Um filme de Carol Benjamin: outros sinais de vida e uma carta sobre o Brasil

Um filme de Carol Benjamin: outros sinais de vida e uma carta sobre o Brasil
Carol Benjamin, diretora do documentário 'Fico te devendo uma carta sobre o Brasil' (Foto: Divulgação)

 

eso no daña el prestígio del corazón multiforme
que debe insistir y ser escuchado
aun como culpa, omissión, error, miedo, memoria o sed inconfessa del cuerpo
la historia de una combustión siempre acorralada
 Rodolfo Godino

 

Em meio a uma prognose adoecida de país, mundo e vida, Carol Benjamin dispara um filme que pode projetar uma imensa série de discussões em torno daquilo que ainda se considera como um espectro aberrante da composição social da América Latina e do Brasil no século 20: Fico te devendo uma carta sobre o Brasil. A prisão de César Benjamin, o pai [mas também um filho], aos 17 anos, nos porões da ditadura militar, em 1971: três anos e meio em solitárias e mais um ano e meio numa briga de corpo com a respiração para deixar-se vivo; e a luta de Iramaya Benjamin, a avó [mas também uma mãe], uma dona de casa, casada com um militar, coronel, que aprende com os filhos os sentidos da política e da abrangência miúda, minuto a minuto, e que faz uso dessa aprendizagem para libertar o caçula preso sob torturas diárias: fome, sede, falta de sono, de pé etc.

A vida vem, a César, na cela, numa única e impraticável brecha, a da imaginação de leitor. E isto, o gesto de ler, não aparece e nem é, nunca, uma salvação. No trauma impensado não há o perdão, este caráter divinatório – “só se tem a perdoar o imperdoável. É o que chamamos fazer o impossível. […].”, diz Jacques Derrida –, e se só à vítima cabe perdoar, diante da tortura não há perdão possível. Resta, como aporia, o impossível, porque “o perdão não é o esquecimento”. Salvar-se, provavelmente, teria a ver com esquecer. E ler é tocar, o tempo inteiro, frente ao real, apenas uma espécie de condicional de liberdade: algo como lembrar o imemorável.

O esforço do filme de Carol é, de alguma maneira, tentar redesenhar essas duas trajetórias de força e sobrevivência, a do pai e a da avó. E no filme, especificamente, como um ponto de carne e nervo, sangue e fúria, muito mais a de uma mãe e de um filho, assim, precedidos de artigos indefinidos. O enlace de permissão silenciada, ou seja, a violência da mudez produzida pela tortura e uma coincidência de contrários, retoma quase a mitologia cristã entre o nazir Joshua Bar-Yosef, que não cortava os cabelos e pronunciava sentenças revolucionárias sem boas maneiras e sem gentileza, e Maria, sua mãe, que tenta lhe abrandar a dor da tortura imposta pelo governo romano até a crucificação, uma condenação comum em sua época. A ferocidade de Joshua, espada e palavra, “brabeza beduína”, advém da escritura, daí que ele pense concreto, cifre o dito com a parábola e enquanto flutua sobre as águas prefere dizer da terra, ou seja, daquilo que falta.

Paulo Leminski, no incrível ensaio-biobibliográfico de Jesus, esta palavra grega que o próprio não conheceu, lembra do revolucionário evangelho de Mateus (o mesmo que chama a atenção de Pasolini para escrever e filmar Il vangelo secondo Matteo, 1964, lançado no mesmo ano do golpe militar que ocorreu no Brasil e aprisionou César sete anos depois, uma cabala), quando este relata a passagem do semeador: “quem tem ouvidos para ouvir, ouça”, “para que, vendo, não vejam” e se, numa condição, “ouvindo de ouvir, não vão entender” e “videntes, vendo, não vão ver”. Tanto que Leminski anota, imaginando o pensamento de Joshua como um socialismo utópico, “quando Marx falou em ‘o homem ser deus do homem’, estava ecoando o tema crístico por excelência”.

Esta linha, a que revela ocultando, é a que desvela o filme de Carol Benjamin numa cifra àquele que consegue ler invertido, ler ao contrário, numa des-leitura das imagens que, sabe-se lá, de um modo ou de qualquer outro, podem redimensionar a história constituída por uma memória de cegos; esta, a que começa a se inscrever outra vez, repetição sem nenhum diferimento, à nossa frente e para a qual estamos parados, pasmados, inertes, neutros e terrivelmente egocentrados tentando salvar apenas a si mesmos em meio, também, a mais de 150 mil mortes. Até porque o prisma que Carol procura mover e contar é o das cartas trocadas entre Iramaya e Marianne Eyre, membra da Anistia Internacional em Estocolmo, na Suécia, onde César se exilou quando saiu da prisão até a anistia falseada de João Batista Figueiredo (em 1979), quando pôde retornar ao Brasil.

Perseguindo uma espécie de roteiro convulso que se inscreve nessa troca de cartas com um único desejo, libertar César, remove o tempo do filme para a construção de uma amizade entre duas mulheres de força que são, tal como o cego da parábola de Betsaida quando levanta os olhos, capazes de ver “as pessoas andando como árvores”. Ou seja, diante do absoluto desespero da dor brota uma pequeníssima fímbria de esperança que vem com o acolhimento, a escuta, a conversa, a troca de línguas e caligrafias, o esforço de Iramaya para escrever em inglês e ser compreendida, o esforço de Marianne de aprender o português para que, a agora muito amiga, pudesse dizer-se mais expressivamente: e isto é um abraço.

O que está em jogo, para essa apreensão da liberdade, entre escrever e ler, não é apenas a dimensão da amiga, este nó frágil, mas sim uma desconstrução desse modelo figural da amizade que predomina no ocidente (afim, aparentada, genealógica etc.). É um frescor que chega a César nos pequenos pacotes de livro que a mãe conseguia levar até a prisão e fazia com que fossem parar em suas mãos e, depois, já no percurso das cartas, ainda guardadas por Marianne, mesmo depois da morte de Iramaya, que chegam a Carol como um pacote de textos que reúnem um livro de vida. Chama atenção que a maioria das conversas entre Carol e Marianne, no filme [lindamente montado por Marília Moraes como uma partitura generosa de imagens], aconteçam numa espécie de sala da biblioteca na casa de Marianne.

César Benjamin, Cid Benjamin, Isolde Sommer e Ana Sommer (Foto: SVT)

Exatamente entre as duas, atrás, fora da cena, fora de foco, dilação ampla e obscena da imagem, numa espécie de meio do caminho da vida, um das lombadas de livro que aparece constante e alegoricamente é a De amor e trevas, de Amós Oz. Se um propósito ou um acaso, pouco interessa, a imagem da lombada do livro está ali, algumas vezes. Tanto que essa presença é uma temporalidade que pode desfazer e anular o mapa e a cartografia do Brasil, da América Latina, e remeter a um outro plano de mundo, mais amplo, outras memórias, outros sentidos, outras possibilidades e a uma abertura tão subversiva como eram consideradas subversivas, por uma suposta justiça militar, as movimentações de corpo e pensamento inteligentes de César: para alterar o mundo.

Esse livro de Amós Oz tem a ver com a constituição do estado de Israel e com a inferência jurídica, e também militar, contra a presença de uma criança que, adulta, se narra e se vê no meio de uma disposição bélica entre fronteiras indisponíveis, fanáticas, filha de um professor de história que tem, na vida, um amor encantado pelo deserto, por livros e pelo pensamento livre. Amós Oz, depois, escritor que nunca se furtou a tomar posições políticas nem sempre fáceis e nunca óbvias como, por exemplo, o descompasso que observa nas relações entre Israel e a Palestina (basta ler as conferências pronunciadas em Genebra quando lembra, numa imagem dialética, que um contra fanatismo pode ser, muitas vezes, mais fanático que o fanatismo que procura enfrentar; o que vale também para certas imobilidades dignas do palavrório usual e fixo, mezzo pop, que força a barra para existir se dizendo potência de origem fundacional, ou seja, se impondo como um comando, ou em coisas como os contra moralismos, contra vigilância, contra poder etc.).

Amós defende um estado Palestino livre, como um direito ao divórcio, que cada um vá para a casa; e escreve essas inúmeras páginas de memória expandindo-as, logo, retirando-as ao máximo de um si mesmo, de um seu nome, para explodi-las numa saliência que estaria mais perto do ser. A certa altura, lembra que o pai encontrara consolo nas pesquisas que fazia sobre o romance na literatura lituana ou sobre as baladas dos trovadores medievais que deram origem ao romance e que, nesse ínterim, ele, menino, semeava pelo quintal “muitas e muitas galáxias, milhões de estrelas estranhas, luas, sóis, cometas e planetas, e parti para uma jornada repleta de perigos e aventuras de estrela em estrela, à procura de outros sinais de vida”.

Iramaya Benjamin em manifestação pela anistia, 1979 (Foto: Ricardo Azoury)

A potência da imagem de Amós Oz, “outros sinais de vida”, reconfigura-se no filme de Carol Benjamin em como ela procura montar e apontar o que se alterna no Brasil entre o desespero e a esperança naqueles anos de tortura e morte e, ao mesmo tempo, entre as mínimas sutilezas conquistadas e o desencanto com o desmonte de cada uma delas nesses últimos três ou quatro anos sistêmicos e perversos, ou seja, outros anos de morte. Assim, tem-se a frase que dá título ao filme, retirada de uma das últimas cartas de Iramaya a Marianne, Fico te devendo uma carta sobre o Brasil. Carol deixa em aberto uma espécie de dívida, mas também de dádiva, ao entender que “certos arquivos não devem permanecer inacessíveis” e que a política exige responsabilidades muito diferentes a cada circunstância. Tanto que o final do filme se engendra como um panfleto numa irreparável e serena tomada de posição.

Mas, por outro lado, tem-se também um certo limiar à experiência do ser-no-mundo (être-au-monde), o de uma vulnerabilidade, quando a visibilidade ainda não é o visível e quando o visível ainda não é uma imagem ou nunca é uma imagem. Aquilo que Derrida convoca como um “pode ser” (peut-être) que se projeta num pensamento do impossível e para o impossível, nesse limiar matematicamente infinito: “Um limite não se toca, é uma diferença, um intervalo que escapa ao tocar ou que é a única coisa que se pode ou se crê poder tocar. Sem ser inteligível, este limite não é propriamente tangível, nem sensível. A experiência do limite ‘toca’ alguma coisa que nunca está plenamente presente. Um limite nunca aparece como tal.” Para Derrida, a experiência é uma via rupta, sobrevive no ser humano entre alguma coisa que somos e alguma coisa que não somos: passagem, travessia, viagem, abertura de uma via.

O filme de Carol Benjamin aparece, assim, entre uma mãe e um filho, como uma breve meditação acerca de uma experiência-limite e de uma hospitalidade absoluta: primeiro, uma democracia ameaçada porque sempre fechada em si mesma (“reconhecer que nunca vivemos numa sociedade democrática”) e temerosa de qualquer outridade. E, segundo, a expansão do movimento recíproco (sem a condenação antecipada e cretina da tolerância): a de que é no acolhimento radical do outro, sem medo, que entro em casa.

Digressão

João Barrento, crítico e tradutor, salienta que Walter Benjamin a partir de uma certa altura, talvez no meio do caminho da vida, mal o sabia, recusa-se a usar a primeira pessoa do singular, EU, e afirma: “Benjamin decidiu um dia, ainda nos anos vinte, não usar a palavra “eu” nos seus escritos. Mas que significa dizer EU, ou silenciar o EU? […] Quando Benjamin pergunta ‘Sou eu aquele que se chama W. B., ou chamo-me simplesmente W. B.?’, e se decide pela primeira hipótese, está a decidir-se pelo Ser, e não pelo Nome, a introduzir entre si e si, num limiar da consciência, uma distância preenchida por uma história que é uma acumulação de experiência (Erfahrung), diferente da mera vivência pessoal (Erlebnis), e que lhe permite chegar a um terceiro, mais autêntico, um Selbst: o si-próprio que é nome próprio – este é, para o indivíduo W. B., o seu ‘conteúdo de verdade’.”

Essa aposta, expandir-se até tocar um outro descolando-se da mera vivência pessoalizada, que é quase um estado de mudez, uma inalterabilidade, a opção pelo ser nunca pelo nome (este que é o centro de todo imperativo categórico do dizer, de uma imagem que tenta dizer) tem a ver também com a ideia de que a única experiência autêntica, para Benjamin, é a política. Ele a projeta, principalmente, a partir de uma contaminação mais intermitente que engendrou com uma espécie de “hora das crianças”, num tempo que se modula com uma oscilação aberta e é todo em direção ao gesto, nunca à ação. Por isso Blanqui e Scheerbart, Kafka e Kraus, Bachofen e Brecht, o brinquedo pequeno e a coleção para nada etc. O gesto, uma ontologia, tal como pensa Giorgio Agamben relendo Benjamin, “não é nem um meio, nem um fim: antes, é a exibição de uma pura medialidade, o tornar visível um meio enquanto tal, em sua emancipação de toda finalidade”.

Lançado sobre a dimensão do inespecífico da criança, sempre incansável, abre-se a imaginação para muito além do número infinito: decepar monstros, explodir cabeças de ponte, viver fora do comércio, arrebentar com a ordem e o inventário doméstico, a interfície contra a superfície, um olhar refratado diante do mundo, uma invenção deliberada etc. Na outra ponta, a vida lacerada, simultaneamente, há o trauma e o testemunho que vêm numa retratação da vulnerabilidade impossível de um limite matematicamente infinito.

 Manoel Ricardo de Lima é professor do PPGMS e da Escola de Letras, UNIRIO. Publicou, entre outros, As mãos [7Letras, 2003/2012], Jogo de Varetas [7Letras, 2012], Geografia Aérea [7Letras, 2014], Maria quer o mundo [Edições SM, 2015] e O método da exaustão [Garupa Edições, 2020].


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