Gloria Gervitz: o gozo da Palavra

Gloria Gervitz: o gozo da Palavra
A poeta e tradutora mexicana Gloria Gervitz (Foto: Divulgação)

 

Autora de um único Poema, Migraciones, escrito ao longo de quatro décadas, Gloria Gervitz (México, 1943) é um exemplo de entrega absoluta à poesia. Sua obra foi traduzida para o inglês, sueco, árabe, norueguês, polonês, entre outros idiomas. Recentemente, ganhou o Prêmio Iberoamericano de Poesia Pablo Neruda 2019.

A partir de Shajarit, publicado em 1979, seu Poema começaria a crescer como os galhos de uma árvore, e até hoje continua a reescrevê-lo: adiciona, exclui, move palavras, linhas ou páginas. Para dizer com Paul Valéry, trata-se de uma obra sempre relançada e reformulada. Em suma, um exercício do espírito. Porque o Poema está sempre em ação, se transformando, se decantando lentamente através do tempo.

O universo poético de Gervitz gravita em torno de uma voz que se desmancha em vozes, vozes femininas que dialogam, se interpelam, se buscam avidamente pelos espaços do sonho e da memória. Migraciones é, acima de tudo, a epifania gozosa da Palavra.

Blanca Alberta Rodríguez – Às vezes, um nome acaba se tornando um destino. Qual é a história do nome do seu Poema?

Gloria Gervitz – Sei que o título acabou ficando muito bom para o Poema, porque há muitas migrações dentro das migrações. Para mim, mais do que tudo, são migrações internas – embora também haja migrações externas: as mesmas palavras, versos, às vezes páginas inteiras, migraram de um lugar para outro dentro do Poema. Quantas vezes não migramos dentro de nós. Eu poderia lhe dizer que minha vida teve estágios tão diferentes, como se fossem vidas diferentes, talvez a única coisa que as une é que a protagonista fui eu. Encontrei o título muito rápido, foi quando o Fondo de Cultura Económica [1991] publicou pela primeira vez as três primeiras partes que tinha então de Migraciones [Fragmento de ventana, Del libro de Yiskor y Leteo]. Eu considerava essas partes poemas distintos, mas que podiam conviver juntos. Senti que “Migraciones” agrupava bem os três poemas, também porque em “Yiskor” falo diretamente de mulheres que migraram do leste da Europa para o México. O Poema e eu temos uma relação muito simbiótica, crescemos juntos e vivemos juntos por 43 anos. Ainda nessas últimas semanas, fiz pequenos ajustes; estranhamente, mais que remover, alguns versos voltaram ao Poema. Eu os tinha eliminado e fiquei surpresa por ter começado a acordar várias manhãs com um, dois ou três desses versos que voltavam e voltavam teimosamente. Havia feito bem em remover certos fragmentos, não eram ruins, mas não serviam mais ao Poema, eles funcionaram como andaimes que eu precisava incluir para continuar escrevendo, mas que nem o Poema nem eu precisávamos mais, então poderia removê-los sem que o prédio caísse. Mas os versos que me voltavam diziam que sim, que serviam. Acabei reunindo-os um após o outro, embora entre eles às vezes haja diferenças de até 30 anos. Quando os devolvi e lhes dei um lugar no Poema, eles pararam de me acordar. E não é que eu esteja relendo constantemente o Poema, só volto para ele quando tenho um convite para uma leitura, eu tenho como disciplina não ler ou aprender de cor o Poema. É como se ele viesse até mim, está dentro de mim e eu dentro dele. De fato, nesta versão mais recente (2019), sinto que talvez estamos nos despedindo o Poema e eu. Não direi, como em outras ocasiões, que agora sim o terminei, porque isso eu não sei, isso ninguém sabe, mas acredito que o Poema e eu estamos chegando cada vez mais perto do final.

Em sua poesia convergem duas vertentes religiosas, a hebraica e a católica, como elas se fundem?

Alimentaram minha vida. Eu nasci na Cidade do México. Descendo do lado paterno, bem como do lado do pai de minha mãe, de judeus do leste da Europa. Minha avó materna era de Puebla. Vivi praticamente toda a minha vida no México, apenas esses últimos anos estou em San Diego. Portanto, não vejo essas tradições como antagônicas. Escutei fragmentos de orações em hebraico, embora minha família não fosse religiosa e eu tivesse uma babá – Lupe, que é o único nome que menciono porque dizê-lo saiu da minha alma. Minha babá Lupe era de Oaxaca e não falava bem espanhol – mas me levava para a missa escondida de meus pais. Além disso, vivendo no México, você acaba amando, e muito, a virgem de Guadalupe, ela também é minha virgenzinha. Lembro de ir à uma reunião de escritores judeus latino-americanos em Jerusalém; lá entrei em um museu onde encontrei uma pintura da Virgem de Guadalupe, senti uma emoção incrível, lágrimas vieram a mim. Eu sou feita disso tudo. As irrupções de algumas palavras ou linhas em outras línguas, por exemplo, em hebraico ou melhor, em aramaico, estão assim porque eu as ouvi dessa maneira. E se eu as traduzisse, perderiam esse sentido litúrgico que têm sem que sequer as entenda. Eu acredito que as coisas mais importantes não são bem compreendidas. Quanto mais vivo, mais percebo que as coisas realmente importantes, as coisas verdadeiramente importantes, são um Mistério.

Há uma contínua tensão entre a voz e o silêncio em sua poesia, mais que entre a palavra e o silêncio, porque me parece que a Palavra também se constitui de silêncio. Assim se faz o ofício de poeta?

Em parte, sim, porque de alguma forma você está sempre querendo arrancar as palavras da poesia. E, ao mesmo tempo, essas palavras são sustentadas pelo silêncio e ganham força graças a ele. Em Migraciones, há muitas páginas cercadas pelo silêncio. Há uma em particular em que aparece a linha “me ouve ainda?” que está à margem direita e o restante da página vazia. A pergunta é cercada por silêncio e expectativa. É a voz que aguarda uma resposta, mas não sabemos se há uma resposta. A poeta tampouco sabe se haverá. Nesse sentido, poetas vivem em uma espécie de intempérie, como em uma orfandade constante. Não tem apoios. A voz dialoga consigo mesma e com o silêncio. As palavras pesam. E o silêncio pesa. E pesa essa intempérie das palavras que, por sua vez, são recolhidas e amparadas por todo esse silêncio que as rodeia e lhes dá corpo e forma. A poeta, o poeta, estão expostos ali, incrivelmente vulneráveis. Aconteceu-me que, nesta última vez que foi muito criativa, na qual o Poema foi me saindo muito de dentro, quase das entranhas, eu me senti muito exposta e com muito medo. O medo está presente desde o início, mas nesta versão mais recente adquire uma presença quase corporal. Há uma intempérie imensa em escrever, em habitar a poesia e em deixar que ela te habite.

Ao lado da voz está o corpo. Como eles estão ligados?

Estou cada vez mais convencida de que quem é de carne é de alma. A alma e o corpo não são entidades separadas. Tudo o que sentimos é através do corpo, tanto a dor como o sublime. Este corpo tão forte e frágil. Tão vulnerável, tão absolutamente mortal. Tanto a palavra como o corpo são alma, totalmente. Pense comigo, uma forma de expressão erótica do amor, como você a sente? Com o corpo, não é uma abstração. Mesmo se você imaginar, a imaginação está ancorada naquele corpo que é você. Parece tão estranho e quase absurdo saber quão mortais somos, saber que, no fundo, vamos morrer com tudo o que éramos, com todos nossos sonhos, ilusões, medos e que tudo e todos vamos acabar sendo esquecidos e mais esquecimento e mais esquecimento. A imortalidade está aqui para mim, porque que outra imortalidade existe, quem saberá que vai ser imortal de outra forma.

Há uma figura-chave em sua poesia: a sibila. É como “O lugar” da enunciação, mas também do anunciação. Poderíamos pensar nisso como uma metáfora para a poeta?

Talvez sim. A poesia tem algo profético para poetas. Penso que acontece em uma parte de nós onde não estamos muito conscientes, em uma pré-consciência, como quando você está acordando e consegue apreender algo do que sonhou, um fragmentozinho, como esta linda echarpe de seda tão delicada que quase se desfaz na mão. E dessa penumbra você consegue arrancar alguma palavra e é como se você violasse essa delicadeza, essa seda, para extrair palavras que às vezes acabam dizendo coisas que anos depois acabam acontecendo. Muito do que escrevi aconteceu ou acabei vivendo, embora não exatamente como está dito no Poema. Eu escrevi algumas coisas que realmente me surpreenderam; por exemplo, eu ainda não tinha visto ninguém morrer e, 14 anos antes de meu pai morrer, escrevi “meus mortos são tão reais quanto eu, e falo com eles em russo e em Idish”. Meu pai chegou ao México aos nove anos de idade, sua língua materna era o russo e em sua casa eles falavam tanto em russo quanto em idish, mas a partir daí, só falou espanhol. Acontece que 14 anos depois, nos últimos três ou quatro dias que meu pai viveu, o pouquinho que falava era em suas línguas esquecidas: russo e idish. Também me impressionou o fato de uma linha que escrevi há cerca de 30 anos: “somos os que se vão”, foi escrita aproximadamente da mesma maneira por um poeta judeu polaco em uma placa que está em uma estação de trem na Polônia, e eu nunca estive na Polônia. Outro exemplo, também de muitos anos atrás, está em um dos primeiros textos que publiquei: “Vou me casar com Abraham” [o atual esposo de Gloria Gervitz se chama Abraham]. Com esta frase, eu estava dando voz à minha avó poblana Carmen, que de fato se casou com meu avô, cujo nome era Abraham. Minha avó Carmen se suicidou aos 70 anos. Sua morte me impressionou muito e escrevi alguns poemas em prosa querendo dar voz a essa avó e esses poemas estavam se aproximando do tom que as Migraciones teriam mais tarde. Escrevo poesia há 50 anos, comecei no final de 1969. Minhas duas avós e minha mãe (a quem reinvento em minha poesia) foram e continuam sendo uma fonte de escritura e volto a elas repetidamente, embora a presença mais constante e mais forte seja minha mãe. Eu diria: A mãe. São mulheres muito complexas para mim, verdadeiros enigmas.

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FRAGMENTOS DE “MIGRAÇÕES”
Tradução de Nina Rizzi

a luz sobe em ondas
vagido

no silêncio imenso do nome
mortal e sozinha em sua errância
a transpassada palavra

tateando
a celebrante
velha mãe cúmplice

intercede

la luz sube en oleadas
                                           vagido

en lo callado inmenso del nombre
mortal y sola en su errancia
la traspassada palabra

a tientas
la oficiante
vieja madre cómplice

intercede

**

eu disse teu nome
e a casa era de ar

e a palavra
a presa

na desolação da fé

e a palavra                          cerva
na amplidão do silêncio
se despluma
dócil em sua infinita contradição
em sua misericórdia

e o coração se encerra
e o coração se abre
se deslumbrando

y dije tu nombre
y el lugar era de aire

y la palabra
la presa

en la desolación de la fe

y la palabra                               cierva
en la amplitud del silencio
se desploma
dócil en su infinita contradicción
en su misericordia

y el corazón se cierra
y el corazón se abre
deslumbrándose

**

de todas as tuas palavras
digo

e o corpo
velho girassol
se inclina
à carícia

se dobra
tímido
leve
se dobra

vis-à-vis você

as palavras
são tuas

já em você
te acolhem

já em você
seu voo

pode ouví-las?

me ouve ainda?

                             de ti las todas palabras
                        digo

                                    y el cuerpo
                                               viejo girasol
                                                     se inclina
                                                            ante la caricia

                                              se dobla
                                       tímido
                                                    leve
                                         se dobla

                                                 ante ti

                                                  las palabras
                                                                      son tuyas

                                                       desde ti
                                                    te acogen

                                                            desde ti
                                                                   su vuelo

                                                                             ¿no las oyes?

                                                                                         ¿es que ya no me oyes?

**

Disse:

eu sou A palavra
eu sou a que nasce nascendo de si mesma
abra-se para que te preencha de mim
abre teu sexo abre pra mim
e sente como penetro e te fecundo
abra-se ao prazer de estar prenha do que não se pode dizer
e agora que sabe
sinta
deixa te inundar
não tenha medo
estou aqui
aqui em você e com você
goza-me e goza tua vida
a única e tua e de você e para você
está é a única eternidade que terá nunca
dê a luz a si mesma
se empurra pra fora
e me nomeia

Dijo:
yo soy La palabra
yo soy la que nace naciéndose de sí misma
ábrete para que te llene de mí
abréme tu sexo ábremelo
y siente cómo penetro y te fecundo
ábrete al placer de estar preñada de lo que no puede decirse
y que ahora sabes
siéntelo
deja que te inunde
no tengas miedo
estoy aquí
aquí en ti y contigo
gózame y goza tu vida
la única y tuya y de ti y para ti
esta es la única eternidad que tendrás nunca
date a luz a ti misma
empújate hacia afuera
y nómbrame

Tradução de Nina Rizzi (poemas e entrevista)


NINA RIZZI é escritora, tradutora, pesquisadora, editora e professora

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