Fome

Fome

Sérgio Tavares*

Talvez seja este o momento inimaginável, onde sinto que, pela primeira vez, posso interromper a cena, levantar-me e me vestir, mandá-lo embora. estancar esta ânsia e me preservar, por uma única vez, da devastação que sucede o gozo, sem medo do embrutecimento ou da reação hostil.

Entretanto, apesar do desinteresse dele, da debilidade óbvia e dos alertas racionais, não consigo evitar. giro o corpo e puxo a presilha do fecho ecler da saia, deslizando-a sobre os dentes. inclino o corpo e passo as pernas, uma a uma, pela abertura da cintura, depois as cruzo, em laço libidinoso. não uso calcinha.

Neste instante, meu corpo começa a reagir em abstinência. uma fúria explode em jorros de sangue fervente pela musculatura retesada, queimando a corda que controlava o animal voraz, sedento e insaciável. estou ardendo entre as coxas e já não consigo mantê-las fechadas. ele permanece sob os umbrais, exatamente onde o quero, prostrado, com uma secreção mole escorrendo sobre os lábios manchados de iodo, carcomidos.

Miro seus olhos e lentamente vou abrindo as pernas. descolo o sexo viscoso, úmido, uma rosa em chamas, latente. exponho-me, desvendo-me para ele como uma cadela que rola sobre si, intoxicada pelo cio. a princípio, ele permanece inabalado – e, mesmo que ele fique pateticamente amortecido, não posso mais parar; terei de me satisfazer sozinha – mas, num crescente vagaroso, seu rosto vai se transformando em algo assustador que teria me atemorizado em qualquer outra ocasião.

Um rasgo se abre no meio da sua cara macilenta e coberta pela barba vasta e imunda, uma versão sórdida de sorriso que revela cacos de dentes podres, fincados em gengivas enegrecidas. ele sustenta aquela ferida por alguns minutos, paralisado, emitindo um chiado bronquítico, monocórdio, então se arrasta para dentro do quarto. por um instante, a reação me confunde, mas logo me toma uma euforia, que salto da cama e vou ao seu encontro, apenas sobre escarpins vermelhos.

Aproximo-me agora sem receios, insinuante, olhos grudados nos dele, numa tentativa de sedução, esperando uma menção libertina. ele apenas responde com a mesma expressão vazia, e assim não reage quando começo a despi-lo. tiro-o os trapos de cima a baixo, peças ruídas e cobertas por uma gama de odores ruins, excrementícios, exceto a gaze que cobre um de seus pés, manchada de iodo e uma secreção escura.

Uma pasta negra de imundície cobre todo o seu corpo – é quase insuportável ficar próximo dele. uma tontura que começa a me embrulhar, e talvez essa cena, esse estranho que trouxe do lixão próximo à escola, seja uma forma inconsciente de me punir, mas não consigo evitar. estou encharcada, preciso me saciar e junto meu corpo ao dele.(…)

*Sérgio Tavares é escritor e jornalista. O texto publicado nesta edição é fragmento do conto Fome, que integra Cavala, livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2009, categoria Contos, publicado pela editora Record.

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