Feminismo e cinema: a lógica da desmontagem em Helena Ignez

Feminismo e cinema: a lógica da desmontagem em Helena Ignez

Helena Ignez, cineasta, atriz e professora / Foto: Susi Padilha

Ralé, de Helena Ignez, estreia hoje em São Paulo, no Belas Artes. Apareçam.

Aqui o texto que escrevi para o debate que tivemos no SESC Santana, no evento Degeneradas II em março.

O filme Ralé de Helena Ignez (2015) usa como nome uma das traduções da peça de Máximo Gorki que pode também ser traduzida por “No Fundo” (Na Dnie). A peça comparece no filme como um elemento de citação. Nastya é uma personagem na forma de citação. Representada por Djin Sganzerla, a Nastya de Ralé vai muito além da personagem de Gorki, mas se constrói em diálogo com ela. Todo o filme Ralé, metalínguístico e citacionista, carrega em si sua própria teoria, no entanto, oriunda da peça de Gorky: “Uma série de cenas livremente interligadas sem ação coerente”, como na leitura de Brecht sobre Gorki realizada por Nastya.

Podemos falar de três dramaturgos em cena no filme Ralé: a própria diretora, Gorky e José Celso Martinez. Como nada é desproposital no cinema de Helena Ignez, é bom pensar nessa mistura de Gorki com Zé Celso que constrói o filme. Talvez ela possa “descolonizar o imaginário” como se propõe logo ao início na fala da personagem Jarda, mensageira, a leva-e-traz do Ahayuasca que percorre como um fio de fina presença o todo do filme. Jarda é aquela que viajou para outros países levando o chá, é a que foi até o Japão. A ligação entre ela e Barão (Ney Matogrosso), espécie de protagonista em uma narrativa de múltiplos protagonismos, é justamente o Ahayuasca que permanece oculto no filme, como um nome sagrado dito para ser lembrado.

O filme é praticamente uma colagem. Colagem de histórias de personagens que se apresentam em suas características, desejos, estilos, farsas. É nessa linha que aparece Jarda, a hippie que acredita em Deus, o futuro de Sonia Silk, a fera oxigenada do filme Copacabana, mon Amour de Rogério Sganzerla. Jarda é interpretada por Helena Ignez que, a dirigir esse filme grávido de outro, esse filme materno, constrói uma narrativa incomum onde cabem todos, onde cabem todos sem precisar de direções definidas.

Ao nos propor um cinema de reflexão, Helena Ignez calca a metalinguagem para a sorte de quem prestar atenção. Claro que assistir Ralé não é fácil, pois um fio vermelho da trama foi despedaçado em nome de outra aventura. Zé Celso avisa, ao ler um trecho dos escritos sobre teatro de Brecht, mais ou menos nos seguintes termos traduzidos para o português de uma tradução francesa: eu me contento em dar os fatos para que o espectador pense ele mesmo. Eu tenho necessidade de um público com os sentidos despertos. E que tenha prazer em jogar com a sua reflexão.

Um público com sentidos despertos em uma época anestesiada, em que a administração das sensações e das emoções serve para evitar a atenção e a reflexão, é esse espectador que está indisponível. Mas Ralé não é uma crítica pelo derrotismo e pelo ressentimento. O filme é a produção de uma esperança, um convite a pensar. A ver de novo. A entender o que está nos faltando justamente para poder entendê-lo.

No meio de todo o seu processo, Ralé é um filme reflexivo e feminista. Em Ralé se trata de pensar um feminismo em sentido amplo, um feminismo que vai além da questão feminina. Isso é possível? Seria pensável? Um feminismo além da questão feminina é realmente possível? Talvez esse seja o maior desafio que a grande desconstrução que o feminismo é, nos propõe. Do mesmo modo, o elemento feminista do filme de Helena Ignez, talvez seja menos o conteúdo do que a forma. Há falas feministas durante o filme em que personagens fazem discursos. Personagens se apresentam, dizem sua origem, apresentam a si mesmos, suas ideias dando espaço ao desejo de ser o que se é. Se Barão casa com Marcelo, seu filho vai para o serviço militar. Uma oposição como essa não serve, na contramão de todo roteiro, para criar conflito e drama, antes é um mote para a aceitação. Cada um é o que é. As pessoas incluem umas às outras sem rivalidade. O filme, nesse sentido, apresenta a utopia de uma sociedade em que ninguém exige nada de ninguém. Mas isso é altamente não-cinematográfico. É que o cinema tradicional depende mais da razão e dos afetos tristes e está mais ligado ao princípio de morte do que a eros. Esse filme de Helena ocorre no registro do amor. É a abundância de amor que o rege. Como na fala da atriz que protagoniza “A exibicionista”, o filme gestado dentro do filme, nesse cinema materno: “compartilhando geramos a abundância – um estado da natureza, que só acontece quando temos coragem de seguir o próprio sonho”. Seguir o próprio sonho. Mas de que sonho o filme fala? De qualquer sonho. O filme mesmo tem a estrutura de um sonho.

Desconstrução, desmontagem

O feminismo contudo, não é apenas um conteúdo. A forma do filme estabelece seu tom feminista num sentido ontológico.

Se pensarmos que o cinema é, sobretudo, montagem, e que o cinema foi criado no tempo da dominação masculina, o cinema de Helena Ignez é desmontagem. A montagem está para a dominação masculina como a desmontagem para a desconstrução feminista. Se foi a filiação ao cinema marginal que produziu isso, não é possível afirmar. “Transgressão brasileira” como na legenda que é a leitura de uma revista francesa ao falar do cinema marginal. Mas que Ralé é o gesto “cinematológico” de assumir a “desmontagem”, isso fica claro. Assim, os personagens não estão ali para servirem a uma causa racional previamente estabelecida, mas para enfrentar o que são e o que não são. No momento em que a protagonista de “A Exibicionista” se mostra ao “desespelho”, ela se mostra para enfrentar o que não é.

O filme é o que não é. O filme é uma defesa, no conteúdo e na forma de todas as formas de liberdade. A exibicionista saúda todos os gêneros atravessados e marginalizados através de milênios de cultura, diz a protagonista em seu ato exibicionista. Afirma o filme no qual atua como: conceitual, xamânico e gay. Feminista e libertário. Pacifista, solar, obscuro. E trans. Usa esses clichês para auto-afirmar-se enquanto ri dos clichês dos intelectuais bem comportados que procuram palavras expressivas e conceitos impressionantes para dar conta do real. Essa conversa acontece com dois jovens, tranquilos em sua exuberância intelectual e, ao mesmo tempo, prepotência.

No entanto, nada no filme é feito ou dito de modo a chocar como se poderia esperar de um filme tradicional. O choque seria óbvio demais em um filme que, antes crítico do que tradicional, prefere apostar em outros caminhos. Helena Ignez prefere mudar nossos registros de pensamento e produzir outra atenção. Adepta da ironia, nos encontramos com um “diretor mirim” que é um prodígio e cuja presença nos faz rir. A presença dos jovens é, aliás, saudada. Na cena em que a atriz de A exibicionista defende que os homens tenham para sempre 17 anos ela tanto defende que se “abuse” dos jovens. Menos os liberta para serem objetos, do que liberta as mulheres para ousarem, para inverterem o jogo, na contramão das regras patriarcais. Uma dessas inversões é formal: contra as regras do cinema, o “fim”, palavra que torna todo filme meio bobo, aparece cedo, logo aos 36 minutos de filme. O fim a queimar dentro de A exibicionista aponta para a verdade de que um filme nasce e morre dentro do filme. Que, como diz um dos garotos, estamos aqui para “finalizar” um filme, não para começar um filme. O ato de “finalizar” é a realização por inversão. Desrealização proposta desde o começo. Ralé é um filme feito para um anti-começo e um anti-fim.

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