Filosofia do direito e direitos humanos: Uma proposta de reflexão

Filosofia do direito e direitos humanos: Uma proposta de reflexão

O pensamento chinês, revisto por François Jullien, recomenda a imanência da experiência como base do potencial de situação

 

Hannah Arendt (1906-1978), reputada como uma das maiores pensadoras do século 20, possui uma visão peculiar a respeito do poder. Para ela poder não é uma relação de submissão, mas alguma coisa totalmente diversa disso. Para Arendt a convivência pacífica entre homens e mulheres é o fator propiciador da ação conjunta e é exatamente esse tipo de ação que gera o poder. Esclarece-nos Arendt (1958 {1993}, p. 213): “O único fator indispensável para a geração de poder é a convivência entre os homens (…). Todo aquele que, por algum motivo, se isola e não participa dessa convivência, renuncia ao poder e se torna impotente, por maior que seja sua força e por mais válidas que sejam suas razões”.

Em seu livro A condição humana, Hannah Arendt sustenta a idéia de que para lidarmos com a imprevisibilidade das ações humanas devemos fazer uso da promessa, e que para superarmos o fenômeno da irreversibilidade de nossas ações contamos com o ato do perdão. Promessa, perdão e convivência são experiências humanas essenciais para geração do poder.

Esse poder assim gerado não faz uso da violência, já que a violência é oposta ao poder. Celso Lafer afirma (1988, p. 209-210): “A violência destrói o poder, mas não o cria ou substitui, pois o poder para ser gerado exige a convivência, e a violência se baseia na exclusão da interação/cooperação com os outros. (…)”

A não-violência é o princípio de orientação para criação das normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos. A mobilização a favor da proteção dos direitos humanos tem a possibilidade de se aproveitar desse aspecto e propiciar uma ação conjunta geradora de poder.

A proposta de reflexão que apresento é utilizarmos algumas noções do pensamento chinês para buscar formas incrementadoras e complementares para a ação conjunta geradora de poder. O pensamento chinês aqui exposto tem como fundamento as obras do filósofo e sinólogo francês François Jullien (1951-).

O modo grego de conceber a eficácia (que influenciou de forma decisiva o pensamento ocidental como um todo) tem como base a construção de uma forma modelo. Construída essa forma, traça-se um plano e coloca-se uma meta. A partir desse momento, tem início a ação baseada na aplicação de um modelo elaborado a priori.

Já a forma de agir proposta pelo pensamento chinês tem como fundamento o potencial da situação. Duas noções integram esse antigo conceito da estratégia chinesa: de uma parte, a de situação que muda constantemente, atualizando-se e tomando forma enquanto relação de forças; de outro lado e respondendo a ela, a noção de potencial, como perspectiva de vir a ser implicado nessa específica situação. E por fim a tarefa última e mais importante da atenta e ininterrupta observação do potencial da situação. O que podemos fazer a fim de que as forças positivas, detectadas naquela situação, joguem a nosso favor e que os fatores negativos diminuam. Em outras palavras, a regra de ouro da medicina chinesa: sedar e tonificar.

Um sábio não tem idéia (1998 {2000}) é o título de um dos livros de François Jullien traduzidos no Brasil. Nessa obra o autor nos mostra qual é o modo de observação capaz de perceber o potencial da situação. Em primeiro lugar devemos esvaziar nossas mentes e corações para compreender o que ela revela, não tentar forçosamente ver aquilo que gostaríamos.

O que será percebido é o imanente, o que está inseparavelmente contido na natureza daquela experiência. É o que está oculto porque demais evidente. Para o pensamento chinês não há a noção de que existe algo transcendente à própria experiência. Ao contrário da transcendência, a imanência. Em vez de uma ação divina ou super-humana, uma ordem bipolar formada pelos opostos complementares do yang e do ying. O yang representa a capacidade humana da iniciativa e o ying, a receptividade. O masculino e o feminino. A tarefa proposta é tornar-se receptivo ao imanente da situação e transformá-la, por meio da capacidade humana da iniciativa, em um bem comum e compartilhado.

Na perspectiva do pensamento chinês, não se trata propriamente de ação, mas de transformação. A ação tem a natureza do momentâneo, do eventual. Mesmo que o evento seja duradouro. Ela é local, situando-se no espaço do aqui e agora. Depende de um sujeito individual ou coletivo para ser realizada. Diferentemente a transformação insere-se no contínuo fluxo da vida. Dessa forma, a transformação é mais ampla, pois é transformado tudo que se encontra em seu entorno, não é eventual, mas inscrita na duração progressiva e contínua. Não se remete a um sujeito específico, já que o responsável por ela não age de forma enfática e egóica, mas por meio de uma influência discreta. O processo da transformação não é evidente, o que se evidencia são seus resultados.

A transformação como processo é de fundamental importância para percebermos formas possíveis do cumprimento de uma promessa. Promessa, que no dizer de Hannah Arendt, é o início do agir conjunto. Para o pensamento chinês, a assinatura do contrato – a concretização da promessa – é o momento do início da relação. Cumprir o contrato, nessa perspectiva, é explorar contínua e rigorosamente o potencial que a situação apresenta e não – tendo os olhos fixos no modelo – fazer apenas e tão-somente aquilo que o modelo a priori delimitou.

O perdão – nesse sentido – deve ser entendido como a capacidade de reconhecer a mudança do potencial da situação e com ele a necessidade de reatualizar o pacto inicial. A promessa é concretizada como um processo pleno de mudanças e novas direções e não como o cumprimento automático do modelo das claúsulas inicialmente previstas.

Na perspectiva da transformação a tarefa é perceber o caminho viável no qual ela pode evidenciar-se como resultado e facilitá-lo. O resultado da transformação que se iniciou com a observação  “ausente de idéias” do potencial da situação e que se tornou possível graças a uma influência discreta propiciará – de forma a respeitar a dignidade e singularidade de cada ser – o desenvolvimento de todos. É o que nos esclarece François Jullien (1993 {1997}, p. 59): (…) “cada individuação que resulta desse processo de engendramento recebe dele sua ‘norma’ própria que constitui sua ‘natureza’ e lhe cabe como ‘destino’. E, dado, que cada um respeita essa exigência interna à sua natureza, essas exigências individuais se preservam, uma à outra, essas sinas se unem e se conciliam. O resultado, nessas condições, só pode ser a ‘harmonia’”.

O trabalho de reunir as experiências da promessa, do perdão e da convivência, fruto do pensamento de Hannah Arendt, com as noções de potencial da situação, observação “sem idéias”, imanência e transformação do pensamento chinês, oferecidas por François Jullien, apresenta uma  reflexão que nos possibilita revelar, em pleno século 21, dimensões inéditas do encontro possível entre filosofia do direito e direitos humanos.

Bibliografia

Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993 (1958).
Jullien, François. Figuras da imanência. Para uma leitura filosófica do I Ching, o clássico da mutação. São Paulo: Editora 34, 1997 (1993).
Jullien, François. Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, 2000 (1998)
Jullien, François. Conférence sur l´efficacité. Paris: Presses Universitaires de France, 2005.
Lafer, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Guilherme Assis de Almeida
é doutor em Filosofia do Direito (USP), com pós-doutorado em Ciência Política no NEV/USP. Autor de Direitos Humanos e Não-Violência (Atlas). Professor de Direitos Humanos do UNICEUB e consultor de Direitos Humanos e Cooperação Internacional

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