Feminismo para quem? Apontamentos sobre gênero, mulheres trans e feminismo
(Foto: Gui Gomes)
É consenso, penso eu, que o “gênero” como fator de organização social, como discurso, é uma ferramenta de captura dos corpos e das identidades, uma forma de localizar, sentenciar e catalogar os sujeitos no mundo. Essa sentença, que opera inicialmente no plano da linguagem, nasce do estabelecimento da arbitrária relação entre genital e gênero: pênis/homem vagina/mulher.
Obviamente, tais categorias não são suficientes para dar conta da diversidade humana. Portanto, aquilo que se chama de mulher, os discursos que compõem sua identidade, assim como os que compõem a masculinidade, podem ser contraditos de muitas formas e em âmbitos distintos. Arrisco-me a afirmar que, em relação ao discurso normativo, todos os sujeitos estão em desconformidade.
O homem afeminado, a mulher masculina (e aqui não faço, necessariamente, referência a gays ou lésbicas) recusam o enquadramento de gênero no que tange à sua expressão, ou seja, emitem, ainda que involuntariamente, um sonoro “posso ser mulher sem precisar me adequar ao feminino e posso ser homem sem precisar me adequar ao masculino”. Aqui, a contradição se dá na identidade X performance: reconhecem-se com aquilo que lhes foi dado como categoria identitária, porém rebelam-se contra a performance associada à categoria.
O homem transexual, a mulher transexual ou ainda a travesti rebelam-se na raiz do processo de catalogação de gênero: tenho pau e isso não me faz homem, ainda que o discurso queira que assim seja; tenho vagina e isso não me faz mulher, ainda que os discursos da norma queiram que assim seja. Neste caso, há uma ruptura, performada através dos signos do gênero “oposto”, com a fundamentação biológica da identidade, que, ainda que não recaia em determinismo biológico, ainda se vale de um funcionalismo biológico fundamentador.
Em ambos os casos ─ o primeiro na oposição identidade X performance e o segundo na oposição natureza X identidade ─, há uma profunda desestabilização das formas de captura de gênero. Tanto é verdade que tais formas de desestabilização são perigosas ao ordenamento sexo-gênero, sendo objetos de biocontrole. Seja na manutenção dos instrumentos homofóbicos e lesbofóbicos, seja no controle dos corpos de pessoas transexuais e na transfobia, a norma de gênero se organiza no combate às desestabilizações por meio de uma infinidade de violências.
Partindo disso, pode-se pensar na emergência do entendimento das identidades transexuais como o eixo de desestabilização e de alargamento das noções do que é ser homem e do que é ser mulher. É fato que mulheres trans e mulheres cis passaram e passam por processos identitários absolutamente distintos, com especificidades claras. Entretanto, aos olhos do patriarcado somos ralés muito próximas.
O Brasil e o México são os países com o maior índice de transfobia, e são também países com altíssimos índices de feminicídio. É à toa? Não. O ódio ao feminino, e aqui se inclui também o ódio ao que há de transfeminino, se institui a partir do momento em que a performance da feminilidade está marcada no corpo, seja pela assignação biológica ao nascer, seja pelo desvio da masculinidade assignada no nascimento.
A questão central, que há quase 50 anos nos fazemos, é: quem é o sujeito do feminismo? A mulher, mas qual? O que nos define se não o conjunto de violências amplas às quais estamos submetidas? Não deveríamos ser inimigas. Não mesmo.
Helena Vieira é escritora e transfeminista.