A transexualidade é uma paixão

A transexualidade é uma paixão
“Sátiro” (2023), de Fefa Lins

 

O que nos faz homens ou mulheres?” foi uma das grandes questões do final do século 19. E seria impreciso dizer que tal questão foi inteiramente superada, pois, desde contribuições fundamentais de Thomas Laqueur e Michel Foucault, o século 20, também conhecido como o “século das diferenças”, possibilitou o estabelecimento de uma suposta verdade para o sexo: a anatomia nos define.

Somos homens ou mulheres por ter “nascido de tal forma”, mas esse paradigma logo seria provocado por outras forças, que o filósofo Paul Preciado faz questão de recordar. Processos históricos importantes para o enfraquecimento dos limites sexuais, como a Revolução Industrial e as grandes guerras, os contraceptivos e o viagra, a pornografia, a Aids nos anos 1970, o voto feminino etc., foram condições sociais que favoreceram um novo entendimento à categoria gênero. Por meio das contribuições estimulantes de Márcia Arán e Berenice Bento, acompanhamos como gênero foi passando do dualismo “extremidades incomunicáveis” para ser entendido como relacional.

Distinguindo-se de enunciados hegemônicos, nos quais homens e mulheres eram polos universalmente opostos, gênero ganhava um contorno mais dinâmico e poroso. Não só intervenções corporais passavam a ser visadas, como também novas gramáticas sobre o corpo. A visibilidade de outras expressões étnicas, povos nativos que viviam a organização social segundo lógicas que extrapolavam a família nuclear, a androginia, o transformismo, a cosmologias queer, figuras que desafiavam uma representação única: não foram poucas as oportunidades que tivemos de observar aquilo que Judith Butler traduz como “corpos escapando” dos sentidos tradicionais.

Trabalhando com crianças trans e familiares, noto a recorrência de perguntas como “o que fizemos de errado?” ou “por que meu filho é trans?” — presunção de “dano” que permanece central em torno das transições. Talvez não seja demasiado cuidadoso se limitar a responder “os corpos escapam dos códigos normativos” à angústia dessas famílias, mas, partindo do reconhecimento de que escapem mesmo, como qualificar nossa relação com a diferença? O que posso fazer para, convidada por uma revista de circulação nacional a escrever sobre identidades trans, fortalecer, de algum modo, o caldo cultural que os aproxime do cuidado? Como ajudar a criar vidas exuberantes, criativas e belas? Qual estilo de texto me ajuda a educar a sociedade sobre nossas existências, e também de que forma “eu” apareceria entre essas palavras?

Alguns esperam que uma escrita em primeira pessoa, desde o “lugar de fala” de uma travesti, seja a oferta de um testemunho de miséria subjetiva. Deixaram-se vencer pela crença de que travestis existem porque alguém quer “muito parecer uma mulher”, sem dar a esse alguém a menor contradição, agência ou capacidade reflexiva. Sendo franca, queria escrever sobre o que amo. Falo sobre história e política por necessidade. Prefiro falar dos meus afetos. Tenho uma grande amiga chamada Amanda Paschoal, que admiro e acompanho desde a sétima série da escola. Transicionamos juntas. Conhecemo-nos há tanto tempo que sinto que algumas parcelas de mim trazem seu reflexo. São as partes minhas de que mais gosto. Sua generosidade, paciência e sarcasmo fizeram com que eu aprendesse a importância da construção de redes irônicas, teimosas e ostensivas.

Outras pessoas podem esperar que uma travesti escrevendo vá falar sobre altos índices de violência, abandono parental, evasão escolar e antipatia social. Minha vontade, então, passou a ser de falar sobre Leilane Assunção (RN) e Jéssica Taylor (SE), contar suas histórias de vida, receios e estratégias de embelezamento, conforme nos ensina Saidiya Hartman e sua linda fabulação crítica. Abordaria a ousadia de Leilane e o seu legado em Natal, a importância da Unidas, contribuição histórica de Jéssica à assistência de Aracaju, fortalecendo a cidadania de pessoas trans e as políticas de redução de danos. Fazer algo parecido com o que fez a pesquisadora Sophia Starosta em seu mestrado, ir em direção à preservação da memória das travestis brasileiras, num poderoso registro da polissemia de nossas trajetórias.

Busquei articular cada um destes pontos: psicopatologia, questão social, direitos humanos, produção epistêmica marginal e meu próprio interesse no tema. Não é um desafio pequeno. A saída oportuna que encontrei para permitir esta conversa foi um retorno a Espinosa, que, como lembra Deleuze, apostava numa certa “filosofia da vida”. Esse mosaico de temas que fui apresentando se distribui e se ramifica na experiência vivida, e não podemos nos esquecer da máxima de Judith Butler, quando afirma que algumas vidas são marcadas para ser menores. Sobre o que escreve uma autora menor?

Feminismos, movimentos negros e LGBTI+ têm destacado que a vida está envenenada por relações agudas de poder. Se partirmos da lógica de que política é aquilo que ocorre através do reconhecimento de um dano, como postula Jacques Rancière, nossos agrupamentos e coalizões estratégicas funcionam, sobretudo, para nos ajudar a denunciar o que nos separa da vida. Parlamentares que dizem defender a infância também impõem à infância uma série de paixões tristes (vergonha, pesar, cólera, vingança e crueldade). Jogam com as emoções, para que pareçam ser eles os agredidos. Estimulam um pânico moral em relação à diversidade infantil, apontando que crianças estariam sendo “levadas” a acreditar que precisam ser do sexo oposto.

Um dos campos que mais se interessam pela intersecção entre “política” e “sentimento” é conhecido como “ciência afetiva”, marcada nos anos 1990 pelos trabalhos de Eve Sedgwick e Adam Frank. Refletiam sobre um grupo de emoções entendido como universal, tratando de investigar relações entre afeto, poder e privilégio. Quero avançar alguns anos e utilizar o esquema da “economia emocional” apresentado por Sara Ahmed, que analisa criticamente o paradigma das emoções entre aquelas “de dentro para fora” (estado psicológico) e “de fora para dentro” (contágio pela turba). Embora lembre o combate ao “kit-gay” e à “ideologia de gênero”, esse jogo emocional não se limita à diversidade. Ahmed examina um panfleto da Frente Nacional Britânica que, de maneira enérgica, convoca o contribuinte a se rebelar contra a chegada de imigrantes, estratégia comum entre setores conservadores: “Todos os dias de cada ano, enxames de imigrantes ilegais e falsos requerentes de asilo invadem a Grã-Bretanha por todos os meios disponíveis. Por quê? Eles buscam apenas conforto fácil e benefícios gratuitos com o toque suave britânico. Tudo financiado por VOCÊ!”.

A ciência afetiva procura dar conta de abordar o que é impossível de ser representado, algo que ocorre para além de um discurso que estimula britânicos a terem um “toque mais rígido”, impresso também na ameaça de que seus empregos e habitações serão lesados caso a nação não se some àquelas que ignoram crises humanitárias. Como isso chega a mim? Sempre tive medo de que minhas sobrinhas se descobrissem lésbicas ou mesmo trans, e nem precisamos ir muito longe. Em 2016, quando a drag queen Chandelly Kidman performava para crianças no setor de oncologia de um centro de saúde da capital do Piauí, diversos foram os ataques, dentre as muitas razões, por uma ideia de “contágio” ainda sorrateira no senso comum, que associa uma atmosfera de perigo às identidades trans — estas devem estar longe dos mais jovens.

Não sei explicar o porquê da minha transição, mas sei falar “como” ela foi mais corporal do que mental, mais “sentida” do que pensada, e essa afirmação me traz tristeza, afinal, reconheço os limites “afetivos” de um texto acadêmico. Que caminho posso seguir para acessar o leitor num nível ontológico? Afeto é produtor de sentido. Brian Massumi, central na teoria dos afetos, defendia ser preciso sair da domesticação promovida pelo discurso e abraçar um conhecimento corporificado. Afeto é um tipo de inteligência pré-consciente. Pessoas trans costumam ser referidas como semi-inteligentes, por não conseguirem “explicar” o inexplicável. Tente! O que o faz ser hétero? Sem uma noção específica de natureza, fica difícil responder.

Arrisco afirmar que existem indivíduos que pensam que crianças transicionam em função de mães “superprotetoras” ou “geladeira”, pais ausentes ou pais violentos, uso de telas ou avanço do mundo globalizado e outros tipos de causas persecutórias — como se a transexualidade fosse uma espécie de “agente externo” que faria mal a organismos “desatentos”. Parece que se tornam trans porque estão distraídas demais para notar a ação maligna da agenda homossexual.

Pessoas ainda se angustiam com as experiências trans. Os psicanalistas Thamy Ayouch e Eduardo Cunha convergem quando questionam quem tem medo das transições e o que se faz com esse medo do proibido e antinatural. A repulsa sentida pela possibilidade de mudança e pela instabilidade provocada pela transição atua na diminuição da potência de agir. Afeto é o que nos engaja com outras coisas. Leio textos sobre travestis e morte, travestis e cárcere, travestis e doença, e — mesmo reconhecendo suas legitimidades — queria engajar minha escrita de modo a fazer parentesco com o que é estranho, como nos ensina Donna Haraway em sua relação com sua cadela, Cayenne.

Afetos são imagens e ideias. É o que a transição simboliza para mim. Uma espécie de beleza aterrorizante. Sempre me pergunto o que faz com que algumas pessoas se afastem quando percebem que sou trans. Vejo-as dando um passo para trás. O que faz com que precisem se posicionar tão marcadamente, com que deixem escapar a intensidade de suas reprovações? O que veem em mim está em mim, nelas, no “entre” dessa relação? E a questão-chave: qual passo devo dar eu diante desse afastamento? A teoria dos afetos não se reduz aos humanos, fala dos objetos ditos passivos, dos animais, da natureza e de uma fenomenologia crítica. Eu, por exemplo, tenho um gato (chamado Blessinho) que sempre me segue, e nunca sei bem o motivo. Percebo apenas que quando faço determinadas coisas, como sentar na privada (escrevi Psicologia suja por algum motivo, não é mesmo?), sou acompanhada por sua curiosidade. Como se houvesse algo ali que o impulsionasse a escolher estar perto. O que me leva a fazer coisas? Quais são minhas paixões?

Quero ampliar os agenciamentos trans, mapear estratégias de subversão e resistência, celebrar Dzi Croquettes, ler O parque das irmãs magníficas, de Camila Villada, sair do paradigma “menino aprisionado no corpo de menina” e ir em direção ao entendimento proposto por Talia Bettcher, reconhecendo que crianças trans estão, no lugar disso, aprisionadas em teorias erradas.

A gramática em torno das experiências trans precisa acompanhar um giro ético já instaurado no campo. Como criar comunidade, fabular um transfeminismo das emoções, atento a formas como a violência mina nossa capacidade de mundificação? A teoria dos afetos propõe um foco na corporeidade. Falar que “transexualidade é corpo” significa que tal experiência extrapola o conhecimento que acreditamos dispor dela. Vejo a transexualidade como uma paixão humana. As pessoas têm direito a se apaixonar pela ideia de que suas construções singulares são legítimas. Caso aceitemos isso, seremos capazes de transfigurar o “porquê” de alguém ser trans para um “por quem”. Ora, não estou concorrendo para ser um símbolo altruísta, e acredite quando digo que conheço uma parcela longa dos meus egoísmos… Ainda assim, gosto de pensar que um dos rostos desse “por quem” é o seu, Amanda. Tal como faz meu gato, quando a encontro sinto vontade não de me afastar, mas, sim, de estar ao lado.

Sofia Favero é psicóloga, integrante da Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis, doutoranda em psicologia social e institucional (UFRGS) e autora dos livros Pajubá-terapia (2020), Crianças trans (2020) e Psicologia suja (2022).


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