Maria Fernanda Cândido: “fazer teatro é uma alegria difícil, mas chama-se alegria”
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Em cartaz do dia 25 de janeiro até o próximo dia 9 de fevereiro, a peça Balada acima do abismo,com direção de Gonzaga Pedrosa, apresenta a atriz Maria Fernanda Cândido interpretando fragmentos biográficos de Clarice Lispector junto a trechos de suas obras. Trata-se de uma adaptação de um recital dramático que ela performou em Paris na ocasião do centenário de Clarice Lispector, em 2020.
A atriz, que já interpretou a personagem principal de A paixão segundo G.H. nos cinemas sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, dá agora mais um passo que a aproxima da obra da escritora que, segundo ela, a acompanhou desde a adolescência, quando leu pela primeira vez A hora da estrela.
Radicada na França há cerca de sete anos, a atriz encontrou em Clarice o despertar de seu amor pela língua portuguesa em meio ao ambiente francófono. Em entrevista à Cult, Maria Fernanda Cândido comenta sua carreira no cinema e no teatro e faz um balanço de sua relação com a língua e a escritora, com a qual aprendeu o valor da desistência: “Desistir, para Clarice, é ter coragem para caminhar na direção do desconhecido, daquilo que você não sabe. Não ter certezas absolutas o tempo inteiro.”
Como Balada acima do abismo chega ao seu percurso artístico?
Eu tinha acabado de gravar A paixão segundo G.H em 2018. Em 2019, já morando em Paris, fui convidada pela Catarina Brandão, do setor cultural da embaixada brasileira na França, para um evento em comemoração do centenário de Clarice Lispector junto a uma pianista, com uma leitura dramática de textos adaptados pela própria Catarina. E eu aceitei. Foi assim que conheci a pianista Sonia Rubinsky.
Eu e Sonia gostamos tanto dessa experiência que decidimos apresentá-la para o público francês. Fizemos duas temporadas desse espetáculo em Paris em um formato de recital dramático. Foi uma experiência linda. Um ano depois fizemos mais uma temporada. Depois, eu acabei tendo o sonho de transformar esse recital em uma peça.
Agora, estamos trabalhando com uma produção brasileira para apresentar essa peça em português pela primeira vezTem sido uma alegria muito especial. Conto com a direção do Gonzaga Pedrosa, com a luz do Caetano Vilela e o cenário e o figurino do Fábio Namatame. O Teatro Jaraguá funcionou durante muito tempo(eu inclusive já estive em cartaz lá, há 18 anos), mas o espaço esteve fechado nos últimos anos. No ano passado, eles decidiram reabrir as portas. Essa peça, que ocorre no aniversário de São Paulo, marca a reinauguração desse novo equipamento cultural para a cidade. Isso é algo muito significativo para mim.
Como Clarice entrou na sua vida?
Aconteceu quando eu era jovem, ainda na escola. Hora da estrela fazia parte da leitura obrigatória. Esse foi, inclusive, o livro que caiu na prova quando eu prestei vestibular. Eu me lembro que aconteceu um encantamento. Eu gostei tanto do livro que continuei lendo coisas dela. Segui lendo, eu me lembro, Felicidade clandestina, A descoberta do mundo, Perto do coração selvagem… Quando tinha 29 anos, eu ganhei de presente A Paixão Segundo G.H. do Luiz Fernando Carvalho, porque havíamos acabado de concluir o nosso primeiro trabalho juntos, que foi uma novela. Ele escreveu na dedicatória “De Luiz, para Maria, 2002”, e eu tenho esse livro até hoje. Não acho que ele já tinha na cabeça a ideia de que iria filmar esse livro, e muito menos que ele iria filmar comigo, mas a gente seguiu trabalhando junto, e, em 2017, ele me convidou para filmar A paixão segundo G.H..
Desde então, o que mudou na sua relação com a escritora?
Filmar G.H. foi um momento de grande aprofundamento da minha compreensão da obra dela. Porque até então eu a lia; era uma leitora ávida, e eu tinha um prazer imenso em lê-la, mas me preparar para fazer essa personagem G.H. — que é tão emblemática, e que talvez seja a síntese de tudo que Clarice tenha dito e escrito — foi um desafio gigantesco. Foi quando fui absorvida para entrar em um contato muito mais profundo com a obra dela. Isso mudou a minha relação com Clarice, porque eu acabei me aprofundando e criando uma intimidade muito maior com o que ela escreveu.
Você acha que Clarice diz algo a você sobre a experiência de ser estrangeira em Paris?
Sim, muito. Eu me mudei para cá justamente quando eu estava diante do desafio de fazer esse filme. Comecei a lidar com sentimentos de não pertencimento por estar enfrentando outra cultura, outros códigos e outros costumes. Tudo isso tinha uma ressonância muito forte com a obra e com as coisas que Clarice viveu. Ela também teve de se adaptar a outras culturas, porque era casada com um diplomata, então tinha que viajar por países diferentes e se mudar o tempo todo. Considero isso uma coincidência que não consigo nem explicar, mas que foi fundamental para a minha preparação para o filme.
Acha que Clarice foi bem compreendida em francês?
Essa questão das traduções me acompanha, porque a partir do momento que você sai da sua cultura, sai do seu país e vai morar num lugar com uma língua diferente da sua, você vai ter que enfrentar isso no seu cotidiano o tempo todo. É difícil, não vou mentir. Apesar de que, depois de quase sete anos aqui, eu já deixei de lutar contra essa questão. Eu já entendi que eu vou ter que conviver com isso.
Mais especificamente sobre Clarice em francês: é diferente, é uma tradução. A tradução não é a coisa em si; ela não é o original. Já considero a tradução como uma terceira coisa. Mas essa terceira coisa também se comunica com as pessoas e tem a sua força própria: ela também tem vida e alma por causa do tradutor. Os tradutores são pessoas com quem eu gosto de conversar, porque eles também acabam trabalhando com uma obra muito próxima ao original, mas com seus filtros, e isso pode ser algo muito bom.
Fizemos duas temporadas desse recital dramático aqui na França. Foi um sucesso enorme. As apresentações estavam lotadas, e muita gente vinha conversar conosco no final. Muita gente sabia quem é Clarice Lispector, porque, claro, a intelectualidade conhece, mas muitas pessoas não. E as pessoas queriam saber quem era essa escritora. Queriam saber exatamente o nome, porque queriam comprar um livro dela; queriam dar de presente para amigos, e muita gente fez isso. Alguns me mandaram mensagens dizendo que compraram vários exemplares. Foi como se eu tivesse levando alguma coisa muito preciosa da minha cultura para essa cultura que me recebeu, com a qual eu estou dialogando atualmente. Tive a sensação que estava levando uma joia, uma preciosidade nossa, que eles estavam recebendo com os braços abertos.
Eu acho que existe um movimento de descoberta de Clarice aqui na Europa. Lembro bem da grande citação que Cate Blanchett fez de Clarice no Festival de Cinema de San Sebastian, na Espanha, quando leu um trecho enorme de “Diálogo do desconhecido” e falou da autora brasileira. E eu fico felicíssima com isso e de estar, de alguma maneira, levando Clarice para as pessoas.
O que você aprendeu e desaprendeu com G.H.? Como foi viver a desorganização profunda?
Eu aprendi a me encontrar melhor comigo mesma. Eu me permiti me aceitar mais com os meus erros, meus fracassos, com as minhas inseguranças, com os meus sucessos, os meus medos. Todo esse processo me fez ter uma relação muito mais honesta comigo mesma.
Que desafios você encontrou ao levar a escrita de Clarice ao palco? Eles foram diferentes dos desafios encontrados ao levar Clarice para o cinema?
Sim, muito diferente. Os desafios para levar G.H. para o cinema foram enormes. Inclusive o Luiz Fernando não usa a palavra adaptação para se referir a esse filme. Ele acha que a adaptação pode acabar aprisionando o desenvolvimento do filme. O que eu acho que foi muito interessante foi que ele quis ser fiel ao livro. A paixão segundo G.H. é um livro que vai acontecendo à medida que a autora o escreve, no sentido de que ela se coloca diante do desafio de dar forma àquilo que precisa dizer. Ela começa o livro num ato quase psicanalítico. Algo como: “Eu não sei o que fazer com o que me aconteceu, mas eu não quero ficar com isso, então, tome para você o que eu vivi”. O ato de contar, se a gente entende como um ato psicanalítico, vai tomando forma à medida que acontece. Como fazer um filme sobre este livro, que se apoia nesse movimento de dar forma ao indizível? Se eu te contar o que eu vivi ontem no quarto da empregada, eu vou mentir; porque o que eu contar já não é mais o que eu vivi. Então, como contar sem mentir? Clarice nos responde: mentir não. Criar. O próprio ato de contar é um ato de criação.
Luiz Fernando quis fazer um filme que fosse criado à medida que fosse sendo feito. Por isso, nós não trabalhamos com roteiro. Não existia um roteiro que dizia “GH levanta, vai até a janela, vira e diz algo”. Isso, para mim, teria sido um conforto muito grande. Mas conforto é uma palavra que passou longe dessas filmagens. O que nós tínhamos nas mãos era o livro e algumas direções, como o cenário preparado.
A falta de conforto, que você citou, continua?
Olha, pra responder, eu preciso usar a Clarice: fazer teatro é uma alegria difícil, mas chama-se alegria.
E a peça também não tem roteiro?
A peça não é assim. Toda a feitura desse filme foi fiel ao livro porque tratava-se de uma obra específica. A peça é composta de fragmentos biográficos tirados de muitos lugares diferentes. Eles estão todos costurados de maneira a levar o espectador a adentrar vários contos, de forma que ele nem perceba quando entramos em um conto ou saímos dele. Não é tão claro, exceto aos grandes conhecedores de Clarice, que conhecem, por exemplo, “Restos de Carnaval”. Mas, supondo que uma pessoa da plateia não conheça, ela não vai saber exatamente quando começa um conto e quando partimos para um fragmento biográfico.
E, além disso, há a música, que não é apenas uma trilha de fundo. Ela não está lá para admirarmos a grande pianista Sonia Rubinsky tocando Rachmaninoff, Villa-Lobos, Nepomuceno. A música também é uma personagem da peça. Ela conta a história. É uma música exata, que está no lugar exato para contar essa história. Em alguns momentos, eu e a música estamos absolutamente interligados, quase falando ao mesmo tempo ou parando numa pausa. A música entra, depois a música para e eu continuo.
Existe também um arco dramático muito nítido para a personagem. Ela começa em um lugar e chega a outro. Esse é o trabalho teatral que pretendemos levar ao público. Por isso, essa peça tem características muito distintas do que eu fiz no cinema. No cinema era uma única obra, aqui são trechos de várias obras.
Você acha que há diferença entre interpretar Clarice e G.H.?
É diferente. Nessa peça não fazemos um trabalho de mimetizar Clarice — não é essa a linguagem adotada pelo diretor —, mas eu falo como Clarice em vários momentos, em primeira pessoa. Na Paixão segundo G.H., G.H. é a personagem. Não há Clarice falando, embora entendamos que G.H. seja, talvez, a obra que mais se aproxima da própria autora. Mas somos nós que enxergamos e lemos dessa maneira.
Que pergunta só Clarice conseguiu responder para você?
Eu não sei se eu tinha uma pergunta e essa pergunta foi respondida. Eu diria diferente: Clarice nos traz revelações. Coisas, por exemplo, relacionadas ao seu amor pela língua portuguesa. Isso foi algo que eu descobri, que me foi revelado com essa peça. Fui convidada para a comemoração do centenário da escritora justamente nesse período em que eu tinha chegado àFrança. Falar outra língua, estudar outra língua, conversar com pessoas, assistir filmes, eventualmente ler uma revista ou um jornal em francês… Foi passando por isso tudo que eu descobri muito do meu amor pelo português. Clarice escreveu sobre isso e gerou uma ressonância grande em mim.
Outra coisa tem a ver com com a desistência, essa palavra que representa quase um pecado dentro da nossa cultura, cartesiana, positivista, que é a cultura do sucesso, da vitória e do mérito. Clarice traz isso com tanta delicadeza quando fala, por exemplo: “Desisto e quanto menos sou mais vivo […] desisto e quanto mais ignoro a senha mais cumpro o segredo, quanto menos sei mais a doçura do abismo é o meu destino.” Desistir, para Clarice, é ter coragem para caminhar na direção do desconhecido, daquilo que você não sabe. Não ter certezas absolutas o tempo inteiro. Essas foram minhas revelações com Clarice.
Essa peça te empolga a estar mais presente nos palcos brasileiros?
Estou muito feliz de poder estar em São Paulo, minha cidade — no dia de seu aniversário, 25 de janeiro —, reinaugurando o Teatro Jaraguá, reabrindo um novo equipamento cultural para a capital paulista. Isso tudo em um momento em que o teatro se mostra tão forte e em que a nossa arte se mostra para o mundo de uma maneira tão bonita. O teatro é isso, um ritual do instante presente, algo efêmero. Eu me alimento do teatro e preciso do teatro muito mais do que ele precisa de mim. É no teatro que eu posso me reciclar, renascer para continuar pelo mundo oferecendo minha arte. Faremos essa temporada em São Paulo, e mais adiante, em junho, também apresentaremos a produção francesa aqui. Mas dessa vez em francês.
Como tem sido a parceria com Luiz Fernando Carvalho?
Luiz é um parceiro de jornada, de vida. São 23 anos trabalhando com ele. Muito da formação do meu olhar também se dá ao longo desse tempo. Ele é alguém com quem eu tenho uma profunda interlocução artística e estética. Sem dúvida, Luiz é meu grande parceiro nas artes e uma pessoa pela qual eu tenho uma grande admiração. Falamos muito do Luiz, mas há também uma equipe que trabalha com ele.
Os processos de trabalho com ele são longos. A paixão segundo G.H., por exemplo, levou um ano de trabalho, ainda que minha preparação para esse filme tenha sido a minha vida inteira. Mas os trabalhos com Luiz levam meses. No mínimo seis. Lavoura Arcaica levou seis meses a um ano de preparação. Essa é uma marca dele. Isso acaba tendo uma influência enorme sobre o meu jeito de trabalhar e de estar no set, sobre o meu jeito de me aproximar de uma obra ou de um autor. Por isso é uma grande parceria, muito frutífera e muito bonita.
Balada Acima do Abismo
De 25 de janeiro a 09 de fevereiro de 2025, no Teatro-D-Jaraguá, Rua Martins Fontes, 71, Centro
Direção: Gonzaga Pedrosa
Duração: 75 minutos.
Classificação Indicativa: livre
Ingressos: de R$ 60,00 (promocional) a R$ 150,00 (inteira)