Fragmentos para uma filosofia popular brasileira
(Foto: Roberto Reis/Arquivo Nacional)
Ouvir a cultura brasileira como caminho para encontrar a filosofia entre seus diferentes sotaques. Mais do que isso, ressaltar a cultura popular, constatar o seu entorno como cerne da experiência filosófica. Rafael Haddock-Lobo, professor do Departamento de Filosofia da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ, nos convida a adentrar nessa cartografia do que se chama “Brasil” (brasilidades e brasis que o Brasil não quer ver) e reverenciar Krenak, Abdias do Nascimento, Aldir Blanc, Cartola, Madame Satã, entre tantos outros que, sem pretensão filosófica, criaram ricos e complexos sistemas de pensamento. Confira um pouco do conteúdo que embasará o curso Filosofias populares brasileiras, que acontece nos dias 01, 08, 15, 22 e 29/09 no Espaço Cult.
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Existe uma filosofia popular brasileira? Sim.
Diria que ela se encontra em todos os cantos, becos, ruas, terreiros, aldeias, esquinas e rodas: de samba, capoeira, jongo ou macumba. Em todos esses outros lugares há complexas e potentes produções conceituais que precisamos aprender, de dentro de nossos muros de seguranças e certezas epistêmicas, a escutar.
A questão que tem me chamado a atenção, então, é a seguinte: será que a filosofia brasileira pode, ou deve, ser compreendida apenas a partir de sua herança europeia? Ou será, por outro lado, que as diversas perspectivas filosóficas vindas do continente africano ou as que aqui já estavam antes da chegada dos portugueses não podem ter sua dignidade filosófica também legitimada pela academia?
Não se trata, como alguns podem rapidamente tentar supor, de recair ou apostar uma vez mais em alguma espécie de nacionalismo. Mas, sim, de pensar que, se há alguma coisa que se chama “Brasil” (brasilidades e brasis que o Brasil não quer ver), alguma coisa ao qual este nome seja adequado diante da imensidão de pensamentos que, aqui, se encontram, tal “filosofia brasileira” deveria, também, levar em conta essa pluralidade de saberes.
Existem, sim, filosofias brasileiras. Existem aquelas que tanto conhecemos e ensinamos, mas existem tantas outras que, aos poucos, começam a ser notadas, como as filosofias de Krenak e Kopenawa, Tonkyre, de Abdias do Nascimento e Nego Bispo, de Helena Theodoro e Sueli Carneiro, de Renato Noguera, Eduardo Oliveira, Wanderson Flor do Nascimento, Marcelo Derzi Moraes, Katiúscia Ribeiro e mesmo daqueles e daquelas que sequer se consideravam filósofos, como Mãe Beata de Iemanjá, Stella de Oxóssi, Professor Agenor e os grandes pensadores das religiões afro-brasileiras.
Como uma última provocação no sentido de querer alargar mais ainda a noção de filosofia popular brasileira, lanço aqui a possibilidade de, para além disso, pensar se não poderíamos considerar grandes filósofos populares brasileiros figuras como Aldir Blanc, Cartola, Candeia, Estamira, Joãozinho da Gomeia, Madame Satã, Luiz Gonzaga, enfim, tantos como esses que, das ruas, sem nenhuma pretensão filosófica, nos legaram ricos e complexos sistemas de pensamento.
Vamos tomar como exemplo a máxima ética de Dona Ivone Lara: “alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho”. Ao contrário da ética da chegada que diz que se deve “chegar chegando”, como quando a gente entra no ônibus depois e já quer chegar na janela (essa seria a ética bandeirante, colonialista), Dona Ivone dá corpo às visões de mundo bantas, nagôs e indígenas que se encontram em pontos de caboclos e malandros e nos ensina essa outra “ética dos pés”.
Produção conceitual riquíssima também podemos ver nos pés que cantam de Fabiana Cozza. Ou seria sua voz que pisa no chão? A vibração da terra, em todo caso, que parece se produzir conceitualmente pelos calcanhares e pela planta dos pés de Fabiana são projetados pela voz estonteante que canta seus saberes “Dos Santos”. Herdeira de Dona Ivone, Fabiana nos mostra que os pés pensam.
Portanto, sim ao nome filosofia. Trata-se de um asseguramento epistemológico e político para essas outras experiências de pensamento que merecem e precisam ter suas dignidades reconhecidas. Isso para, em um primeiro momento, pensar que o que queremos reivindicar por filosofia brasileira é certamente composto pelas filosofias ameríndias e pelas filosofias africanas e afrodiaspóricas. Mas tudo isso que venho aqui elencando, desde o início do texto, é o que me faz, hoje, pensar um pouco para além do termo “filosofia brasileira”.
Meus devaneios me levaram, em um primeiro momento, a responder dessa maneira a questão dos sotaques: para termos tal filosofia justa com as alteridades que nos sussurram, em diferentes sotaques, a filosofia brasileira digna desse nome deveria, por princípio, se dedicar a ouvir o que tem a nos contar nossa cultura. Então, além do termo filosofia, que sei ser problemático, insisto na importância da cultura popular: para apontar um certo modo de olhar para o que está ao nosso lado, ao nosso redor, para pensar a filosofia como uma experiência com aquilo que vem ao encontro dela no mundo.
Diante disso, penso que algumas medidas metodológicas precisam ser tomadas: a primeira delas é a necessidade de não nos atermos aos livros para experimentarmos o que seria esta cultura brasileira – músicas, imagens, lugares e pessoas também devem ser experimentados a fim de assombrarem nossa escrita; a segunda é que precisamos desenvolver uma escuta não apenas para a cultura, pois isso de algum modo já temos, mas o real desafio é aprendermos a pensar a partir de uma experimentação da cultura popular brasileira, ou, melhor ainda, das culturas populares brasileiras.
A filosofia popular brasileira, desse modo, obriga a um trabalho de campo, obriga aquele ou aquela que se dedica à tarefa de pensar a cultura popular brasileira a que abandone a solidão, o silêncio e o conforto das salas, escritórios e bibliotecas, como fizeram Walter Benjamin, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, e vá às ruas, também com seu caderninho, aberto às experiências múltiplas que, somente assim, poderá vivenciar.
A tarefa, então, para a compreensão das filosofias populares brasileiras, é saber que a gira já começou e que precisamos entrar nessa gira. E que a tarefa do filósofo, então, não seja a de inaugurar a gira, mas a de, simplesmente, como nos ensinaram Os Tincoãs, deixar a gira girar.
Rafael Haddock-Lobo é professor do Departamento de Filosofia da UFRJ, do PPGBIOS e do PPGFIL-Uerj
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