A força de Kehinde e Rami

A força de Kehinde e Rami
A escritora moçambicana Paulina Chiziane, autora de 'Niketche: uma história de poligamia' (Foto: Divulgação)

 

Sempre que eu tento conectar alguma ideia penso em Hume e se eu estou agindo por semelhança, contiguidade ou causa e efeito. Estou pensando nisso agora porque tento encontrar uma justificativa plausível para aproximar Um defeito de cor e Niketche, além do fato de que quando me foi sugerido escrever sobre a literatura de mulheres negras, eu tenha pensado de imediato como seria incrível apresentar para as pessoas algumas das autoras negras que eu considero mais importantes, o que acabou perfazendo uma lista de pelo menos duas dezenas de nomes. No dolorido corta-recorta, sobraram-me não duas autoras, mas duas personagens das quais não consigo me desvencilhar. E foi assim, por esse critério mais afetivo que racional, que acabei fazendo a minha escolha. Depois de muito refletir, creio que o que me atrai em Kehinde e Rami é o modo como as autoras compartilham as experiências dessas duas personagens negras de modo que você é arrebatado por ambas.

Kehinde é a personagem principal de Um defeito de cor (2006), romance da brasileira Ana Maria Gonçalves. Rami é a principal personagem do romance Niketche: uma história de poligamia (2002), criado pela moçambicana Paulina Chiziane. Distantes no tempo e no espaço, as trajetórias de Kehinde e Rami têm pontos de inflexão que nos levam a pensar sobre o lugar das escritoras negras no panteão da literatura contemporânea de língua portuguesa.

Em comum, vemos o desenrolar da história de duas personagens femininas inesquecíveis criadas por duas escritoras que dominam o estilo literário do romance como poucos o fazem. Em desacordo, temos contextos históricos e de produção cultural bastante distintos. Enquanto no Brasil o romance já encontra um lugar de prestígio na literatura nacional desde o século 19, em muitos países africanos esse estilo literário só vai se desenvolver plenamente no período pós-colonial.

Autoras negras

No Brasil, desde 1859 temos notícias da presença de autoras negras no romance. Uma delas foi Maria Firmina dos Reis, primeira mulher a publicar um romance no Brasil. Em Úrsula, a autora contesta o regime escravocrata brasileiro no que será conhecido como o nosso primeiro romance abolicionista. Embora esse fato possa demonstrar uma seara aberta para a produção literária de mulheres negras no Brasil, não foi bem o que ocorreu.

Se no século 19 autores como Lima Barreto e Machado de Assis conquistaram fama no mundo das letras, a participação feminina negra na literatura foi muito mais esporádica. Dificuldade de acesso às editoras e à distribuição do material impresso, a segregação feminina ao mundo doméstico, a menor escolarização de mulheres negras e a desconfiança em torno da sua produção intelectual fizeram que apenas de tempos em tempos surgissem autoras com certo sucesso editorial, como Ruth Guimarães de Água funda (1949), Carolina Maria de Jesus de O quarto de despejo (1960) e Conceição Evaristo de Ponciá Vicêncio (2003) – que este ano participou a convite do governo brasileiro da caravana do Brasil no Salão do Livro de Paris.

Além dessas escritoras, podemos destacar também a produção de Cidinha Silva, Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães, Alzira Rufino, Mãe Beata de Yemonjá, dentre outras, que merecem ser lidas e colocadas em listas de vestibulares no lugar de certas Negrinhas! Puxando o gancho, é justamente sobre esse poder simbólico que refletimos quando escrevemos sobre escritoras negras. Num mundo em que o acesso ao mercado editorial é extremamente difícil, a mera existência dessas escritoras se coloca como uma questão para pensar como elas conseguiram fugir ao cerco e se colocar num mercado predominantemente branco.

Saber como grupos excluídos da produção simbólica e do discurso sobre si produzem narrativas de autoinscrição pode nos levar a construir um repertório mais amplo de representação sobre seus grupos de origem. Não que um autor ou uma autora negra tenham mais legitimidade para escrever sobre negritude, não que uma mulher tenha mais legitimidade para escrever sobre o feminino. Não estou falando de uma escrita redentora ou de que mulheres são menos preconceituosas quando falam do feminino ou que negros são menos preconceituosos quando falam de seu devir negro. Não se trata disso. Trata-se de saber como eles, através da literatura, narram e nomeiam suas experiências num mundo que limita sua fala sobre si. E, para mim, é a experiência de autoinscrição, não estereotipada, não reducionista, não moralista, sensual, mas sem a sensualidade barata com a qual vulgarmente são tratadas mulheres negras na literatura, que me chamou a atenção em Um defeito de cor e Niketche.

Kehinde

Alguns amigos já tinham me advertido que o início da leitura de Um defeito de cor poderia ser doloroso. Mais de uma pessoa já havia “começado a ler” o livro várias vezes ou estava tentando levar a leitura adiante, mas não conseguia ir além das primeiras páginas. Receosa de que minha experiência pudesse ser semelhante a essas e como a vida já me doía demais, adiei por meses o início da leitura até que o inevitável dia chegasse. Quando ele veio, vencidos os duros primeiros parágrafos, li 171 páginas de uma só vez sem ver o passar do tempo. Ainda bem que outras quase 800 me esperavam, porque Um defeito de cor é um daqueles livros que você começa a ler querendo que ele nunca acabe.

Kehinde, a personagem principal, torna-se a sua irmã mais nova, depois sua irmã do meio, sua irmã mais velha, sua ibeji e sua irmã-avó. Como a Ponciá Vicêncio, outro grande personagem da literatura negra de Conceição Evaristo, Kehinde se torna a principal personagem de sua vida, tudo gira em torno dela. A conversa com seus amigos, com sua família. O tédio quando o livro não está ao seu alcance. E isso ocorre porque Kehinde-Luísa é um dos personagens mais bem construídos da nossa literatura.

Logo no princípio do livro, Ana Maria nos apresenta a família de Kehinde vivendo num povoado em Savula (região do atual Benin): sua avó, a mãe, o irmão mais velho, a irmã gêmea e as tragédias que acabaram conduzindo a menina até a Ilha de Itaparica na Bahia, onde seria escravizada, inicialmente, para servir como acompanhante da filha do senhor da casa-grande, e seu retorno já mais velha ao Benin. Na casa-grande aprenderia a ler e escrever com Fatumbi, um escravizado muçulmano encarregado de ensinar as primeiras letras à sinhazinha da casa. Mesmo estando numa posição extremamente desvantajosa na escala social, Kehinde aproveita todas as oportunidades que surgem na sua vida. Mas ela não é uma dessas heroínas doces e sem máculas de certos romances. Ana Maria Gonçalves foge da armadilha de construir uma personagem positiva e isso é uma das coisas que mais nos atrai no romance. A autora não constrói uma personagem negra positiva em quem possamos nos espelhar, ela constrói uma personagem verdadeira e inteira com quem podemos nos identificar, com quem podemos compartilhar nossas experiências, o que torna a narrativa muito mais poderosa. Kehinde narra sua história em primeira pessoa desde sua infância, e nessa narrativa ela erra, brinca, trabalha, deseja e, às vezes, tem posições condenáveis.

Através da biografia de Kehinde, Ana Maria Gonçalves constrói um romance histórico que reconstitui com detalhes a instituição da escravidão, momentos políticos importantes como o da independência do Brasil e das rebeliões de escravos, o pluralismo racial, étnico, linguístico e religioso da época, oferecendo uma leitura rara da diversidade africana existente naquele momento, sobretudo, na apresentação dos personagens de origem muçulmana e no contraste dos cultos aos voduns e aos orixás, além da tensão e da violência existentes numa sociedade marcada pelo patriarcado e pelo regime escravagista. Outra questão importante exposta no romance de Gonçalves é a dos deslocamentos geográficos e da circulação social de mulheres negras, seja no golfo do Benin, quando podemos perceber a vulnerabilidade daquelas que estão no mundo “por si sós”, seja no Brasil, principalmente em meio urbano, onde escravas de ganho, alforriadas ou mulheres negras livres tinham uma circulação geográfica e socialmente diferenciada das senhoras brancas.

Mas são os afetos desse romance histórico que transformam o trabalho de Gonçalves em algo monumental. É a micropolítica de sua narrativa que nos ganha logo de cara. São os detalhes da vida social e íntima de Kehinde, o modo como ela constrói seus laços afetivos e lealdades, seus amores e irmandades num momento que juridicamente nenhum escravizado tinha direito à posse do próprio corpo que tornam o romance de Ana Maria Gonçalves obrigatório a todos que queiram entender melhor a história da formação da sociedade brasileira.

O livro tem defeitos? Deve tê-los.

Ana Maria Gonçalves CULT (Foto Leo Pinheiro / Divulgação)
A escritora mineira Ana Maria Gonçalves, autora de ‘Um defeito de cor’ (Foto: Leo Pinheiro/Divulgação)

Rami

“Marido não é pão que se corta com faca de pão, uma fatia por cada mulher.”

“Quinto round: Socorro, esta mulher me mata! Na altura em que tento fugir, levo uma garraiada na nuca. Vejo estrelas no céu nublado. Sexto round: Fui à guerra e perdi o combate. Desmaio.”

“Belo homem, quem és tu que nunca vi? O que fazes aqui? A Luísa fica atrapalhada e diz qualquer coisa ao ouvido do visitante. Faz as apresentações. Gagueja. — És amante da Luísa, não és? — acuso. — És sim. Saiba, meu senhor, que a Luísa é uma mulher comprometida. Ela roubou o meu marido e e eles fizeram dois filhos. Mas qual é o homem que não se deixa roubar por esta bela ladrona, meu senhor? O homem tenta disfarçar, mas atrapalha-se em cada passo e concluo: é mesmo amante dela. Fico com raiva. Esta Luísa, além de traidora, é uma fresca. Mal o marido se ausenta, logo salta a cerca. Adúltera! De repente fico com vontade de gritar e explodir tudo pelos ares. Penso mais um pouco: explodir tudo por quê? Estou aqui numa festinha de crianças para divertir-me e não para defender interesses conjugais de outro adúltero. De resto, esta mulher não tem carimbo de propriedade, não está registada em parte nenhuma, é livre. Bela como é, quente como deve ser, por que não aproveitar a vida? Esvazio o meu copo de vinho. — Conhece o meu marido, senhor? É o marido da Luísa. Um belo homem que se deixou roubar pelos encantos desta ladra. Mas não tenho raiva, não estou zangada. Apesar de rival, ela vingou o meu ciúme. Tirou o meu Tony dos braços da Julieta, vingou-me. Conhece a Julieta, meu senhor? Ela é bonita de cara, mas toda seca, assim, pele e osso. Osso sem tutano, que não faz nem caldeirada nem sopa. Eu sou uma mulher abandonada. Uma cadela sem dono, meu senhor. Por causa da Julieta e da Luísa.”  

Niketche é um daqueles livros do qual você não quer se separar. Aquele que à medida que vai chegando ao fim, você começa a ler mais vagarosamente ou reza para que as páginas se multipliquem porque você não quer que o livro acabe, não quer sentir aquela sensação de euforia e depressão pós-leitura, achando que nunca mais vai conseguir ler algo tão bom. (Só eu tenho essa sensação? Queria sempre que a história de Fabrício del Dongo, por exemplo, tivesse uma centena de páginas a mais!) Isso ocorre porque a empatia com Rami, a personagem principal, é imediata. Por mais que Rami erre (e ela erra, erra rude, erra feio) não conseguimos sair doseu lado. Rami é uma dona de casa que vive na região sul de Moçambique com seu marido Tony, chefe de polícia de etnia machangana. Ocorre que Tony, sem o conhecimento da mulher, mantém mais outras quatro esposas. Sim, quatro.

Desiludida, Rami decide ir ao encontro dessas mulheres para a desforra, mas nem tudo sai como o planejado. Logo de início, quando vai às vias de fato com a primeira delas, numa luta descrita em seis rounds, Rami perde a batalha e beira o ridículo quando acaba levando uma surra da oponente e precisa chorar e gritar por ajuda para escapar da enrascada em que se meteu. Mas, por um momento, a solidariedade com Rami é automática, pois embora ela mereça certa piedade, o modo como ela mesma encara e narra sua história, que chega ao patético, faz com que nos apaixonemos por ela.

A narrativa fluida, somada ao grande carisma da personagem e à reflexão profunda sobre a condição da mulher na sociedade moçambicana (mas não só), faz de Niketche: uma história de poligamia, um dos romances mais importantes da literatura de língua portuguesa deste século. Não, este não é um exagero.

Quando Paulina Chiziane nasceu, em 1955, seu país ainda não era independente. Foi apenas em 1975 que Moçambique se libertou do domínio colonial de Portugal. Naquele momento, mais de 90% da população moçambicana era analfabeta. Quando Paulina escreve Niketche, em 2002, 68% da mulheres adultas de seu país não sabiam ler nem escrever.

Chiziane, assim como outras autoras africanas como a senegalesa Mariana Bâ de Une si longue lettre (1979), elege como seus principais temas a condição da mulher na sociedade pós-colonial, as guerras civis, o mundo mágico, a poligamia, o sexismo e o racismo. Elas abordam a crise da sociedade tradicional mas ao mesmo tempo se perguntam se devem abandonar a tradição e seguir cegamente a modernidade.

Em Une si longue lettre (que mereceria uma tradução em português), logo após a morte do marido, Ramatoulaye escreve uma longa carta a Aissata, sua melhor amiga, onde expõe as dificuldades de uma mulher muçulmana numa sociedade onde tanto as marcas da tradição quanto da modernidade servem para limitar a vida das mulheres.

Mas voltemos a Niketche. No romance, a autora se posiciona contra a poligamia que coloca a mulher sempre numa posição de fragilidade emocional, mas também financeira. Se, perante a tradição, ser polígamo fazia com que os homens tivessem um compromisso jurídico e financeiro com todas as suas mulheres, na modernidade, ao ter amantes, esse vínculo é rompido. Então a forma da poligamia na modernidade é um modo de abandono da mulher que não tem nenhum tipo de direito jurídico similar ao casamento.

Ao tentar salvar seu casamento, Rami enfrenta as suas oponentes e, no embate, acaba sempre aprendendo algo novo, principalmente, no que se refere à vida afetiva. Com as mulheres do norte, aprende que amor e sexo são importantes na vida feminina e que ela não deve relegá-la a um segundo plano por causa de um marido ausente. E acaba concluindo que, se não pode contar com a lealdade do companheiro, talvez possa contar com a vingança de suas rivais. Mas o que sobrará para ela após isso?


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