Gestos inesperados
A convivência de heranças autoritárias com tentativas de estabelecimento de uma experiência democrática tem sido responsável, no campo da produção cultural, por profundos antagonismos
Os estudos sobre o autoritarismo no Brasil passaram por transformações fundamentais. Na década de 1970, foram publicados trabalhos sobre o assunto, integrando especialistas como Juan Linz, Guillermo O’Donnell e Fernando Henrique Cardoso. A elaboração teórica estabelecia conceitualmente uma distinção entre autoritarismo e democracia, apresentando a perspectiva de que, de dentro de uma sociedade autoritária, a crítica ideológica poderia conduzir à criação de condições para superação de obstáculos e a libertação dos horrores do regime. Na década de 1990, se acompanhamos a produção acadêmica sobre o assunto, podemos perceber que houve uma mudança epistemológica profunda. Autores como José Vicente Tavares dos Santos, Paulo Sérgio Pinheiro, Oscar Vilhena Vieira e José Antonio Segatto elaboraram reflexões em que o olhar voltado para a experiência democrática descobre rastros, heranças, fios de continuidade, sinais insuspeitos de permanência de idéias e instituições autoritárias ao longo de tempos formalmente considerados como democráticos.
A mudança conceitual tem implicações que merecem atenção. A discussão teórica dos anos 70 apontava a democracia como expectativa, como horizonte centrado em um esforço de resistência contra as instituições autoritárias. Era imprescindível, para essa linha de reflexão, distinguir com clareza o autoritarismo e a democracia. Nos anos 90, essa distinção cede diante da ostensiva convivência, na experiência social, de elementos autoritários e democráticos. O “Dossiê Violência” proposto pela Revista USP, número 9, consistiu em um momento decisivo dessa virada de paradigma. A leitura dos artigos dessa publicação não apenas acentua a relevância do estudo da violência para caracterizar a sociedade brasileira, mas nos afasta das expectativas utópicas dos anos 70, fazendo com que a presença do autoritarismo na história recente, em várias formas, ganhe visibilidade.
A convivência de heranças autoritárias com tentativas de estabelecimento de uma experiência democrática tem sido responsável, no campo da produção cultural, por profundos antagonismos. O desenvolvimento de narrativas voltadas para o espaço da prisão, a renovação das articulações entre lirismo e memória, a diversificação formal do cinema nacional, a valorização de acervos e a intensificação do debate acadêmico sobre os valores canônicos fazem parte do quadro de transformações da cultura brasileira desde a década de 90. Desafios colocados por esses fenômenos estão, em parte, ligados a tensões entre discursos de resistência e regulamentos institucionais conservadores.
O ano de 2004 tem sido marcado, no campo intelectual, por diversos eventos referentes à reflexão sobre o autoritarismo brasileiro. As publicações dos livros de Elio Gaspari, bem como da coleção Visões do Golpe, são fenômenos que participam, em conjunto com ações diversas da mídia, de um movimento de divulgação editorial sem precedentes, em que essa reflexão, incentivada pela data de 40 anos do Golpe, se estendeu com rapidez. A incorporação da experiência ditatorial pelo mercado não se faz sem contradições, e suas repercussões sinalizam o despreparo da sociedade para discutir o assunto.
A atual presença de impulsos regressivos na vida política brasileira merece atenção. O fato de que o regime do governo atual apresenta limitações, o que tem causado frustrações em diversos segmentos sociais, tem sido explorado na mídia. Não faltam vozes elegantes simpáticas à barbárie sugerindo que o retorno do autoritarismo seria capaz de colocar ordem na suposta bagunça. A conduta do atual governo italiano, as intervenções de Bush e a crueldade institucional em alguns países asiáticos e africanos servem como referências para observar como o autoritarismo se reforça e se reinventa em muitas formas à nossa volta. Em um país marcado por imensos traumas coletivos e história densa de violência como o nosso, as vozes simpáticas à barbárie se esforçam para ocupar espaço. Relembrando a intensidade das discussões sobre cultura e crítica social, nas décadas de 1940 e 1960, percebemos como estamos em um momento em que a avaliação da produção cultural pede cada vez mais discussões articulando ética, estética e política, em favor de um aumento da clareza, em termos coletivos, sobre a presença, em nós, de tristeza e medo, frustração pelo sofrimento passado e insegurança quanto ao futuro.
Em 2003, o filme Casseta e Planeta – A taça do mundo é nossa, de Lula Buarque de Hollanda, apresentava em cenas humorísticas diversas referências à ditadura. Ao final do filme, em cena constrangedora, é simulado um debate com o público, em que supostamente ninguém seria capaz de propor aos artistas uma questão pertinente. No mesmo ano, a Rede Globo apresentou a telenovela Kubanacan, em que, entre os protagonistas, incluía um ditador e um atlético revolucionário. Disponibilizou ainda para venda a minissérie de Gilberto Braga Anos rebeldes. Nunca, como nestes dois últimos anos, o Brasil teve tantas oportunidades de comentar a experiência ditatorial.
Poderíamos criar a expectativa de que essas intervenções das editoras e da mídia levassem, ainda que de modo difuso e dispersivo, a um maior grau de consciência coletiva quanto às exigências e aos benefícios da democracia. No entanto, o movimento eleitoral brasileiro não é, nem remotamente, expressão de atendimento dessa expectativa. Entre os candidatos que se apresentam nos programas eleitorais é espantosa a quantidade de vozes que assumem discursos francamente autoritários. Alguns adotam, no extremo, requintes ou clichês estilísticos de retórica fascista. Essas estratégias, utilizadas de modo calculado e persuasivo, contam com uma simpatia da população por soluções imediatistas e purificadoras.
Quem conhece filmes como Quero te ver viva, de Lucia Murat, e 15 filhos, de Maria Oliveira e Marta Nehring, voltados para a aproximação dos perseguidos e mortos – e de seus descendentes –, tem noção do impacto traumático da experiência ditatorial. Impacto que não pode ser medido, que não se submete às categorias do senso comum. A ditadura destruiu, em muitos e importantes níveis, as chances de articulação democrática dos interesses sociais de várias gerações. O filme Anos 60, de Jean Claude Bernardet, unindo Glauber Rocha, música e poesia em um fluxo fragmentário, apontou de modo luminoso para a contradição entre os movimentos transformadores e os discursos das forças conservadoras, indicando pontos de encruzilhada que definiram ambivalências constitutivas do que viria a ser democracia dos 1980 e 90.
A provocação do filme de Bernardet, de espantosa atualidade, capaz de integrar as diversidades sociais e políticas em um percurso legível na sua própria “dispersividade”, se opõe radicalmente à tentativa de propor um olhar sobre o tema de Casseta e Planeta – A taça do mundo é nossa. O problema está longe de se reduzir ao fato de o filme se associar à mídia televisiva. Muito mais do que isso, o que importa examinar com atenção é o caráter profundamente conservador e autoritário do filme, que parece ter sido desenvolvido a serviço da própria ditadura. O filme passa longe do respeito às vítimas e da abordagem consistente dos problemas sociais do período. É fácil ver nele uma banalização imediatista da dor; nisso ele não se distingue de muitos programas de televisão. Mais do que isso, o filme ridiculariza tanto os generais como a resistência e trabalha com a sugestão de que a imbecilidade se difunde por toda parte (inclusive no público, como indica a cena final). A imagem de um Brasil imbecilizado é conveniente para a política autoritária, que encontra na incapacidade pública a base do argumento para o uso da força. Uma população imbecil não sabe se gerir; não espanta que diante dela surjam, na propaganda eleitoral, lideranças que apostam especificamente nisso. Em contraponto, o filme de Bernardet mostra que os generais conviveram com uma sociedade muito inteligente, em que a resistência encontrou vozes, passos, gestos inesperados.
Jaime Ginzburg
professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do CNPq, coordenador do projeto Literatura e autoritarismo, autor de Escritas da tortura, Literatura brasileira após Auschwitz e Política do esquecimento