Félix Guattari: vida e obra
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Pierre-Félix Guattari nasceu em 30 de março de 1930, filho mais novo de uma família pequeno-burguesa da pequena cidade de Villeneuve-les-Sablons, 50 quilômetros ao norte de Paris. Em 1934 seu pai criou a chocolataria Monbana. A família se mudou para La Garenne-Colombes, região periférica de Paris onde o jovem Guattari encontrou, durante o ensino médio, o professor Fernand Oury, figura determinante na pedagogia institucional francesa e irmão de Jean Oury, diretor da clínica La Borde, na qual Guattari trabalharia mais tarde.
Guattari uniu-se ao Movimento Laico dos Albergues de Juventude (MLAJ), onde Fernand Oury atuava. A associação contava com uma forte corrente trotskista, que o marcaria definitivamente pelo caráter internacionalista, anticolonial ou anti-imperialista e antistalinista. Guattari frequentava também o Partido Comunista Francês desde 1945, e se ligou, de 1948 a 1958, ao Partido Comunista Internacionalista – seção francesa da Quarta Internacional (PCI-SFQ).
Em 1951, depois de abandonar a faculdade de farmácia, foi aprovado no curso de filosofia na Sorbonne, onde seria aluno de Maurice Merleau-Ponty, que o marcou imensamente – mas não tanto quanto Jean-Paul Sartre. A partir de 1953, frequentou o seminário de Jacques Lacan e começou a ser analisado por ele. Foi também nesse ano que passou a trabalhar na clínica La Borde.
Jean Oury, como Frantz Fanon, formou-se em psiquiatria na clínica de Saint-Alban, coordenada por François Tosquelles e Lucien Bonnafé. Nela começou o que se tornou conhecido como psicoterapia institucional. Em 1955, mudou-se para morar em La Borde e em 1957 assumiu o cargo de diretor administrativo da instituição, no qual permaneceu até 1992. Seus três filhos (nascidos em 1958, 1961 e 1964), frutos do casamento com Nicole Perdreau, nasceram e cresceram na clínica.
Na Sorbonne, como estudante, Guattari participou ativamente do Comitê dos Estudantes Comunistas de Filosofia até o final dos anos 1950. Em 1956, colaborou com a criação do Tribune de discussion, boletim de oposição surgido no interior do PCF, financiado por Sartre e dissolvido em 1958. Nesse mesmo ano, abandonou o PCI-SFQ, em decorrência do silêncio do partido diante da Guerra da Argélia, e participou da criação da revista La voie communiste, que funcionava como um grupo de suporte à Frente de Libertação Nacional (FLN) argelina, escrevendo sob o pseudônimo Claude Arrieux. Essa foi sua primeira tentativa de participar de um movimento político não estruturado como partido. Guattari contribuiu financeiramente para a FLN como muitos dos que participaram da guerra lutando pela independência argelina sem sair da Europa – o grupo foi financiado por La Borde, entre outras instituições, até 1964.
Nesse mesmo ano, Guattari rompeu com o grupo e com os maoístas, o que culminou com a dissolução do círculo no ano seguinte. Criou a Oposição de Esquerda (Opposition de Gauche), cujo programa está presente em Psicanálise e transversalidade (1972). O grupo seria “absorvido” por Maio de 1968, como o Comitê Vietnã Nacional (CVN), do qual Guattari participou desde sua criação, em 1966.
Em 1961 ele havia começado a participar do Grupo de Trabalho de Psicoterapia e de Socioterapia Institucional (GTPSI, 1960-1966) instigado pelos seus criadores, Jean Oury e Tosquelles. Em 1964, Lacan criou a Escola Freudiana de Paris (EFP, 1964-1980), da qual Félix foi membro até sua dissolução e na qual constou como analista desde 1969. Em 1965, Guattari criou a Sociedade de Psicoterapia Institucional (SPI), cuja revista homônima circularia entre 1966 e 1968. O primeiro número incluiu o artigo “A transversalidade”, manifesto em que Guattari criticava o que chamou de “centralismo democrático” e em que defendia uma organização política que não fosse nem horizontal (cada um se virando como podia no grupo) nem vertical (como a dos partidos políticos, da burocracia estatal e da política institucional). Grosso modo, a psicoterapia institucional, assim como a pedagogia institucional, pretendia transformar as instituições a partir do seu interior. A transversalidade é uma máquina de guerra contra a burocratização, implica uma abertura à alteridade e à finitude que permite a um grupo se enunciar rompendo com as formas de expressão dominantes. O trabalho conceitual de Guattari estaria sempre ligado a suas práticas militantes e aos problemas levantados por ela, tanto no campo político como no clínico.
Para avançar nesse processo e unir diferentes grupos e tipos de instituição social, Guattari criou, em 1965, a Federação dos Grupos de Estudos e Pesquisas Institucionais (FGERI) e a revista Recherches (1966-1983), que dirigiu até 1981.
Em 1969, conheceu Gilles Deleuze, com quem publicou O anti-Édipo (1972), primeiro tomo de Capitalismo e esquizofrenia. Nessa obra, o conceito de máquina desejante, que faltava em Wilhelm Reich, é criado para unir Sigmund Freud e Karl Marx e para pensar as sociedades e a “história universal” do ponto de vista do capitalismo ou de sua economia libidinal. Psicanálise e transversalidade foi publicado no mesmo ano, com prefácio de Deleuze.
Entre 1971 e 1972, Guattari participou, ao lado de Michel Foucault e Deleuze, do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP). No ano de 1973, Foucault publicou “Os equipamentos do poder” na revista Recherches. Sylvère Lotringer, responsável pelo Reid Hall, campus estadunidense da Universidade de Columbia em Paris, convidou Guattari a oferecer um seminário intitulado “Micropolítica do desejo”. Por meio de sua revista e editora Semiotext(e), Lotringer foi responsável pelo que ficaria conhecido nos Estados Unidos como “French Theory”.
Em Nova York, em 1974, Guattari encontrou o psiquiatra Mony Elkaïm, que dirigiu uma clínica no bairro do Bronx. Esse encontro levou à criação da Rede de Alternativas à Psiquiatria (1975-1988), que reuniria Robert Castel, Franco Basaglia, Giovanni Jervis, David Cooper, Ronald Laing e Sylvia Marcos, entre outros. Essa rede teria relações com a América Latina no momento de “redemocratização” dos anos 1970-1980 e da luta antimanicomial.
De 1973 em diante, Guattari desenvolveu a noção de micropolítica do desejo, com atenção particular para as semióticas assignificantes, liberadas do despotismo do significante. Além disso, por meio do conceito de revolução molecular, visava à criação de novos espaços de liberdade, mas também descrevia uma nova tecnologia de repressão, adaptada ao neoliberalismo.
Em 1977 fundou, ao lado de Giselle Donnard, o Centro de Iniciativas por Novos Espaços de Liberdade (Cinel), cujas primeiras atividades foram a criação de rádios livres e o apoio a exilados e vítimas da repressão na Itália e na Alemanha. Um deles, Franco Bifo Berardi, exilou-se em Paris para fugir da perseguição da qual foi vítima por participar da Rádio Alice, na Itália. Entusiasmado com o potencial das rádios livres, Guattari lançou, com François Pain, a Radio Libre Paris (1977-1980), que se tornaria Rádio Tomate (1980-1983).
O movimento autonomista italiano já havia atraído a atenção de Guattari em 1977, num encontro em Bolonha. Por intermédio do Cinel, Félix serviu de apoio a outros exilados (Franco Piperno, Oreste Scalzone e Antonio Negri), acolhendo-os em sua casa, de 1977 até sua prisão em 1979, e após sua libertação em 1983.
Guattari também seguiu de perto os desdobramentos da luta política e antimanicomial na Alemanha, seja na defesa de Klaus Croissant – advogado de Ulrike Meinhof, fundadora da Facção do Exército Vermelho, grupo de extrema esquerda alemão –, seja escrevendo sobre o Coletivo de Pacientes Socialistas (SPK), iniciativa que surgiu na Universidade de Heidelberg e se espalhou pela cidade após a expulsão do médico Wolfgang Huber e de sua clínica na universidade. Essa iniciativa foi, segundo Guattari, a mais ousada que existia em toda a Europa, e a repressão contra muitos dos participantes seria um sinal da potência que esse tipo de iniciativa clínica pode produzir.
A partir de 1975, Guattari também colaborou com a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) por intermédio de Ilan Halevi, realizando uma missão nos territórios ocupados em 1978.
Enquanto continuava a escrever com Deleuze, com quem publicou em 1975 Kafka: por uma literatura menor, e em 1976 o artigo “Rizoma”, que se tornaria em 1980 a introdução de Mil platôs (segundo tomo de Capitalismo e esquizofrenia), Guattari publicou duas versões de Revolução molecular. A primeira, de 1977, contém uma seção sobre semiótica ausente da versão de 1980, que contém vários textos sobre a situação italiana. Em apoio a Toni Negri, preso desde 1979, ele propôs a escrita de um livro a quatro mãos, As verdades nômades: por novos espaços de liberdade (1985).
Em 1979, Guattari publicou O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise, articulando ideias sobre micropolítica e uma semiótica assignificante por intermédio dos conceitos de buraco negro e rostidade, que caracterizam o inconsciente moderno capitalista, paradigma de uma micropolítica molar dominada pelo significante, fixada no grau zero de uma micropolítica, desta vez molecular, que se distingue da primeira pelo nível de transversalidade e dinamismo. Ele continuou pensando sobre as formas dominantes de subjetivação no interior do capitalismo e sobre quais são as subjetividades capazes de encontrar formas de escapar do modo dominante de expressão. O livro contém também um longo anexo sobre Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.
O otimismo que dominou a França em 1981, com a eleição do socialista François Mitterrand – mas que nunca contagiou Guattari, engajado na campanha do comediante Coluche –, transformou-se rapidamente em decepção com o alinhamento do presidente às práticas neoliberais de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Era o começo do que ele chamou de “anos de inverno”, expressão que deu título a um livro publicado em 1986. A introdução de Para passar os anos de inverno foi redigida na cidade de Belém (PA) e publicada na Folha de S.Paulo, quando Guattari cogitava a possibilidade de se mudar para o Brasil para escapar da glaciação europeia.
Em 1982, viajou pelo Brasil com Suely Rolnik. Dessa viagem resultou o livro Micropolítica: cartografias do desejo (1986), que seria publicado em francês apenas em 2007. Sua primeira viagem ao país havia sido em 1978, convidado por Gregório Baremblitt para o 1o Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições do Instituto Brasileiro de Psicanálise (Ibrapsi). Em 1979, participou do 1o Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, e graças a essa viagem encontrou-se com Jacó Bittar e outros militantes envolvidos na criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Em 1982 entrevistou Luiz Inácio Lula da Silva, e o texto foi publicado em livro que visava apoiar a candidatura de Lula ao Senado.
Até 1992, ano de sua morte, Guattari viajou regularmente para Argélia, México, Chile, Argentina, Brasil e Japão. Criou em 1983 a Fundação Transcultural Internacional.
Guattari ficou muito interessado no advento de novas tecnologias da informação, sobretudo a partir da década de 1980. Observando a experiência de distribuição gratuita do Minitel, um aparelho telemático da France Télécom, Guattari lançou com o Cinel uma parceria com o ecologista e programador Emmanuel Videcoq: a rede Alternatik, plataforma on-line que continha uma espécie de blogue e era usada por diversas organizações para debater e difundir informação instantaneamente – e isso quase uma década antes da internet. Essa rede foi fundamental para a articulação da greve de enfermeiras e enfermeiros em 1988, e de estudantes em 1986.
Contra os pós-modernos (leia-se Jean-François Lyotard e os novos filósofos), que clamavam pelo fim da política e das narrativas e possibilidades de uma transformação social, Guattari defendia, com o movimento das rádios livres, uma era pós-midiática que visaria à articulação no dissenso entre movimentos sociais e partidos políticos. Para ele, a tecnologia da informação permitiria a reinvenção da democracia e a redinamização da política e da vida social.
De dezembro de 1980 até 1988, Guattari manteve um seminário que culminaria com a criação da revista Chimères (ainda ativa), ao lado de Gilles Deleuze, entre outros. Seus seminários estão disponíveis no site da revista. Nesse período, ele voltou a clinicar em consultório, como não fazia desde a publicação de O anti-Édipo. O objetivo do seminário era justamente apresentar e discutir ferramentas clínicas – e assim surgiu o livro Cartografias esquizoanalíticas, publicado em 1989.
Em 1985, impressionado por Die Grünen [Os Verdes], que constituía naquele momento uma nova força de esquerda na Alemanha, Guattari organizou os Encontros de Práticas Alternativas por meio de uma parceria entre o Cinel, o recém-criado Partido Verde francês e a Federação da Esquerda Alternativa. Pouco depois, aderiu ao Partido Verde, militando pela abertura de sua política, que recusava alianças com a esquerda por considerar que a ecologia não seria nem de direita nem de esquerda. Ele continuou defendendo o dissenso e organizou o Apelo por um Arco-íris em 1986, que contou com poucos ecologistas. Foi mais uma tentativa de articular movimentos sociais e partidos políticos. Diante do resultado eleitoral insignificante, o Cinel teve fim em 1988, período em que Guattari atravessou uma depressão.
No inverno de 1989, terminou de escrever As três ecologias, obra em que encontramos o conceito de ecosofia. Ele insistia na necessidade de apreender a ecologia de maneira transversal, pela articulação e o imbricamento de três ecologias: a mental, a social e a que envolve o meio ambiente. Esses planos não poderiam ser separados, e a ecologia não deveria se restringir à questão ambiental. Por exemplo: o Partido Verde militava contra o aquecimento global, embora não apresentasse respostas para o problema da moradia nas cidades. O objetivo de Guattari era, portanto, pensar a ecologia como condição de possibilidade de produção das subjetividades; assim, o meio é também mental e social.
Foi também em 1989 que ele se aproximou do Grupo de Reflexões Inter e Transdisciplinares (Grit), instigado pelo médico Jacques Robin. Continuou ativo no Partido Verde, propondo uma moção de orientação no congresso do partido em novembro de 1990, mas se envolveu na criação de um outro partido, nomeado Geração Ecológica. Em maio de 1992, participou de encontros paralelos à Cúpula da Terra no Rio de Janeiro e aproveitou a viagem para promover suas obras mais recentes, O que é a filosofia? (1991) e Caosmose: um novo paradigma estético (1992) (cuja edição brasileira foi publicada antes da francesa). Caosmose é uma compilação de conferências apresentadas no Brasil e é produto também da depressão de Guattari. Esse trabalho apresenta como a caosmose, coexistência do caos e da complexidade coextensiva a todo agenciamento, permite a singularização e a heterogênese, enquanto a equivalência capitalista impede o acesso a ela. O subtítulo ressalta que a ecologia da produção subjetiva deve ser pensada com base em um paradigma estético em vez de científico, por uma perspectiva de criações que enriqueceriam o projeto ecosófico e que deveriam estar no coração das sociedades para que possam reencontrar e revalorizar suas finalidades humanas.
Guattari morreu de um ataque cardíaco na noite de 28 de agosto de 1992, em sua casa, próxima de La Borde. Deixou muitos projetos não concluídos – pretendia escrever um livro com Paul Virilio com base em diálogos sobre a guerra, outro com o filósofo e poeta Édouard Glissant e um novo livro seu, lançado postumamente como Qu’est-ce que l’ecosophie? [O que é a ecosofia?] (2013).
Em 1999, foi publicado postumamente o ensaio poético e autobiográfico Ritornelos. Guattari escreveu diversos roteiros, nenhum deles filmado, e também peças de teatro.
Félix esteve por toda parte, frequentou grupos de todos os meios, de militantes a figuras políticas, de loucos a médicos, de artistas a cientistas, de pesquisadores de todos os tipos, de norte a sul e de leste a oeste, e essa riqueza transversal pode ser vista em seu trabalho.
(Tradução de Larissa Drigo Agostinho)
Jean-Sébastien Laberge é doutorando nas universidades de Ottawa e Paris Nanterre e membro do comitê editorial da revista La Deleuziana. Texto originalmente publicado na Cult 273 (set/2021).