Fascínio travesti: estética, ontologia e política na peça BR-Trans

Fascínio travesti: estética, ontologia e política na peça BR-Trans

A travesti habita o lugar entre o escândalo e o fascínio. O fio que separa esses sentimentos é tênue. É o mesmo que separando, ao mesmo tempo, une medo e desejo. Ficar no lado quem se escandaliza, mesmo que em silêncio, é mais fácil do que confessar o fascínio que a imagem e a presença de uma travesti provoca em nossos sentidos. O consenso pede que nos escandalizemos, que fiquemos estarrecidos, ou, pelo menos, que neguemos em silêncio a vida travestida, negação que permite justamente a invisibilidade das travestis e da questão altamente filosófica que sua existência e seu aparecer nos propõe.

Assim como toda obra de arte contemporânea nos obriga a pensar no conceito de arte como questionamento do ser da arte (e das coisas), a vida travesti, uma vida que não esconde seu invento (pois toda outra forma de vida esconde seu invento) nos obriga a pensar no conceito de invenção de si, de criação da subjetividade.

A peça de teatro BR-Trans, dirigida por Jezebel De Carli, com a impressionante atuação do ator Silvero Pereira, fala de muitas coisas importantes. Talvez não seja necessário dizer que é das melhores que assisti nos últimos tempos, no entanto, todos sabemos que o ponto ótimo de uma peça de teatro não é fácil de atingir e BR-Trans chegou a essa realização. A questão da transidentidade é ali afirmada com intenções políticas e éticas a partir de uma linguagem altamente crítica na qual o fator estética é questionada já ao nível da linguagem. O trabalho de linguagem do ator – e de todos os que trabalham pela peça – nos convida ao pensamento enquanto nos sensibiliza. Vemos Silvero e vemos Gisele – com quem Silvero inventa a outra de si – e todos os seus personagens e somos levados a perceber a condição da vida travesti como a irrupção de uma verdade que nos concerne a todos. Em relação à qual nos posicionamos primeiro como meros espectadores para sermos conquistados nas nossas mais profundas reflexões.

Proponho que olhemos para a questão da “vida travesti”, em um sentido amplo, de modo filosófico, pois a filosofia sempre melhora o nosso olhar. É isso o que a peça BR-Trans alcança enquanto é um ensaio crítico que denuncia a matança das travestis em um país como o Brasil, e a condição da matabilidade da qual todas as travestis estão ameaçadas. BR-Trans também é um ensaio crítico da questão gênero, que nos pergunta sobre o que significa “ser”.

 

Biodesign e direito à montagem: a questão da generificação

BR-Trans nos faz pensar em como somos o efeito da máquina produtora de gênero? Ser “generificado” significa ter sido construído à base de um ideal, em termos bem concretos, de um “design” (desde o “Eidos” platônico, a ideia é uma imagem que dá forma à existência da matéria). Podemos falar de um biodesign, analogamente ao que desde Foucault se chama de biopoder. Somos efeito de um biologia e de uma genética que sempre foi mais ou menos manipulada – sempre houve uma produção da natureza pela cultura, do corpo pela linguagem, da biologia pela ideologia – e hoje em dia somos ainda mais desenhados – efeito do design – quando pensamos no advento da eugenia liberal que usa as tecnologias na manipulação da vida do outro. Se fomos desenhados pelos outros, o que a questão travesti vem nos dizer, refere-se ao fato de que podemos devolver nossa invenção a nós mesmas, podemos nos desenhar a nós mesmas. Mas o que muda de fato quando pensamos que no pano de fundo geral, há sempre uma grande manipulação do corpo? Meu corpo sou eu e eu preciso deter o direito sobre o que sou, quanto ao que sou. O que o gesto travesti vem nos mostrar é o direito à montagem. Fica claro, pelo gesto travesti, que corpo e gênero são co-produzidos. A travesti é a única verdade do gênero, a Vênus de Botticelli finalmente desnuda.

Em BR-Trans, Silvero Pereira se monta e se desmonta, assim nos faz ver a pessoa por trás da pessoa, a pessoa diante da pessoa. O processo de vir a ser é exposto para que seja compreendido. A aparição fascinante de Gisele, seu desnudamento, o vestir e o desvestir, o tapar e o destapar do corpo, não visa a nos “confundir”, antes vem a nos esclarecer. Algo se torna visível, algo é posto à luz, uma existência justaposta e sobreposta, uma existência que não vem ocultar outra, mas vem à tona em sua condição de um e de duplo: corpo e imagem. Então, finalmente, nosso corpo e nossa imagem, esses dois níveis de nossa existência que estão separados pelo pensamento dualista – que inventou corpo e alma e inventou também a ideia de separar corpo e alma, assim como separa corpo e gênero – são novamente relacionados na figura da travesti, sem que o arranjo que os reúne precise mentir que são o mesmo, que entre corpo e linguagem não existe um hiato, que tudo se rende a uma unidade,a uma identidade. Que entre nudez e roupa, entre pele e entranhas, entre ser e parecer, não existe uma criação mútua. Somos um, sendo e deixando de ser, deixando de ser para ser outro, sendo para não ser, não sendo para não aparecer, aparecendo para ser. O direito à montagem é o direito a aparecer. Um direito político que é, ao mesmo tempo, sem ser o mesmo, um direito ontológico, o direito a ser.

Consenso estético

Uma questão que a vida travesti nos coloca é a questão do consenso estético. Todos sabem que sair do consenso é sempre socialmente perigoso. O consenso é o acordo prévio de que não negaremos o acordo prévio, o contrato estabelecido antes mesmo de termos nascido, ao qual todos temos que aderir. Em relação ao qual não somos autorizados a perguntar “por quê?”. É que aderir ao consenso é compulsório, fomos obrigados no mais íntimo da relação entre o ser e a linguagem.

O consenso não é evidentemente algo que se estabeleça apenas em termos éticos e políticos. Podemos falar também de um consenso estético, aquele consenso que se estabelece em torno da sexualidade, pois não basta ter um sexo definido nos termos binários da hererossexualidade compulsória e hegemônica, ela mesma imperativa e altamente autoritária, é preciso também parecer heterossexual. Hoje em dia quanto falamos nos termos de gênero “trans” e gênero “cis” estamos falando de marcações estéticas que nos informam algo sobre nossa sexualidade. Podemos até desconfiar esteticamente, mas é o nível estético da sexualidade, o nível da superfície que nos informa e que “vale” dentro dos jogos de poder em torno da sexualidade. Daí a importância que damos ao parecer.

A tradição oculta os motivos que levam à criação de padrões estéticos que sustentam sistemas éticos e políticos. Sabemos que toda saída dos acordos prévios, dos padrões, dos hábitos tradicionais, requer justificação. Quem sai dos padrões estéticos pelo discurso – dizendo por exemplo que admira a travestilidade – precisa se justificar, quem sai pela prática – travestindo-se – precisa mais ainda. Pensemos nisso, para seguir adiante.

 

Transidentidade: uma mulher nunca é uma mulher justamente porque se torna uma mulher

O feminismo é, em sua base, a politização da condição do “ser mulher”. Mulher é a identidade criada por uma tradição. O gênero feminino foi construído por inevitáveis jogos de poder, tanto de linguagem quanto práticos, no contexto da ideologia patriarcal. Patriarcado, a propósito, é a construção epistemológica, lógica, moral e política dos gêneros e dos sexos. É também uma construção estética.

Nesse contexto, perguntar o que pode significar “ser mulher” é ainda uma questão, mas essa pergunta só terá sentido para aquelas pessoas que pensam a partir do paradigma da identidade. Identidade, por sua vez, é uma categoria usada para marcar um lugar, marcando o outro ou marcando a si mesmo. Dependendo do contexto de politização da identidade, a identidade serve ou de-serve, ela pode emancipar ou oprimir.

Tendo em vista as desconstruções históricas que nos libertam do peso de “ser mulher” enquanto gênero que obedece a uma performatividade na base da “opressão para ser”, penso que hoje em dia é bem mais interessante entender o que significa ser “travesti”. Isso nos coloca no paradigma da transidentidade. Ainda que possamos falar em uma inter-identidade entre mulheres e travestis. A questão filosófica que está em jogo concerne, sem dúvida, à identidade e à não-identidade, mas enquanto, por meio dela se chega ao tema da transidentidade. A transidentidade não é somente a identidade de quem é trans, ela é uma superação da dicotomia “identidade X não-identidade”.

A questão da identidade de quem é trans está dada desde o surgimento da travestilidade que veio a mostrar a dialética entre corpo e roupa. Entre nudez e vestimenta. Entre ser e aparecer. A travesti não é uma mulher no sentido habitual, ela é ao mesmo tempo uma desconstrução da “mulher natural” e a reconstrução da mulher artificial. A dialética entre a mulher e a travesti é inevitável. O que se chama de mulher, para ser compreendido, precisa recorrer ao significado da travesti. Mas como a travesti é a desmontagem da “natureza” como ideologia, elas nos faz saber que toda mulher vista desde uma natureza, não é outra coisa, do que uma pessoa na qual se escondeu a montagem desde o ponto de vista ideológico – diga-se novamente – da natureza. Uma mulher é, portanto, uma montagem que finge ser natural. Um homem também.

Ainda que a travesti se diga mulher e que o artigo feminino “a” seja o seu próprio, o que ela apropria para usar na montagem de si, a travesti é a configuração da transidentidade que mostra à mulher que uma mulher também não é uma mulher. Que a identidade de gênero é sempre inventada. No fundo, toda identidade oculta sua transidentidade. Isso quer dizer que, se quisermos falar em termos de “verdade”, a transidentidade é mais verdadeira que a identidade, pois somente ela, por sua auto-invenção está livre da mentira de parecer verdade.

 

Uma profanação

A transidentidade é a dialética negativa da identidade. Sou para deixar de ser. Não sou para poder ser.

Eu sou travesti quando me afirmo como mulher na luta feminista que me parece política e moralmente melhor do que a hegemonia masculinista, machista e patriarcal. Afirmo isso para escapar da armadilha biopolítica que está lançada em todos os contextos onde a ideia de uma “natureza” não é combatida.

Fora disso, reivindico, contra a identidade, o direito à montagem.

A luta por justiça não pode ser negligenciada, por isso, eu me afirmo politicamente como feminista, mas não quero que o meu feminismo se torne uma nova ontologia, pois a própria ideia de ontologia é masculinista e, portanto, falsa.

Profanar a ontologia, profanar a falsidade, brincar com ela – com a cosmética e a estética – é a prática política que falta contra todo autoritarismo teórico ou prático que possa a vir atrapalhar a nossa luta.

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