Filoctetes em tempos de Odisseu

Filoctetes em tempos de Odisseu
Fotos Bob Sousa

 

 

“Embora tenhas ódio aos companheiros, ao rei e a mim,
duro Filoctetes, embora me abomines e sem fim rogues
pragas contra mim, e desejes no meio do teu sofrimento
teres-me em teu poder para poderes derramar-me o sangue,
[e tal como já dispus de ti, também tu disponhas de mim,]
eu irei até junto de ti e esforçar-me-ei por trazer-te comigo,
e apoderar-me-ei das tuas flechas, caso a Fortuna me ajude…”

Ovídio. Metamorfoses, XIII, 328-334,
tradução de Frederico Lourenço

Pertencente ao ciclo troiano, a história de Filoctetes é conhecida há quase três mil anos. As menções mais antigas que se fazem ao grande herói aqueu – que, ao parar na ilha de Tênedos, enquanto comandava sua esquadra rumo a Troia, foi picado por uma serpente e abandonado logo depois na ilha de Lemnos, por Odisseu e Agamêmnon, em virtude das dores que o faziam gritar e do odor insuportável que exalava de sua ferida – são as epopeias homéricas, compostas entre os séculos VIII e VII a.C.. O canto II da Ilíada, que apresenta o extenso catálogo das naves que se lançaram ao mar para sitiar Tróia, faz duas importantes menções ao “sapiente arqueiro”. Primeiramente, Homero diz, nos versos 718-723, que ele “jazia agora numa ilha, em grande sofrimento, na sacra Lemnos, onde o deixaram os filhos dos Aqueus padecendo da ferida horrível de uma venenosa serpente”, mencionando nos dois versos seguintes que “em breve se lembrariam os Aqueus junto às naus do soberano Filoctetes”. Já o verso 190 do canto III da Odisseia – que dá conta de como retornaram os guerreiros de Ílion – registra que “chegou bem Filocteto, o glorioso filho de Peante” (ambas as traduções dos poemas homéricos aqui são de Frederico Lourenço).

É a informação dada na Ilíada de que os gregos haveriam de se lembrar do herói durante os nove anos que durou o cerco a Troia – já que sem suas flechas, que lhe haviam sido presenteadas por Héracles, a cidade não poderia ser tomada, conforme havia vaticinado Heleno, filho de Príamo – que converte a envergadura épica da narrativa em torno de Filoctetes em matéria propriamente trágica, tratada nos séculos V e IV a.C. por Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Tem-se uma ideia bastante vaga das peças, hoje perdidas, que o primeiro e o terceiro tragediógrafos dedicaram à história do arqueiro, sabendo-se, no entanto, que elas exploravam o sentimento e o dever patrióticos dos gregos. Sófocles escreveu duas tragédias em torno da figura do guerreiro, o Filoctetes (409 a. C.) que chegou propriamente até nós, sua penúltima criação trágica, e uma obra anterior, Filoctetes em Troia, que provavelmente trata da cura da ferida do protagonista e de seu triunfo sobre Páris, a quem segundo a lenda, matou com uma de suas flechas certeiras. (Uma possível interpretação para a etimologia do nome do herói – “phílos”, amigo, e “ktétes”, do verbo “ktâsthai”, possuir, adquirir, angariar – seria “aquele que estima muito o que possui”, no caso, suas flechas).

Neoptólemo (Washington Luiz) carrega o cadáver de Filoctetes nas costas, acompanhado de Odisseu

Menos conhecido entre seus dramas, o Filoctetes de Sófocles constitui um belíssimo espécime teatral, tão menos trágico quão mais dramático ele se nos apresente. Não há propriamente no enredo sofocliano uma catástrofe a ser vivida pelos personagens principais – a saber, Filoctetes, Odisseu e Neoptólemo –, porque o autor do Édipo em Colono (a última peça de Sófocles, com a qual Filoctetes guarda inúmeras semelhanças em relação ao trato da ruína, da humilhação e do abandono) está mais preocupado em oferecer um pequeno estudo acerca do comportamento ético desses três homens, mergulhados em suas “psicologias” individuais. Filoctetes é o indivíduo ressentido pelo abandono e solidão, que luta consigo mesmo para não perder sua sensibilidade, soterrada pela grande humilhação que sofreu por parte de seus companheiros; Odisseu é o estrategista inescrupuloso, que age por puro interesse; Neoptólemo é o rapaz ingênuo que sofre uma visível transformação a partir do dilema que vive ao se sentir dividido entre os valores elevados encarnados pelo primeiro e o pragmatismo oportunista representado pelo segundo.

Pois bem, é também do contraste entre as três figuras apresentadas por Sófocles que o Filoctetes de Heiner Müller extrai toda sua força, embora aqui seja outro, naturalmente, o endereçamento ideológico. O dramaturgo alemão começou a escrever sua reinterpretação do mito em 1958, concluindo-a somente em 1964. Em Guerra sem batalha: uma vida entre duas ditaduras, assim ele descreve a gênese da peça: “Quando comecei a trabalhar em Filoctetes este já era um tema antigo para mim. Eu já havia lido a peça de Sófocles na Saxônia, fim dos anos quarenta. Desde então sempre pensei no tema. Depois das experiências pelas quais eu havia passado, ele ganhou uma atualidade bem diferente para mim. Antes eu tinha pensado em outro desenvolvimento, em um outro fim. Em 1950 eu havia escrito um poema, Filoctetes, uma versão stalinista onde o indivíduo ofendido se torna o acusado. Em 1953 escrevi uma cena para uma peça sobre o tema, escrevi a peça em 1961, e naturalmente ela se transformou em algo diferente do qual eu havia imaginado antes”.

Odisseu diante da pontaria impiedosa de Filoctetes

Heiner Müller procede na sua versão a duas alterações substanciais em relação à matriz grega do texto. Se, em Sófocles, a necessidade de que Filoctetes entre na guerra se dá em razão da profecia do vidente troiano Heleno; em Müller, o interesse pelo herói ocorre em nome de uma razão de Estado, de uma “causa” coletiva muito superior à própria vida do protagonista. Naturalmente, assim, a fábula precisa sofrer mudanças: Filoctetes não é mais convencido por Héracles em pessoa, em uma curiosa aparição deus ex machina, a voltar ao campo de batalha; na variante alemã, ele volta, sim, mas como um cadáver útil à empreitada bélica dos aqueus, abatido por Neoptólemo que, inocentemente, suja suas mãos ao aderir à causa política defendida por Odisseu. O final dessa versão ecoa a Balada do soldado morto, de Bertolt Brecht, na qual a máquina da guerra se aproveita indistintamente dos heróis de que necessita, estejam eles vivos ou mortos.

Em entrevista a Sylvère Lotringer, o dramaturgo alemão afirma que na sua versão da peça “a guerra troiana é apenas um símbolo ou imagem da revolução socialista, que alcança o estágio no qual termina em estagnação, envelhecida”. Sobre tal aspecto, ele ainda declara que a peça foi escrita não somente em alusão à situação obliterada do socialismo soviético, mas também como um retrato da revolução russa no contexto mundial: “A ideia de Lênin, de que a revolução alemã estava próxima porque a revolução aconteceria primeiro em países industrializados, provou não ser verdadeira. A revolução alemã falhou e ele foi obrigado a desistir da ideia de revolução ou de sua implementação em um único país. E como não houve outro objeto, isto significou colonizar a sua própria população”.

Mesmo morto, Filoctetes é útil à causa da guerra

Para que possa usufruir plenamente da belíssima montagem do Filoctetes de Heiner Müller pela Companhia Razões Inversas, dirigida por Márcio Aurélio, o ideal seria que o espectador estivesse a par primeiramente do mito. Depois, do modo como este se transformou, pelas mãos de Sófocles, em matéria de um pungente drama de consciência. Por fim, dos meios utilizados por Heiner Müller ao se apropriar desse texto do passado e dialogar ativamente com ele, propondo-lhe uma intertextualidade que torna nossos contemporâneos os mortos com quem a versão dialoga. Talvez esse fosse o modelo de recepção ideal para o espectador. Entretanto, os tempos são outros, e os motes da citação e da paródia vão aos poucos substituindo o método intertextual que costuma pôr o grande acervo literário universal à disposição do teatro.

Mesmo assim, cremos nós, é possível ao público não tão íntimo do material disposto em cena relacionar-se ativamente com o espetáculo, procurando extrair dele sentidos que lhe sejam compreensíveis, ligados ao modo como nos dias de hoje se lida com os conceitos de narratividade, discurso e política. A esse respeito a encenação é exemplar, ao investir o tempo todo na clareza da palavra e nas nuances das interpretações. O trio de atores reunidos em cena obtém o máximo de expressividade por meio de um recurso muito antigo no teatro e um tanto quanto em desuso: compreender o que está sendo dito e esclarecer a palavra para o espectador, trocando o risco do falso didatismo em que tal opção pode incorrer pela ousadia de uma discursividade essencialmente performativa e, por isso mesmo, teatral. Afinal, é sobre a fabricação de discursos de que a peça trata. E também sobre como um homem retoma o contato dialógico com sua própria língua, dez anos depois de ter sido condenado a falar consigo mesmo. Mas isso seria entender parcialmente o universo de Heiner Müller, cuja escritura dramatúrgica não abre mão da expressividade da linguagem corporal dos intérpretes. Assim, o trabalho de Paulo Marcello, Marcelo Lazzaratto e Washington Luiz é digno de nota. Não se pode ficar indiferente ao pathos no qual Paulo Marcello investe ao construir seu Filoctetes, constantemente cindido entre a autocomiseração e a causticidade no trato para com o outro. Tampouco à astúcia por meio da qual Marcelo Lazzaratto dá vida a Odisseu, cujo modo sinuoso de se expressar está diretamente relacionado ao meio-sorriso que estampa em sua máscara facial – metade arrogância, metade embuste, por sua vez. Muito menos ainda à impetuosidade juvenil que Washington Luiz empresta ao inocente útil Neoptólemo, tomado de espanto ao querer participar ativamente dos acontecimentos e não perceber que está sendo engolido por eles. Os três repercutem muito bem as três atitudes possíveis diante da história e da política identificadas por Heiner Müller: “Odisseu é a atitude pragmática e Neoptólemo é a inocente. Ele mata porque é inocente. Filoctetes está além da história porque é vítima da política”.

Filoctetes, vítima da política

A direção de Marcio Aurelio (convém lembrar que a tradução do texto foi feita pelo próprio diretor, em parceria com Willi Bolle) não incorre em momento algum em uma leitura sentimental do texto, glorificando Filoctetes e acanalhando Odisseu. Por privar de uma longa intimidade com a obra do dramaturgo – que remonta a, pelo menos, 1987, quando dirigiu Marilena Ansaldi em Hamletmachine (note-se que no ano posterior esse mesmo Filoctetes integrou seu espetáculo Eras) –, o diretor deixa evidente a neutralidade que se deve assumir diante das posturas tão diferentes encarnadas pelos personagens, fazendo com que o próprio motor da História aja sobre a plateia. (“Enquanto houver história você terá vítimas”, lembra-nos o dramaturgo).

No acurado artigo que dedica à peça – “O Filoctetes de Sófocles e a efebia” –, o helenista francês Jean-Pierre Vernant adverte para a necessidade de se comparar uma obra literária tão ligada às práticas cívicas, como uma tragédia grega, ao esquema institucional que a sustenta, lembrando que a data em que a peça foi representada em Atenas (409 a.C.) coincide com o momento em que a guerra do Peloponeso começa a adquirir feições trágicas. Para ele, a obra trata de uma dupla conversão: a de um homem selvagem que se reintegra à vida na pólis e a de um jovem aprendiz que se transforma em um soldado. “Político puro”, afirma Vernant, “Ulisses sai da pólis por excesso de política. Ele é a antítese de Filoctetes, um hipercivilizado em face de um homem asselvajado”, cuja reintegração no mundo dos homens se dá pelo empenho de um rapaz cheio de ardor cívico.  Ardor este que em Heiner Müller está a serviço de uma causa bem menos nobre, subsidiada por práticas violentas e traiçoeiras, como a da “morte pelas costas”, de que fala Ruth Röhl, em O teatro de Heiner Müller. Neoptólemo mata Filoctetes pelas costas, mas é incapaz de aniquilar Odisseu do mesmo jeito, quando este lhe toma a dianteira e fica, assim, vulnerável diante de um jovem que o odeia. Talvez se trate, na verdade, de uma vulnerabilidade sob controle – típica de um estrategista –, já que Odisseu ao dar as costas a seu mais novo inimigo toma a precaução de se proteger com o cadáver de Filoctetes (que ainda “Tá bom pro serviço, ainda tem muito pra dar”, como provoca a canção brechtiana), não somente prevenindo o jovem estouvado da estultice de sua ação como também prometendo a ele o aprendizado da mentira (“Diante de Tróia te contarei a mentira/Com a qual tu poderias ter lavado as mãos/Se tivesse derramado meu sangue aqui e agora”).

É da aprendizagem da devida cota de cinismo que se deve adotar na defesa de uma razão puramente instrumental de que trata essa encenação de Filoctetes, com o qual a Companhia Razões Inversas comemora vinte e cinco anos de existência. Mas não somente disso. Aqui se fala também do aprendizado da violência, da mentira, da morte e do logro que nos aproxima tão intimamente de Odisseu, o “personagem mais importante, o personagem trágico da peça”, segundo o autor que tão apropriadamente o concebeu assim.

Filoctetes – Companhia Razões Inversas
Onde: 
Funarte – Sala Carlos Miranda  (Alameda Nothmann, 1058 – São Paulo (SP)
Quando: Até 20 de dezembro – Sextas e sábados, às 21h; domingos, às 20h
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia-entrada)
Fone: (11) 3662-5177

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