Em 2016, ONG contabilizou mais de mil casos de ataques a obras e artistas em 78 países
Ativistas indianas com a obra 'Wood green figure life drawing', considerada obscena por exibir nudez feminina (Foto: IANS)
No ano passado, 1.208 casos de ataques contra a liberdade de expressão artística foram identificados em 78 países. A informação é do relatório “Arte sob ameaça – Estatísticas anuais sobre censura e ataques contra a liberdade artística em 2016”, publicado anualmente pela Freemuse, organização internacional criada em 1998 para denunciar o silenciamento de artistas e oferecer apoio e proteção.
O número representa um aumento de 119% em relação a 2015, quando houve o registro de 469 violações. As estatísticas incluem desde assassinatos, perseguições e prisões até atos de censura. Entre as tendências observadas pela organização, estão ações violentas de militâncias organizadas, ataques de setores da sociedade civil e casos de discriminação contra artistas mulheres e obras de temática LGBT.
Na Rússia, por exemplo, onde desde 2013 vigora uma lei que pune com multas e penas de prisão o que for considerado “propaganda gay” para menores, a temporada da peça All shades of blue foi interrompida por dois dias devido a ameaças de bombas nas imediações do teatro, em São Petersburgo. Alvo de protestos de ativistas ortodoxos, a trama mostrava o percurso de um garoto que decide assumir sua homossexualidade.
Na Índia, em dezembro, ativistas invadiram a mostra Jaipur Art Summit em protesto contra obras consideradas obscenas por trazerem corpos femininos seminus. As ativistas, que faziam parte das organizações Lal Sena e Rashtriya Hindu Ekta Manch, chegaram a levar as pinturas à polícia e agredir o artista, Radha Binod Sharma.
“Quando questionamos o artista [sobre a nudez da obra], ele respondeu que aquilo era ‘arte’ e ‘natureza’. Perguntei por que ‘arte’ e ‘natureza’ precisam ser retratados em uma mulher nua. Ele disse que isso é liberdade de expressão, então disse a ele que também era minha liberdade de expressão retirá-la da parede”, afirmou uma das ativistas ao jornal The Indian Express.
Episódio semelhante aconteceu na Bolívia, em outubro, quando um mural pintado por um coletivo feminista na fachada do Museu Nacional de Arte, em La Paz, foi vandalizado por um grupo que se sentiu ofendido por uma suposta “representação negativa” do Estado e da Igreja Católica contida ali.
Números
Ao todo, a organização contabiliza que em 2016 ocorreram 840 atos de censura ao redor do mundo (a Ucrânia lidera a categoria, com 557 filmes russos banidos do país), mas estima que o número seja muito maior, já que não é possível documentar, por exemplo, situações de autocensura motivadas por intimidação ou pressão social sobre os artistas.
Há ainda registros de 84 prisões, 43 processos, 40 perseguições ou ameaças, 16 ataques e três assassinatos. São as chamadas “violações graves”, categoria liderada pelo Irã desde que a Freemuse publicou o relatório pela primeira vez, há cinco anos, em parceria com o Conselho Econômico e Social da ONU.
Em 2016, o país foi responsável por 30 casos de violência, incluindo 19 prisões. Logo depois estão Turquia, Egito, Nigéria, China, Rússia, Malásia, Síria, Tanzânia e Uzbequistão, que com o Irã somam 126 das 188 violações graves identificadas pela organização.
Entre elas está, por exemplo, a condenação do rapper iraniano Amir Tataloo a cinco anos de prisão e 74 chibatadas por “promover valores ocidentais” no país. Popular entre os jovens iranianos, com mais de um milhão de seguidores no Facebook, Tataloo não é nem mesmo considerado um artista “engajado”, e quando se arrisca na política costuma ser a favor do regime.
Outros casos extremos incluem o assassinato do músico Amjad Sabri, ídolo no Paquistão morto por radicais do Talibã que condenavam o “qawwali”, tipo de música própria do sufismo, uma corrente mística do Islã praticada pelo cantor e condenada pelos extremistas.
“Com líderes populistas e nacionalistas questionando a universalidade dos direitos humanos, agora é o momento de documentar violações e usar os fatos para defender e ampliar vozes artísticas ameaçadas”, escreveu Ole Reitov, diretor executivo da Freemuse, na apresentação do relatório – que faz apenas uma menção ao Brasil.
Trata-se de um caso de censura ocorrido em Itabuna, na Bahia, com a retirada do poema “Quadrilha”, de Lívia Natália, de um outdoor da cidade. O texto fazia críticas à Polícia Militar e foi apagado a mando do governo estadual após parecer da Associação dos Policiais e Bombeiros Militares e seus Familiares do Estado da Bahia (Aspra), que rechaçou o trecho: “Maria não amava João / Apenas idolatrava seus pés escuros/ Quando João morreu/ assassinado pela PM/ Maria guardou todos os sapatos”.