Fogo de Paglia
Camille Paglia, professora na Universidade de Artes da Philadelphia desde 1984 (Foto: Divulgação)
Camille Paglia nasceu em Endicott, estado de Nova York, em 1947, em uma família de imigrantes italianos. Tem doutorado em língua inglesa pela Universidade de Yale e é professora na Universidade de Artes da Philadelphia desde 1984.
Em 1990, ganhou súbita notoriedade com a publicação nos Estados Unidos de sua tese de doutorado, Sexual Personae: Art and Decadence from Nefertiti to Emily Dickinson, publicada no Brasil dois anos mais tarde.
Em 1992, publicou a coletânea de artigos curtos Sexo, Arte e Cultura Americana, editada no Brasil no ano seguinte. Vamps & Tramps saiu em 1996. Em 1998, publicou uma análise de Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, e, em 2005, o ainda inédito no Brasil Break, Blow, Burn, uma coletânea comentada de 43 poemas.
Paglia escreveu ainda regularmente no site Salom.com. É considerada uma das mais influentes intelectuais públicas dos Estados Unidos e seu trabalho repercutiu no mundo inteiro. No início dos anos 1990, em especial, envolveu-se em grandes polêmicas com o movimento feminista norte-americano.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Camille Paglia comenta sua obra e carreira, fala de feminismo, juventude transviada e cultura pop.
CULT – Você terminou de escrever Personas Sexuais em 1981, mas o livro foi rejeitado por sete editoras e acabou sendo lançado apenas em 1990. Como foi a passagem rápida da obscuridade para a notoriedade?
Camille Paglia – Surreal! Foi bizarro para uma professora de uma pequena faculdade de artes ser mergulhada em uma tempestade de polêmica internacional. Mas, como feminista amazona, guerreira, tenho prazer em travar batalhas!
Em 1968, você foi a única estudante de pós-graduação abertamente homossexual na Universidade Yale. Como foi sair do armário naquela época?
Paguei um preço profissional alto por minha franqueza. Houve muitos gays que ficaram no armário, esconderam a verdade e acabaram assumindo cargos bem pagos em universidades de elite. Senti que era um imperativo ético enfrentar o preconceito com ousadia. A ironia disso estava no fato de eu não ter vida amorosa nenhuma! Anunciei meu lesbianismo como ato abstrato de militância.
Que lugar a cultura popular e de massas ocupa em seu sistema de pensamento?
Essa foi outra área na qual fui penalizada em Yale. Um interesse pela cultura popular era rejeitado como não sendo “sério”. A cultura popular começaria a ser estudada pouco depois, mas sob uma perspectiva marxista negativa, por meio da Escola de Frankfurt. Adoro a sensualidade e a excitação da cultura popular, que vejo como um fenômeno pagão que desafia todos os códigos moralistas. Creio que é obrigação do intelectual permanecer conectado à imaginação popular. Muitas pessoas de esquerda são elitistas esnobes.
Você disse que a bissexualidade deveria ser a norma universal. Por quê?
Não entendo a heterossexualidade exclusiva ou a homossexualidade exclusiva. Acho tanto homens quanto mulheres belos e atraentes. Estudar a arte ocidental, com seus nus gloriosos, é receber um treinamento em resposta bissexual.
O mesmo pode ser dito dos fi lmes de Hollywood, com seus astros glamourosos. A sensibilidade bissexual não conduz necessariamente à ação bissexual, que é muito mais difícil. Somos todos prisioneiros de um passado particular e de limitações contemporâneas.
Mas eu sonho com um mundo em que aventuras bissexuais sejam a norma diária!
O que você pensa de Judith Butler, que, como pós-estruturalista, acredita que o gênero é um construto social, refratado por meio da linguagem?
O trabalho de Butler não passa de retórica. Não é baseado em estudos de biologia, história ou antropologia. Ela não faz mais que repetir fórmulas francesas vazias de signifi cado. Butler era estudante da Bennington College na década de 1970, quando eu criava problemas como professora lá.
Mais tarde ela se transferiu para Yale, mas nunca reconheceu o que devia ao meio teatral de Bennington, onde David Bowie, com sua transgressão de gêneros, nos servia de modelo.
Qualquer teoria do gênero que não consiga reconhecer o poder imenso dos hormônios sexuais é um absurdo prima facie. O pós-estruturalismo não enxerga a grandeza da natureza. Desprezo o jargão confuso de oportunistas acadêmicos como Butler, com seu salário enorme. Mas os livros pretensiosos dela saturam o currículo feminista em toda parte.
Desde James Dean, em Juventude Transviada, até o seriado de TV britânico Skins, o cinema e a televisão têm usado o mito do jovem errante. Por que esse mito é tão importante para a cultura moderna?
O feminismo vive reclamando da condição das mulheres, mas não se deu conta da crise de identidade masculina que se seguiu à Revolução Industrial. Os homens também estão sofrendo! Com o crescimento maciço da classe média, ocorreu uma grande desconexão entre pais e seus filhos homens.
A riqueza material aumentou, mas a ansiedade também. O que significa ser homem no Ocidente hoje? Os trabalhos de escritório hoje são feitos com facilidade por mulheres.
Diferentemente dos homens da classe trabalhadora, com sua força fí- sica e habilidades de realizar trabalhos manuais, os homens da classe média não possuem habilidades especiais. Eles foram eclipsados. Os garotos de hoje não sabem quem são nem quem deveriam ser. Sua energia selvagem é condenada pela sociedade e presa dentro de salas de aula. No passado, eles podiam fugir de casa e virar marinheiros. Hoje, fi cam enjaulados. Andar de skate é a única liberdade de que desfrutam.
O que pensa da cirurgia plástica?
A tecnologia moderna converteu o corpo em um objeto de arte. Como é o caso com a homossexualidade, as drogas, o aborto ou o suicídio, cada indivíduo tem direito total de moldar seu corpo, que vem da natureza. Contudo, a identidade não pode ser inteiramente baseada na perfeição física, que sempre se deteriora. Adoro o aspecto maduro de Catherine Deneuve. Ela não tenta parecer uma mulher de 25 anos.
Em um artigo no The New York Times em 1990, você disse: “Madonna é o futuro do feminismo”. Recentemente o Times descreveu-o como um de seus textos de opinião mais infl uentes dos últimos 40 anos. Acha que foi profético?
Inteiramente. Embora as pessoas tenham ficado chocadas na época, eu tinha razão. O erotismo agressivo de Madonna liberou a ala pró-sexo do feminismo, que vinha sendo silenciada havia décadas.
Nós nos erguemos e derrotamos a liderança feminista stalinista, cuja cruzada antipornografia fanática havia dominado a década de 1980.
Recentemente você demoliu Lady Gaga em um artigo no Sunday Times, de Londres. Por que você descreveu Gaga como “a diva do déjà vu” e disse que ela representa a morte do sexo?
O que há de sexy em Lady Gaga? Ela é uma exibicionista compulsiva que expõe sua carne branca e pouco desejável em aeroportos e cuja alienação neurótica do corpo é expressa em mutilações repulsivas e no derramamento de sangue de suas apresentações sobre o palco.
Sua música dance é medíocre e derivativa. E ela é uma manipuladora desonesta que encoraja um cultismo parasítico entre seus fãs mais psicologicamente vulneráveis.
Por que você defende a legalização da prostituição?
Como é que alguém ousa proibir a troca voluntária de atos sexuais? Essa é uma questão de escolha pessoal absoluta, algo que deveria ser protegido por todas as sociedades livres. Mas a sociedade também tem o direito de controlar seus espaços públicos. Logo, a prostituição deve ser permitida, mas deve ser discreta.
Você declarou certa vez que o sexo é um jogo que acha difícil jogar. Por quê?
Acho que sou uma espécie de figura como Tirésias, uma observadora presa em um lugar entre os sexos. É
por isso que me identifico tão fortemente com as drag queens e os transgêneros. Existe uma discrepância estrutural entre minha imaginação erótica, inflamada pela arte e pelo cinema, e meu corpo.
Mas não existe gênero fixo que resolveria esse problema. Por essa razão, escrevo! O escrever é o campo em que tudo se torna possível.
Você acha que a mulher deveria focar na carreira antes de pensar na maternidade?
A maioria das feministas enxerga a sociedade como a maior opressora da mulher, mas o obstáculo último é a natureza. Os homens jovens podem tornar-se pais ao mesmo tempo em que focam suas carreiras, mas as mulheres jovens sempre enfrentarão ônus especiais em razão da gravidez, do parto e da amamentação.
Os pais podem ajudar, mas não podem substituir o vínculo físico singular entre mãe e filho.
Mesmo com a ajuda de babás, as mulheres sentem-se divididas entre sua carreira e as exigências da maternidade.
As escolas e universidades não informam as mulheres jovens sobre essas escolhas difíceis. Pode ser melhor para as mulheres terem filhos no início de suas carreiras, em vez de mais tarde.
As mães jovens têm mais energia e resiliência; a fertilidade é mais fácil e a gravidez é mais segura nessa idade.
O feminismo tem sido cruelmente irresponsável na maneira como vem promovendo o desenvolvimento profissional e, ao mesmo tempo, denegrindo a maternidade. Os filhos levam alegria e significado à vida das pessoas.
Como vê as mulheres brasileiras?
Eu as adoro! Sua abertura, naturalidade, energia, espontaneidade e seu humor, sua sensualidade descontraída, postura graciosa e senso de estilo, suas vozes contralto e risadas roucas,produzidas pela sonoridade da língua
portuguesa.
E, é claro, Daniela Mercury tornou- se minha musa – uma encarnação viva de minha profissão de fé na arte. A diversidade e a qualidade do trabalho dela na música, dança, poesia, figurinos e produção sobre o palco são simplesmente estupendas. Daniela é uma brilhante fusão brasileira de Diaghilev, Nijinsky, Martha Graham, Rita Hayworth e Elis Regina.
Em que está trabalhando agora?
Venho há quatro anos escrevendo um livro sobre artes visuais, voltado para o grande público. É um volume para acompanhar meu livro sobre poesia, Break, Blow, Burn. Apresenta estilos artísticos desde o Antigo Egito até a revolução digital de hoje.
Nesta era em que somos constantemente assaltados por imagens de mídia vertiginosas, as pessoas precisam de ajuda para saber como enxergar.