Fechando as portas no topo do sucesso: o fim da Decca
Não é apenas o fim da gravadora que introduziu o estéreo, o LP e a gravação digital. É o fim de uma qualidade única que definia a música clássica
Norman Lebrecht
Não é sempre que uma gravadora emplaca um sucesso no topo das paradas e fecha as suas portas na mesma semana. Por isso, uma lágrima para a Decca. A não ser que aconteça uma reviravolta de última hora, o ícone londrino da indústria musical será varrido do mapa.
No topo das paradas está o primeiro trabalho de Julia Fischer, uma performance dos concertos para violino de Bach, ao lado da Academy of Saint Martin in the Fields. Fischer é uma artista alemã de 25 anos com discurso direto e um senso claro de prioridades. “Bach sempre esteve presente na minha vida”, afirma em seu vídeo promocional. “Era uma obrigação gravar seus concertos para violino”, acrescenta. Em vez de delegar a responsabilidade a um maestro, ela mesma rege a orquestra.
Seu disco, em primeiro lugar nas paradas de música clássica da Billboard, foi lançado recentemente na Inglaterra e tem se saído muito bem. Mas a indústria da música clássica não acompanha mais as estrelas em ascensão nem a lógica do mercado. Ela está muito ocupada em disputas corporativas. O sucesso de Fischer provavelmente será o último da gravadora Decca.
A Decca é uma marca britânica, parte de um patrimônio cultural que nossos antepassados levaram consigo às trincheiras da Primeira Guerra Mundial e com o qual dançaram durante os anos da Depressão quando Bing Crosby, Stephane Grapelli e Louis Armstrong eram seus ídolos. Vera Lynne cantou para a nação inglesa durante a Segunda Guerra Mundial, pela Decca, depois de uma equipe de soldados da Marinha utilizar seus conhecimentos sobre radares para produzir o som mais limpo que qualquer pessoa já tinha ouvido em gravações. A Decca introduziu tecnologias como o estéreo, o formato de LP e a gravação digital. Traçou caminho próprio em uma indústria dirigida por produtores preguiçosos e antiquados. A gravadora pode ter recusado os Beatles, mas lançou os Rolling Stones.
No entanto, a música clássica sempre foi seu principal negócio. A Decca era famosa por seus cantores, como Kathleen Ferrier, Joan Sutherland e Luciano Pavarotti. A gravadora era uma vitrine para compositores contemporâneos, como Benjamin Britten e Michael Tippett. Registrou pela primeira vez o ciclo O Anel do Nibelungo, de Wagner, e realizou a primeira gravação completa das sinfonias de Josef Haydn. Embora extrordinariamente instável, sempre contou com a lealdade de seus artistas. Um solista chegou a batizar seu cachorro de estimação de ‘Decca’.
O selo, porém, acabou se perdendo pelo caminho, além de seu lugar nas paradas de sucesso e, em 1980, foi vendido para um grupo europeu que administrava as rivais Deutsche Grammophone (DG) e Phillips. Essa parceria, conhecida como PolyGram, foi absorvida pelo conglomerado multinacional da Universal, que opera a partir de Hollywood e Nova York. A Decca prosperou com o lançamento do disco Os três tenores, em 1990, que se tornou o álbum de música clássica mais vendido de todos os tempos. Mas suas estrelas envelheciam e, quando Georg Solti e Pavarotti faleceram, restou aos burocratas da Universal guerrear com bolinhas de papel dentro dos estúdios.
O desespero do crossover
Mas isso não abalou o diretor do departamento de música clássica e de jazz da Universal, Christopher Roberts, uma pessoa que acredita que não há dinheiro no mundo que justifique seu trabalho. Roberts, a partir da metade dos anos 1990, tornou-se adepto do crossover: um gênero que não recusa nada, que faz roqueiros como Sting cantarem música clássica, divas da música barroca como Anne-Sofie von Otter interpretarem Abba, e artistas medianos como Katharine Jenkins e Hayley Westenra se transformarem em estrelas de óperas, apesar de nunca terem participado de qualquer espetáculo durante suas vidas. O sonho da Universal é ter Bryn Terfel em dueto com Ronan Keating. Nada era considerado baixo demais para o gosto deles. A Decca chegou a contratar uma prostituta transexual e a colocou em um reality-show no qual ela tocava piano.
Há três anos, Roberts apontou o aprendiz Bogdan Roscic como chefe da Decca e deixou o selo ser dominado pelo gênero crossover, enquanto a DG ficava responsável pela música clássica. Mas como o crossover precisava convencer as vovozinhas de seu valor cultural, necessitava da chancela da DG. Quando Ronan Keating juntou-se a Elvis Costello e Sting para formar a “elite” da música clássica, acompanhados por shows de talento na televisão, a Decca foi perdendo a identidade até então definida, tremendo de frio no inverno da recessão econômica.
Roscic tinha pouca coisa para mostrar durante seu mandato de três anos, além de uma tentativa frustrada de exibir concertos ao vivo pela internet e a contratação de Julia Fischer, no final de 2008, a promissora violinista alemã. Quando Roscic soube que Roberts estava planejando desmantelar a Decca, ele abandonou o barco e foi para a adormecida Sony Classical, onde recebeu um importante cargo, mas pouco orçamento.
Os poucos que permaneceram nos escritórios da Decca estão apenas aguardando suas demissões. Eles esperam em breve receber a notícia de que a gravadora virou história. E obrigado pela lembrança.
Nestes tempos, em que empresas somem a cada dia, a perda de uma gravadora de discos dificilmente será motivo para luto. No entanto, o fim da Decca é mais do que a simples perda de um símbolo. A Decca significava algo importante para artistas e compradores de disco. Era uma gravadora que desdenhava o poderio das estrelas, deixando tiranos como Herbert von Karajan em estado de choque quando produtores e engenheiros de som se recusavam a aceitar suas ordens. Decca também tinha aquela sonoridade inesquecível, de uma clareza inconfundível: caseira, high tech e infalivelmente discreta, um som que nunca jogava pingue-pongue com suas orelhas.
Fim da linha
Essas qualidades foram esquecidas há muito tempo, como demonstra asquerosamente o novo disco de Fischer. O som de Fischer é precariamente equilibrado, soa exagerado, excessivamente “brilhante”. As sutilezas que a violinista procurou transmitir tornaram-se grosseiras na mão de engenheiros de som freelancers, que não possuem nenhuma história dentro da Decca. Tampouco é possível notar a intervenção de qualquer produtor. Fischer toca com virtuose e com uma técnica de aço, mas sem muito planejamento ou refinamento. Comparações com a jovem Anne-Sophie Mutter, igualmente metálica mas infinitamente mais controlada, colocam Fischer em um segundo plano. Decca, em seus tempos áureos, jamais venderia esse produto.
Mesmo assim, não há tanto motivo para nostalgia. Muitas empresas foram para o buraco, levando suas tradições para o esquecimento. Decca junta-se a uma longa fila rumo ao necrotério. A única coisa para se lamentar é que morre com a Decca não apenas um selo, mas o próprio conceito de selo como sinônimo de caráter e de personalidade, de uma marca que unia músicos e ouvintes em busca de uma qualidade singular. A ideia de selo definiu a indústria fonográfica. Trata-se de uma estratégia que corresponde à antítese de conglomerados como a Universal, que esterilizam essa indústria.
Sem os selos, artistas derivam para lugares parecidos com a Starbucks, ouvintes perdem interesse, e os sobreviventes da indústria fonográfica passam a vasculhar as latas de lixo. Qualquer hit de música clássica que chega ao topo das paradas dificilmente ultrapassa a marca de 500 cópias vendidas por semana, o que é insuficiente para pagar a aposentadoria de um diretor. É o fim da linha para a Decca, a última valsa dentro de um estúdio de sonhos.