitas na história brasileira coexistem de maneira contraditória em forma de miséria e civilização. Alguns exemplos disso estão nas cenas de assassinato – em que a câmera privilegia as expressões de tensão dos soldados e os cadáveres são deixados de lado pelo enquadramento, quase sempre distantes e desfocados.

A exposição dos soldados como personagens complexos frente ao olhar frio para os retirantes faz parte de um posicionamento que seria retomado em outras fases do Cinema Novo – especialmente após o golpe militar -, em que os cineastas se colocam em seu “local de fala” e partem para uma tentativa de retratos fiéis a partir do seu ponto de vista. Sem jornadas heroicas, exaltações exacerbadas ou grandes transformações – apesar de haver um esboço de transformação personificado no ataque de Gaúcho aos caminhões após indignação frente à morte de um nativo decorrente da fome, quando há um armazém abastecido de alimento – esse breve momento logo cessa com sua morte. As narrativas são usualmente cíclicas, com pontos de partida e chegada similares, em que a forma fílmica reflete a situação histórica.

Outro fator formal de ampla relevância para análise de Os fuzis é o privilégio do plano-sequência que traz à tona o ritmo do filme a partir do elemento temporal e espacial: ao mesmo tempo em que dinamiza a passagem do tempo entre as personagens, também permite ao espectador uma composição de cena que privilegia o retrato do todo, de uma percepção geral. Novamente há uma convergência formal através do conteúdo, e que promove uma percepção espaço-temporal que se equivale ao retrato que se pretende passar do sertão: um local esquecido em que os planos longos elaboram uma distensão temporal constituída sobre uma ociosidade e inércia constantes.

Analisando mais profundamente as personagens, pode-se dizer que a principal crítica do filme é personificada em Gaúcho, que não se sabe ao certo de que lado está, e rejeita ideais de poder às custas daquela população. Ele é o único que chega a agir frente às disparidades que se fazem presentes. Gaúcho é também o único que se opõe e toma a decisão de buscar reverter aquela demonstração de miséria que atinge seu ápice com a morte de uma criança faminta enquanto seu próprio pai não tem voz para sobre tudo aquilo.

Como lembra Eduardo Valente no artigo “Os fuzis, de Ruy Guerra”, “Jean-Claude Bernardet, em seu Brasil em tempo de cinema, o enquadra numa série de personagens de filmes do período como exemplo de que, apesar do cinema brasileiro da época buscar tratar do povo, a solução dos problemas vinha sempre de elementos de fora das camadas populares. Isso, segundo Bernardet, advinha do fato de que os cineastas, membros da classe média, realizavam filmes para esta mesma classe, apenas utilizando o povo como personagem. Assim é que eles não conseguiam localizar neste povo os agentes de mudança. A solução de Ruy no filme, porém, indica uma compreensão deste mecanismo, já que pela morte de Gaúcho e pela inutilidade de suas ações num âmbito social, fica mostrada a inadequação deste caminho individualista na mudança das estruturas sociais”.

Dessa maneira, é possível transpor de uma elaboração ficcional construída em 1964, toda uma realidade nacional a partir do olhar de Ruy Guerra, e dos cinemanovistas. A partir de uma breve análise conjuntural dos período pré-golpe, em que houve uma fase de grande movimentação social em prol de uma identidade nacional, é possível relacionar como esse contexto se enquadrava no cinema independente como militância de diversos artistas, cujo maior poder por muitos anos foi o da voz, e suas inúmeras tentativas de, por algum meio, mediá-la por aqueles que não a possuíam por meio de reflexões historicamente construídas acerca de inquietações a respeito de quem seria o outro de classe, o que lhe constituía e quais os seus anseios e revoltas.


Pedro Canin Mussallam é estudante de cinema na FAAP

 

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