Aquela que dá passagem: Flavia Trocoli em “Hélène Cixous: a sobrevivência da literatura”

Aquela que dá passagem: Flavia Trocoli em “Hélène Cixous: a sobrevivência da literatura”

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Hélène Cixous já era lida no Brasil por um público especializado, mas a autora franco-argelina não cessou mais de chegar a este país com a tradução de O riso da Medusa, por Natália Guerellus e Raísa França Bastos, publicada pela Editora Bazar do Tempo, em 2022. Se os estudos em torno da obra dessa escritora ainda eram raros aqui, essa edição certamente marcou uma virada nessa recepção inicialmente mais atrelada a estudos em Clarice Lispector, James Joyce e a determinado feminismo relacionado ao feminino, emergente na década de 1970.

Flavia Trocoli, professora de Teoria Literária na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora de A inútil paixão do ser: figurações do narrador moderno, é uma das principais pesquisadoras que vem se dedicando à obra de Cixous e contribuindo para a difusão de seu pensamento, seja em sua pesquisa acadêmica (reconhecida por agências de fomento como CAPES, FAPERJ e CNPq, das quais foi contemplada com financiamentos), seja nos vários cursos de graduação e pós-graduação em que tem compartilhado seu conhecimento com estudantes e ouvintes, fazendo da sala de aula um espaço de leitura e de trabalho conjuntos em que a professora coloca-se não como detentora de um saber, mas como pesquisadora que transmite, horizontalmente, os seus passos de leitura, de modo que testemunhamos um pensamento em elaboração que se faz, a cada vez, junto – junto, inclusive, a outras leituras e a outros e outras leitores e leitoras.

Cixous chega ao Brasil também nessa divisão coletiva e comunal do trabalho, nesse trabalho a muitas mãos orientado pela iniciativa generosa de Trocoli, também coordenadora do Grupo de Tradução de A chegada da escrita, segundo livro da autora judia lançado pela Bazar do Tempo, em julho de 2024. Ao lado de Hélène Cixous: a sobrevivência da literatura, esses dois lançamentos compuseram os livros do mês do “Clube F.”, rede de assinaturas promovida por essa editora independente formada por mulheres, fortalecendo o protagonismo feminino e a produção intelectual de mulheres.

Hélène Cixous: a sobrevivência da literatura é o primeiro livro de ensaios de Trocoli sobre Cixous. Em O riso da Medusa, a crítica brasileira assina o posfácio intitulado “A que passa é o seu nome, quer dizer Hélène Cixous”. O ensaio “Contos da diferença sexual”, de Cixous, compõe a edição portuguesa de Idiomas da diferença sexual, constituída por dois ensaios traduzidos por Fernanda Bernardo que, antes, foram conferências: o acima referido, de Cixous; o outro, de Jacques Derrida, grande interlocutor de Cixous. O ensaio dessa, intitulado “Contos da diferença sexual”, é uma fábula sobre a diferença sexual. Como o título mesmo diz, o texto é um conto, se faz em um gênero híbrido, entre fábula, ensaio, autobiografia, crítica, relato de sonhos, diálogo, em que a autora se coloca ela mesma como narradora e personagem, intercambiando os lugares de enunciação. Nessa fabulação, Cixous aborda a diferença sexual como uma deusa, a deusa da diferença sexual: “A deusa (que) passa. A-que-passa é o seu nome” [Celle-qui-passe est son nom]. Essa deusa está ligada à invenção. Assim, diante do impasse da diferença sexual, Cixous performa, na escrita, essa invenção, levando a crer que só há como estar à altura da diferença sexual se for criando uma fábula dos gêneros em uma escrita ela mesma fabuladora. A diferença sexual, portanto, é um estar em trânsito, uma passagem.

O que passa do posfácio de Flavia intitulado “A que passa é o seu nome, quer dizer Hélène Cixous” ao livro Hélène Cixous: a sobrevivência da literatura? Os estudos de Flavia em Cixous dizem respeito, sobretudo, a um modo de transmissão, ou seja, eles dizem, em grande medida, do que passa, do que se passa entre, isto é, de um gesto de dar passagem. Nesse livro de Trocoli, encontrar Cixous é ir com Lispector, Proust, Freud, Derrida, dentre outros e outras. Passar de ‘quem sou’ a ‘aonde estou indo’, ou de ‘quem são’ para ‘aonde estão me levando’, ou do ‘ser’ para o ‘ir-com’, o ‘ir-junto’, é passar da ontologia para a destinação, “do destino à destinação”, como quem endereça uma carta.

Em A hora de Clarice Lispector, Hélène Cixous fez uma releitura de A maçã no escuro: ela aceitou a maçã de Clarice e inaugurou outra Eva. Essa maçã já tinha comparecido no ensaio “Extrema fidelidade”, em que Cixous lê romances de formação a partir de Lispector como uma educação libidinal em que o que está em jogo no nascimento de alguém como autor ou autora, na gênese de alguém como escritor, escritora ou artista, é a “primeira história de todas as histórias humanas, a história de Eva e da maçã”. Ler a gênese de uma escritora ou de um escritor pelo mito fundador ocidental do Gênesis mostra que nascer pelas palavras, nas palavras, com as palavras, “trata-se da maçã: comê-la ou não”.

Hélène recebeu a maçã de Clarice e a transformou em laranja, Orange, que ressoa a terra natal de Hélène, no caso, a cidade de Oran, na Argélia, e também ecoa um pedaço do nome de seu pai, Georges – que ressoa no título de outro livro: OR: les lettres de mon père. Flavia, leitora de Clarice e de Hélène, recebeu a maçã de Clarice transformada em laranja por Hélène e nos transmitiu um outro sabor. Sabor como o que traz notícias de vida e não de uma lógica devoradora. Cixous ensina que receber a maçã é um convite para passá-la a outra língua. Por isso, ela recebe a maçã de Clarice e a chama de laranja, fazendo da maçã outra coisa, mostrando que morder a maçã diz, sobretudo, não de devorá-la, mas de passá-la adiante para que o outro também possa morder a maçã, ou seja, fazer dela outra coisa. Traduzir maçã por Orange é dizer “eu aceito a tarefa da destinação”. Flavia aceita essa tarefa e transmite-nos uma circulação molecular, uma oxigenação, essa vida, essa sobrevida, que é também um dar passagem, um endereçamento, uma destinação.

Flavia recebe a laranja de Cixous e nos dá não um saber em forma de capítulos, mas um sabor de vida em forma de moléculas. Em latim, capitulum é o diminutivo de caput, que significa, literalmente, “cabecinha”. Os livros geralmente são pensados por cabecinhas. Depois de passar pela “ladainha da castração que se transmite e que se genealogisa” como ficção que se estruturou com base no horror às mulheres por uma teoria fundamentada na decapitação da cabeça da Medusa, Flavia passou da cabeça ou das cabecinhas desarticuladas de um corpo para isso que circula pelo corpo todo, pelas veias, pelas vias, e que precisa de pelo menos dois ou mais átomos para se formar. Ou seja, a molécula é dois ou mais, e é assim que ela circula ao longo de nosso corpo. Além de ser isso que circula pelas vias, pelas passagens, a molécula é um elemento mínimo e químico. Ao trazer um elemento químico para ler a obra de Cixous, Flavia aponta que essa é uma escrita que tem química, que tem corpo, que estabelece ligações, que se faz por uma circulação.

A crítica intitula as partes do livro pela substituição da forma “capítulo” pela forma “molécula” a partir de um trecho de Cixous em Manhattan – lettres de la préhistoire: “Abro um livro, a luz se faz, a língua logo começa sua narrativa, me refabrico sempre, eu mesma, com essas moléculas literárias”. Esse trecho comparece algumas vezes no livro de Flavia, como uma espécie de refrão que eu leio como uma das operações de leitura de como Flavia lê Hélène, essa que aceitou a maçã das mãos de Clarice. Clarice foi um romance de formação de Cixous: tudo começou com Clarice, tudo começou com a origem do mundo, a molécula, a explosão, A hora da estrela: tremor de terra ou “cartas da pré-história”, onde o pai de Cixous encontra a mãe de Derrida, cujos nomes começavam por “Geo”, e esses filhos tornam-se então irmãos inventados e filhos da terra.

Em um momento, a crítica – falando com e a partir de Cixous, que fala com e a partir da morte de Derrida – faz a seguinte pergunta: “como se endereçar quando não se tem mais o destinatário?”. Flavia encontrou uma saída por Roberto Schwarz, que diz: “Quando não há resposta, o dizer torna-se puro, prece para quem diz, poesia para quem vê dizer”. Ler Flavia leitora de Cixous é ler Flavia leitora de seus romances de formação, é ler o que deu forma à Flavia, o que formou Flavia como leitora. Nessa formação, há o primado da forma (não uma forma fixa, mas uma necessidade de “doar forma”). Uma das cenas fundadoras de Flavia, leitora de Cixous, é a que ela recebe de Virginia Woolf: “a recepção do choque exige a doação de uma forma”. Importa aqui menos a forma e mais a destinação, a tarefa de doar, de passar adiante.

Para falar da obra de Cixous, Flavia recorre a interlocutores diretos de Cixous, como Clarice, Proust, Freud, Derrida, mas também a interlocutores que a formaram, como Virginia, Schwarz, e, ainda, a lugares, a paisagens, à Maré, no Rio de Janeiro, a perdas recentes de entes queridos, a imagens fotografadas por suas lentes – não para ajudar a ver, pelo contrário. Entretanto, neste livro, a crítica traz a marca da intervenção do seu olhar. Nele há uma tradutora que escolhe traduzir rêve por Sonia, há uma crítica que escreve na primeira pessoa. Aqui, aceitar a tarefa da destinação é aceitar a tarefa de se colocar em cena, fazendo da crítica um exercício situado, que, no gesto de leitura, dá notícias do que passa nessa leitora que, ao ler, é afetada e lida pelo que lê, transformada pela leitura.

O que passou da leitora especializada em romances modernos e autora de A inútil paixão do ser: figurações do narrador moderno para a autora de Hélène Cixous: a sobrevivência da literatura? Em ambos, certamente, Flavia se ocupa da cena enunciativa. Mas, nesse último, há uma crítica que entra em cena. E entrar em cena é convocar sua terra. A cena enunciativa se faz não só pelo foco narrativo, narradores, personagens, mas também pela paisagem, pelo que passa entre uma paisagem e outra: “da paisagem impossível” da Primeira Guerra Mundial em Virginia, da mãe que não sabe o que fazer com os vestígios do filho morto em Cixous, passa-se a uma mãe que, na Maré, no Rio de Janeiro, grita diante do corpo de sua criança morta: “Ele estava indo pra escola”.

Trazendo para dentro da cena de sua enunciação o que extrapola a narrativa de Cixous, implicando-se nessa cena como ato de escrita e de leitura, Flavia coloca à prova a própria narrativa, que passa a ser lida como ponto cego. Isso confere ao texto o estatuto de personagem, sendo a própria leitura uma travessia que põe em questão “o já concebido, o já visto”. Assim, ela lê a narração como um relance e dá a ler lances de narração: a narração não como um horizonte que abrange até onde a vista alcança, mas como ponto cego que interrompe o pensamento, a concepção. Nesse sentido, Flavia também desloca a leitura sobre o narrador, lendo-o não como condutor, mas como ponto cego da narrativa: o narrador não faz ver, ele “põe de luto o saber da noite passada”, como diz Cixous em Savoir.

Flavia lendo Cixous é um encontro de leituras, uma ligação, uma linha cruzada que conecta autores que nunca se encontraram presencialmente, só pelo fio do telefone de Flavia. Porém, se os modernos abalaram o referente também através de personagens, a virada de Cixous, que eu leio lendo Flavia, é que ela coloca os modernos como personagens. Além disso, há outro abalo do referencial quando autores, escritores, filósofos e o próprio texto tornam-se personagens de uma cena de escrita. Em um momento, a crítica traz uma citação de Cixous na qual quem fala é uma nota em forma de sussurro. Também como um sussurro que foge à lógica narrativa, Flavia escreve com “o que põe de luto o saber da noite passada”: escreve crítica com os seus sonhos, com um sonho que teve em Salvador, por exemplo, um “sonho-Salvador”. Um sonho que salva, que traz uma sobrevida, porque chama e, nesse endereçamento, é sempre um outro que responde: Flavia chama por Ève, mas escuta Sonia: “meu sonho desloca Ève para o Brasil e a chama Sonia”. “Sonha, Sonia, à sombra da laranja”, diz a crítica na página seguinte.

Páginas depois, Flavia traz uma cena autobiográfica de 2023. Páginas antes, ela diz que o legado de Cixous é ler a nossa estrutura para reescrevê-la. Ler a nossa estrutura para reescrevê-la passa por alguns dentre muitos deslocamentos que Flavia faz lendo Cixous. Um deles reescreve a estrutura do Ocidente: uma cena em que uma mãe e uma filha tomam café na cozinha (presente em Ciguë, outro livro de Cixous) condensa um movimento estruturante de uma obra. Elenco mais alguns deslocamentos: passa-se da metáfora lacaniana do “Nome-do-pai” para os “nomes de ninguém”, ou seja, passa-se do “Nome-do-pai”, como lei que interdita e hierarquiza, para a dimensão dos “primeiros nomes de ninguém” (em referência ao livro Prénoms de Personne), colocando o nome sob o estatuto do recém-nascido que está sob o signo do cuidado, não da captura: “Há mulheres que falam para cuidar e salvar, não para capturar”, diz Cixous, citada por Trocoli. Isso pode ser lido no procedimento de Cixous que recebe a maçã de Clarice não para devorá-la, mas para passar adiante, permitindo que o outro possa fazer outra coisa da maçã, em uma lógica comunal do cuidado, da partilha, da convivência, gozando como meio de o outro gozar também, pelo princípio da transformação e da diferença, não da identificação. Esse procedimento espelha o de Flavia lendo Cixous, em que a transmissão, pelo princípio do cuidado e não da captura, é uma tarefa de dar passagem.

Nessa divisão molecular do trabalho, Flavia lê a transmissão por um detalhe de um gesto: o de tirar e recolocar os óculos, entre um gesto e outro, nesse lance de proximidade e distância. Isso determina o modo como a crítica lê: como quem responde a um convite não com uma teoria, mas com “testemunhos oblíquos”. Responder como uma testemunha ocular é responder com uma visada, uma mirada, um relance, sempre como quem não sabe nem viu, mas se vê implicada no chamado. Chamar as coisas pelo seu primeiro nome, isto é, insistir no primeiro nome “antes da lei que exclui as mulheres”, não é o mesmo que chamar as coisas pela primeira vez, em uma linhagem adâmica, mas apostar em uma linhagem evânica de mulheres que mordem a maçã e sobrevivem porque não sucumbem à culpa patriarcal nem se inserem na lógica excludente da devoração que as suprime, ao contrário, implicam-se na destinação em um trabalho de passar adiante tão somente a possibilidade de transformação.

Entre a elevação e a queda, entre a sublimação e o rés do corpo, entre as asas do anjo e a carne, entre a forma e o informe, entre o pai sublimado e a mão decepada da criança, insublimável, o ponto que resiste à interpretação (como o umbigo do sonho), não sublimado, é justamente o que chama a descer ao corpo, à carne, lembrando o que diz a autora de O riso da Medusa: “muito mais do que o homem chamado aos êxitos sociais, à sublimação, as mulheres são corpo. Mais corpo, portanto, mais escrita”. Se o pai, em Hélène, é sublimado, encontrando alguma elevação, o nome da mãe, Ève, porta uma chama, desce ao corpo: Osnabrück, nome da cidade natal da mãe, transforma-se em título de livro que a mãe – impossibilitada de escrevê-lo – deixou para a filha ler e escrever. Aí temos outro deslocamento: no sonho de Flavia, ela chama por Ève, mãe de Hélène, que fora parteira, mas quem responde é o sonho no feminino: Sonia. Ao chamar por Eva, a primeira mãe dos viventes da cultura ocidental, a crítica faz do nome da mãe um chamado, isto é, um lugar de passagem, um lugar que dá passagem. Hélène lê na mãe, Ève, a memória de sua terra natal em chamas, consumida pelo nazismo. O nome da mãe, Ève, porta a chama, o chamado: convoca a ler as chamas. No livro quem tem a mãe no nome, no título, Ève s’évade, o personagem principal do livro é o ato de ler, porque a mãe, Ève, se evade e dá passagem à leitura, sendo ela mesma um lugar de passagem ao principal personagem do livro: o ato de leitura.

O que os estudos de Flavia em Hélène transmitem é, antes de tudo, um modo de transmissão, e isso diz respeito ao modo como Flavia se posiciona diante do ensino, da teoria, da crítica e da literatura. Nessa transmissão, Flavia posiciona-se como leitora. Mais especificamente, como leitora que se implica em ato na leitura, colocando-se em jogo no exercício da crítica, em um gesto autobiográfico que se posiciona como lugar de passagem. Ler a própria estrutura para reescrevê-la é o que Flavia coloca em cena, em ato, no último ensaio do livro, intitulado “Refabricar minha lalemã, moléculas do idioma Cixous”, em que a crítica rasura Freud ao reescrever “lembranças encobridoras” por “lalíngua”. Nesse gesto transgressor que entrelaça a língua materna de Cixous, a língua materna de Trocoli e o que, da língua materna, ecoa no corpo, como lalíngua, escutamos um outro idioma. Esse idioma implica passar da boca que devora à boca que ri em outra língua: “Happy!”. Ève é uma mãe que ri e fala uma língua sibilante, uma língua com uma fenda, com uma falta. Ève fala uma língua evânica, conversa com a serpente – nela escutamos O riso da Medusa. Lendo Hélène, Flavia transmite-nos um outro idioma, um outro modo de chegar, de dar passagem, de fazer nascer de novo – de fazer sobreviver – aquela que fez nascer pelas mãos, dando passagem não só àquela, a primeira mulher do Ocidente que primeiro se ocupou da questão do gozo, mas a ela: à literatura.

Danielle Magalhães é autora dos livros Quando o céu cair (7Letras, 2018), Vingar (7Letras, 2021), entre outros. Tem graduação em História (UFF), mestrado em Teoria Literária (UFRJ) e doutorado em Teoria Literária (UFRJ).

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