Faltam cinco minutos para a meia-noite: A ascensão da extrema direita e a democracia no século 21

Faltam cinco minutos para a meia-noite: A ascensão da extrema direita e a democracia no século 21
arte: Fernando Saraiva

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O ressurgimento disseminado e organizado da extrema direita nas duas primeiras décadas do século 21 é um fenômeno político e social que vem desafiando estudiosos, políticos e a todos os integrantes do campo democrático. É inequívoco o avanço desse segmento nos espaços de poder em boa parte do mundo ocidental, mas não só. Com práticas e discursos que por algum tempo nem sequer eram levados a sério porque soavam absurdos, o fato é que essa extrema direita preconceituosa, excludente, de índole fortemente autoritária já abriu a porta das casas, adentrou e se instalou ante o olhar incrédulo de todos aqueles formados na tradição iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade. Faltam cinco minutos para a meia-noite. Não é mais possível ignorar essa extrema direita nada amadora. Longe de reviver como farsa, sua presença real e abrangente exige reflexão acerca das causas que engendraram esse movimento e reação dos partidários da democracia.

Chamamos extrema direita o movimento que, no ambiente capitalista, produz, ainda no século 20, o fascismo, primeiramente na Itália na década de 1920 e, em seguida, o nazismo, este na Alemanha da década de 1930. Os horrores protagonizados pelos integrantes desse espectro do tabuleiro político tanto, ao darem causa a uma guerra de proporções planetárias, quanto, ao adotarem valores e práticas monstruosos, de feições fortemente autoritárias, mistificadoras e desumanas no curso da Segunda Grande Guerra, afetaram sobremaneira seus vitoriosos opositores e até muitos de seus apoiadores, uma vez confrontados com os fatos revelados sobre o período.

Daí que os primeiros trinta anos que sucederam ao término da Segunda Grande Guerra Mundial – acontecimento que no Ocidente pode ser caracterizado como aquele que opôs o ideário da extrema direita ao ideário democrático com derrota dos extremistas – transcorreram sob a égide de iniciativas de consolidação, alargamento e aperfeiçoamento dos valores da democracia, assim como o inventário, análise e exposição das práticas fascista e nazista que, de tão negativamente impactantes, resultaram no quase banimento da extrema direita do ambiente das disputas político-eleitorais desses decênios.

Não que esse período, denominado Golden Age, tenha sido exatamente pacífico. Longe disso. Mas os conflitos, vários deles sangrentos e longos, a exemplo da Guerra do Vietnã, seguiram particularizados e regionalizados, não se alastrando para envolver uma multiplicidade de nações. Nós mesmo, no Brasil, vivemos o suicídio de um presidente e o golpe civil-militar de 1964, o que demonstra a turbulência política reinante no período, em boa parte tributária das disputas geopolíticas no curso da Guerra Fria. O pós-guerra, de todo modo, foi um período de crescimento econômico global e de expansão de direitos. Direitos trabalhistas, direitos fundamentais. A cidadania ganhou prestígio, e a sensação era de que se atingira um círculo virtuoso para a fruição da vida.

Nos anos 1970, no entanto, o panorama econômico começa a mudar e os tempos de bonança perdem o viço. Os anos 1970 marcam a primeira grande reengenharia na organização do trabalho desde o fordismo. São os tempos do chamado toyotismo, movimento que altera o modelo de produção para estoque e se instala a produção por demanda (on demand), a fim de reduzir os custos operacionais dos negócios. Na prática, esse novo formato produtivo, que conquistou grande parte do mercado, significou a redução de postos de trabalho e, consequentemente, dada a disponibilidade de mão-de-obra ociosa daí decorrente, a paulatina redução de remunerações e de direitos dos trabalhadores.

A década antecedente (1960), vale registrar, notabilizou-se por movimentos efervescentes de contestação cultural, liberdade sexual e alargamento democrático. Foram os tempos dos grandes festivais musicais, do movimento hippie, da ebulição do movimento negro nos EUA e da conquista da lei dos direitos civis, além das marchas estudantis de maio de 1968 na França, entre outras tantas manifestações libertárias mundo afora, acontecimentos todos que, de vários modos, incomodaram os espíritos mais conservadores. Essa conjugação de fatores de tensionamento econômico, cultural e político parece ter dado impulso a alguns tipos de reações, entre as quais o ressurgimento de atores políticos de índole fortemente conservadora, nacionalista, populista de direita, enfim, de agremiações de extrema direita.

É assim que, ainda na década de 1970, agremiações de extrema direita que se firmariam no tempo aparecem no cenário político-partidário europeu: a Frente Nacional, de Jean-Marie Le Pen, na França (1972) e o Vlaas Belang na Bélgica (1978). Na Noruega o Partido do Progresso aparece em 1973. O Partido dos Democratas Suecos é de 1988; assim como o Fidesz- União Cívica Húngara, de Viktor Orban, na Hungria. E na Itália o Lega Nord é fundado em 1991. Ainda em 1956 surge o Partido da Liberdade da Áustria – hoje o maior partido do país – posição alcançada nas eleições de 2024 para o Parlamento Europeu –, e, em 1969, na Turquia, o Partido de Ação Nacionalista é criado. Mas o AKP, Partido da Justiça e Desenvolvimento, de Tayyip Erdogan, surge três décadas depois, em 2001, e é a partir dos anos 2000 que se verifica um ressurgimento alargado de agremiações extremistas.

Depois do movimento embrionário de retomada do ideário fascista, ao qual pouco se atentou dada a inexpressividade inicial do segmento, vê-se a partir dos 2000 o crescimento acelerado desse flanco político, com forte impacto na década de 2010, em possível reflexo da crise econômica de 2008 (essa é uma avaliação relativamente corrente entre os estudiosos do tema). Daí que ingressam no cenário político-partidário europeu com progressiva expressão popular o PIS – Lei e Justiça (2001, Polônia), o Fratelli d’Ítália da hoje premiê italiana Giorgia Melloni (2012, Itália), o AFD – Alternativa para a Alemanha (2013, Alemanha), o Vox (2013, Espanha) e o Chega (2019, Portugal). São características comuns a todos esses partidos políticos o nacionalismo, o conservadorismo, o populismo de direita, o euroceticismo, o antiglobalismo, o perfil anti-imigração, com derivações islamofóbicas, antiaborto, anticorrupção, antifeminista, radicalmente cristã, entre outras.

O cenário aqui apresentado do espraiamento da extrema direita pelo continente europeu não é realidade isolada. A inflexão republicana nos EUA com Donald Trump e as expressões America Fisrt e Make America Great Again – resgatadas do aviador norte-americano Lindenberg, que na década de 1920 era entusiasta do ideário fascista de Benito Mussolini – a ascensão de Jair Bolsonaro no Brasil e na sequência de Javier Milei na Argentina são elementos suficientes para se entender que o fenômeno de ressurgimento da extrema direita tem dimensão mundial e merece redobrada atenção.

O ano de 2024 dispara um alarme no relógio do Juízo Final. As eleições do Parlamento Europeu com avanço da representação da extrema direita, a reunião da ultradireita sul-americana em Santa Catarina e o encontro da ultradireita mundial em Madrid, organizada pelo espanhol Vox, são acontecimentos que evidenciam, todos, não apenas o crescimento, mas a organização do segmento, que não esconde o tamanho de suas pretensões. Agregue-se a tudo isso a confirmação da candidatura de Donald Trump nos EUA deste ano e agora, neste agosto de 2024, as manifestações xenofóbicas sem precedentes de extremistas na Inglaterra, resultado de fake news que correram o país atribuindo mentirosamente a morte de três crianças a um estrangeiro, todo esse conjunto autoriza que se enxergue um cenário preocupante.

Daí que hoje é cada vez mais importante conhecer os valores e os mecanismos de atuação da extrema direita para entender e tentar neutralizar essa escalada do segmento na aceitação social. Lembrar para não repetir é um caminho que nunca deve ser negligenciado. Não obstante, talvez seja insuficiente. Os horrores da Segunda Guerra estão distantes no tempo. As novas gerações possivelmente não se sintam verdadeiramente afetadas por eles, mais preocupadas com seus próprios dilemas e com o futuro que se lhes mostra incerto, senão ameaçador.

Defender a democracia nesse cenário, e essa é a compreensão que aqui sustentamos, exige a retomada das grandes utopias democráticas de liberdade, igualdade e fraternidade, a partir de projetos participativos e inclusivos de futuro. Regatar o valor e a confiança na construção coletiva de sociedade é tarefa imperiosa para todos que desejam salvar a democracia. A democracia que emergiu do pós-guerra tem identidade significativamente definida e forte acento na ideia de igualdade. Forjou-se pela construção de colchão social sem precedente que, contudo, vem sendo fortemente desgastado desde que o receituário neoliberal tomou conta do cenário econômico, político e social.

Recuperar aquela identidade democrática de cariz fortemente inclusivo e, via de consequência, resgatar a credibilidade no seu potencial de garantir o futuro coletivo é o grande desafio desta geração. Se não é possível considerar surpresa o ressurgimento de agremiações e atores políticos de extrema direita nas primeiras duas décadas do século 21, até porque o segmento nunca deixou de existir, pelo menos desde os anos 1970 seu gradual reaparecimento na cena política formal era fenômeno visível. E a perplexidade, a incredulidade e uma certa paralisia tomaram conta do campo democrático ante o crescimento expressivo do extremismo de direita na última década.

Mas, se o campo político esteve, e talvez ainda em certa medida esteja, de fato despreparado para enfrentar a situação, a academia vem fornecendo elementos valiosos para a identificação, caracterização e compreensão do fenômeno, o que constitui elemento essencial para a formulação de estratégias voltadas à superação dessa anomalia e afirmação dos valores democráticos.

Até os anos 1990 os estudos sobre o ascenso da extrema direita tinham por objeto os acontecimentos sediados entre 1920 e 1945 ou o comportamento de grupos determinados, como os skinheads, carecas do rio, assim como outros grupamentos marginais à cena político-partidária. Na primeira década do século 21 o panorama começa muito timidamente a se alterar, tanto no ambiente social quanto no acadêmico. A leitura de artigo de 2008 publicado na Revista Aurora, da Unesp, intitulado “Ideologia e intolerância: a extrema direita latino-americana e a atuação no Brasil dos herdeiros do Eixo”, traz elementos bem interessantes e reveladores de uma movimentação diferente. Ao observar que textos jornalísticos e produções acadêmicas destacavam, no âmbito internacional, manifestações de movimentos e partidos políticos de extrema direita, o estudo assinala a existência, já àquela altura no Brasil, de tentativas de rearticulação dos integralistas contemporâneos, o que fica evidenciado pela realização de dois Congressos Nacionais organizados pelos núcleos de então do grupamento: “(…) em 2004 foi realizado o I Congresso Integralista para o século XXI e, em 2006, o II Congresso Nacional Integralista, ambos os eventos (…) na cidade de São Paulo.”. Em análise sobre essa “nova direita” emergente no mundo e no Brasil, vale reproduzir o trecho no qual consta que: “Assiste-se à ascensão de uma extrema direita atípica, que substitui o culto do Estado pelo ultraliberalismo, o corporativismo pelo mercado e até, às vezes, o âmbito do Estado-nação por particularismos regionais ou simplesmente locais (…). Isso significa que as formações de uma direita dura que avançam na Europa são, em primeiro lugar, aquelas que, tendo assumido uma parte da herança ideológica dos movimentos autoritários, modernizam seu discurso, assim como sua estrutura organizacional. Defendem uma espécie de capitalismo ultraliberal protecionista, aceitam formalmente a democracia parlamentar e o pluralismo, reivindicando uma modernização, e não mais uma ruptura, do quadro institucional. Todas essas formações compartilham uma mesma reivindicação de identidade: a preferência nacional, isto é, a atribuição de direitos políticos, econômicos e sociais somente aos nacionais de origem”.

Dedicando, por fim, item específico para abordar a questão da propaganda política, novas tecnologias e ideologia, chama atenção a seguinte constatação anotada no texto: “No final da década de 1980 os movimentos e partidos políticos centravam sua propaganda nos meios impressos, radiofônicos e televisivos. A comunicação e a propaganda, porém, foram potencializados pela rede mundial de computadores, abrindo novas possibilidades de comunicação”. A política está no espaço da comunicação, como afirma Castells (2000), e as antigas e novas gerações de integralistas na atualidade suplantam as possibilidades da imprensa tradicional e estão também envolvidas com novas formas de socialização ideológica através de novos recursos de comunicação, juntamente com jornais e impressos informativos.

A FIB destaca-se realizando de forma programada reuniões entre seus ativistas através de chats (…). O Núcleo integralista do Rio de Janeiro na questão da comunicação também inova ao utilizar serviços de mensagens para celulares através de “torpedos” (…).”. Muito interessante constatar que já antes de 2008 (o artigo é de 2008 e reflete realidade pretérita e no máximo contemporânea) a extrema direita usava regularmente as redes sociais para sua comunicação. Não deveria surpreender que cinco, dez anos depois tenha desenvolvido como ninguém o manejo desse veículo de persuasão.

Mas é a partir da década de 2010 que o tema ganha impulso e se assiste ao incremento exponencial na publicação de estudos de identificação e análise abordando o ressurgimento organizado, o crescimento popular e a formalização política de representações de índole fascista. Várias são as agremiações partidárias assumidamente integrantes da ultradireita oficializadas em diferentes países nesse período. Lideranças carismáticas de perfil fascista em siglas de aluguel – a exemplo de Jair Bolsonaro ou mesmo em siglas tradicionais, como é o caso de Donald Trump na representação do Partido Republicano nos EUA – compõem em adição um quadro impactante de alteração da correlação de forças políticas que, àquela altura, visivelmente se disseminava na Europa e mesmo na América.

Há quem inclua nessa equação os movimentos da Primavera Árabe que eclodiram na mesma década. Sem afirmar ou infirmar a validade dessa chave de leitura sobre os levantes assim identificados, fica apenas o registro de que o caráter aparentemente emancipatório dos levantes não se firmou no tempo, e governos autoritários tomaram o lugar das revoltas, frustrando as expectativas de que se alcançasse algum alargamento democrático nos países envolvidos.

Ainda em 2015, no artigo científico “Conservadorismo e extrema direita na Europa e no Brasil”, Michael Löwy aborda expressamente o que chamou de “espetacular ascenso político e eleitoral de forças de extrema direita, racistas, xenófobas, fascistas ou semifascistas”. Ao expor a diversidade dessa nova extrema direita europeia e esboçar uma tipologia dos partidos políticos da referida vertente, o eminente sociólogo vê no processo de globalização neoliberal “que produz e reproduz, em escala europeia e planetária, os identity panics (pânicos de identidade)”, o primeiro elemento de explicação do sucesso crescente da extrema direita. Observando que “a esquerda como um todo, com apenas algumas exceções, tem severamente subestimado este perigo. Não viu a ‘onda marrom’ vindo e, portanto, não viu necessidade de tomar a iniciativa de uma mobilização antifascista”, o estudioso anota que “nenhum grupo social é imune à praga marrom” e conclui alertando que “não há nenhuma receita mágica para combater a extrema direita. Devemos nos inspirar (…) nas tradições antifascistas do passado, mas também devemos saber como inovar, a fim de responder às novas formas desse fenômeno”.

A força dos pânicos de identidade referidos por Löwy parece de fato ter atingido potência capaz de produzir monstros. Afinal, Donald Trump é eleito presidente dos EUA em 2016 e Jair Bolsonaro presidente do Brasil em 2017 com discursos que exploram e muito esse recurso, além de ressuscitar elementos da tradição fascista clássica, a exemplo do nacionalismo conservador. Esses acontecimentos impactaram o ambiente político, sem dúvida, e voltaram com rigor o olhar da academia para os riscos à democracia envolvidos no fenômeno. Daí, em 2018 estudiosos de diferentes instituições de ponta do ensino universitário norte-americano lançaram pelo menos duas obras de referência que dão a dimensão de como a própria academia recebeu o resultado das eleições de 2016 nos EUA. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de ciência política em Harvard, publicam Como as democracias morrem, enquanto Jason Stanley, professor de filosofia da Universidade de Yale, publica Como funciona o fascismo.

Como as democracias morrem é obra centrada inteiramente na realidade estadunidense, mas vai além. Constitui ensaio voltado a entender e explicar o significado da escolha de Donald Trump para o exercício do comando político do país. Deixando expressa a compreensão de que essa decisão coletiva foi um golpe de índole autoritária e alto potencial ofensivo desferido contra a democracia, seus autores veem os partidos políticos como atores centrais e guardiães da democracia. E alicerçados nessa centralidade apresentam quatro indicadores do comportamento autoritário que funcionam como verdadeiros alertas de que a democracia está em risco.

O primeiro indicador corresponde à rejeição das regras democráticas do jogo ou o compromisso débil com elas. Esse indicador está presente quando os candidatos, partidos, atores políticos “tentam minar a legitimidade das eleições, recusando-se, por exemplo, a aceitar os resultados”, ou “buscam lançar mão de meios extraconstitucionais golpes militares, insurreições violentas ou protestos de massa”. O segundo indicador está na negação de legitimidade dos oponentes políticos. Aqui os atores políticos autoritários “descrevem os rivais como subversivos”, “afirmam que os rivais constituem uma ameaça”, “descrevem os rivais como criminosos”, dentre outros elementos de desqualificação dos oponentes. O terceiro é a tolerância ou o encorajamento à violência. Este indicador se faz presente sempre que o ator político autoritário mantém laços com milícias armadas, grupos paramilitares e grupos envolvidos em praticar violência, causando medo. Também integra este tópico o patrocínio ou estímulo tácito à violência de seus apoiadores, além dos elogios a violências políticas do passado ou verificadas em outros lugares do mundo. E por fim, o quarto indicador é a propensão a restringir os direitos civis dos oponentes, aí incluída a mídia. É notório que uma dada cruzada contra direitos civis relativos a raça, gênero, credo e mesmo liberdade ideológica compõe o repertório do pânico moral constitutivo do discurso da extrema direita, de ontem e de hoje. Voz de muitos movimentos emancipatórios de alargamento dos direitos civis, a mídia profissional acaba alvo dos segmentos autoritários, seja por iniciativas voltadas a minar a credibilidade seja por estratégias de enxugamento dos recursos que a sustentam (com migração do espaço de interlocução pública para o ambiente digital, por exemplo).

Nitidamente preocupados com a preservação da democracia, prelecionam Levitsky e Ziblatt que “sempre que extremistas emergem como sérios competidores eleitorais, os partidos predominantes devem forjar uma frente única para derrotá-los”. Foi a receita adotada pelos partidos da esquerda francesa nas eleições parlamentares convocadas por Emanuel Macron neste junho de 2024. Como funciona o fascismo, a seu tempo, é obra que identifica nos valores e práticas caracterizadores do fascismo muitos dos valores e práticas trazidos para a política por Trump e por outros atores políticos que conquistaram projeção ao redor do mundo nos últimos tempos, a exemplo de Orban, Erdogan, Marine Le Pen etc. Seu “interesse (…) está na política fascista, sobretudo nas táticas fascistas como mecanismo para alcançar poder”.

Explica Stanley logo na introdução que “a política fascista inclui muitas estratégias diferentes: o passado mítico, propaganda, anti-intelectualismo, irrealidade, hierarquia, vitimização, lei e ordem, ansiedade sexual, apelos à noção de pátria e desarticulação da união e do bem-estar público. (…) O sintoma mais marcante da política fascista é a divisão. Destina-se a dividir uma população entre “nós” e “eles”.

A simples leitura desse rol de estratégias nos dá a certeza de que a política fascista de fato vive movimento sem paralelo de ressurgimento desde os anos 1920. Se nos EUA o autor identifica Donald Trump como executor inequívoco desse tipo de política, nós aqui no Brasil experimentamos situação bastante semelhante com Jair Bolsonaro e seus seguidores.

O passado está na gênese da política fascista. E não um passado qualquer, mas um passado glorioso, de conquista. Bauman fala em retrotopia. Esse passado mítico para os fascistas é necessariamente patriarcal. O meio empregado pela política fascista para a defesa dessa hierarquia patriarcal é a geração de pânico ante qualquer ameaça vislumbrada. Entendida essa dimensão do fascismo, não é de se estranhar a ira dos fascistas ante os movimentos de liberação dos costumes ou as lutas por igualdade de gênero ou mesmo preservação ambiental. Afinal, o conquistador não está interessado em preservar o meio ambiente, mas em se apossar dele. A invasão estimulada de terras indígenas pelo garimpo no governo Bolsonaro é o retrato do tipo de passado cultuado na política fascista.

A propaganda fascista não tem intenção democrática, nem compromisso com a verdade. “Divulgar falsas acusações de corrupção enquanto se envolve em práticas corruptas é típico da política fascista, e as campanhas anticorrupção estão frequentemente no centro dos movimentos fascistas”. E “corrupção, para o político fascista, consiste na corrupção da pureza, e não da lei”, pontua Stanley. Daí a corrupção é sempre do outro, daquele que não abraça, por exemplo a hierarquia familiar patriarcal.

O anti-intelectualismo é a marca do fascismo. Os fascistas rejeitam os ideais iluministas de liberdade, igualdade ou fraternidade. Rejeitam o racionalismo. A educação para eles tem a função de glorificar o passado mítico, sem espaço para o pensamento crítico. O papel das disciplinas acadêmicas é reforçar as normas hierárquicas e a tradição nacional ou mesmo local. “Um objetivo central da política fascista é que o objetivo da oratória não deve ser convencer o intelecto, mas influenciar a vontade. A política fascista, em razão desse anti-intelectualismo, degrada os espaços de informação, desvirtuando a realidade.

A irrealidade é elemento constitutivo da política fascista. Afinal, ela substitui o debate fundamentado pelo medo ou a raiva. Mentiras óbvias e repetidas fazem parte do processo de comunicação fascista. Por isso as teorias conspiratórias são muito presentes no fascismo. Desacreditar a mídia liberal também integra os propósitos da política fascista. A política fascista busca destruir a relação de respeito entre os cidadãos e tornar seu líder o único interlocutor confiável da “verdade”.

Na concepção fascista, a hierarquia é a relação natural entre os seres, hierarquia é o que de fato existe na natureza, o que infirma qualquer obrigação ou pretensão de considerar as pessoas iguais. A hierarquia, ademais, é o modo de preservar o poder e de deslegitimar a democracia liberal. “A política fascista se alimenta da sensação de vitimização e ressentimento causada pela perda do status hierárquico”. Caracteriza a política fascista a vitimização como forma de encobrir a desigualdade estrutural, subvertendo e deturpando todo o esforço de superação das desigualdades. “A retórica fascista da lei e ordem é explicitamente destinada a dividir os cidadãos em duas classes: aqueles que fazem parte da nação e aqueles que, por variados motivos, inerentemente não fazem”.

A ansiedade sexual está diretamente vinculada à gênese familiar patriarcal do fascismo. Ela consiste em gerar o pânico sobre os desvios dessa família patriarcal, enxergando ameaça em qualquer conduta que envolva, por exemplo, mistura racial ou relação diversas da heterossexual. O ethos patriarcal da política fascista, ademais, se alimenta do culto à masculinidade, à virilidade, à força como pulso inquestionável do comando social. Essas leituras ou análises da política fascista emergente no século 21 evidentemente são tributárias de importantes estudos precedentes acerca do fascismo e do nazismo do século XX. Hannah Arendt talvez seja o nome mais lembrado sempre que se discute essa questão. Mas trago nesta oportunidade, até em função da importância da comunicação nestes tempos de redes sociais, o trabalho impressionante de Victor Klemperer, filólogo alemão, judeu convertido ao protestantismo, autor de A linguagem do Terceiro Reich.

Klemperer, durante o período que vai de 1933 a 1945 estudou incansavelmente a linguagem nazifascista e fez da palavra, do discurso, da propaganda do Terceiro Reich sua chave de leitura para compreensão do fascismo-nazismo. Uma de suas primeiras observações foi a estratégia nazista de alteração do sentido ordinário das palavras. Diz Klemperer: “Poucas palavras foram cunhadas pelo Terceiro Reich, talvez nenhuma. A linguagem nazista usa empréstimos do estrangeiro e absorve muito do alemão pré-hitlerista. Mas altera o sentido das palavras e a frequência de seu uso. (…) Adapta a língua a seu sistema terrível e, com ela, conquista o meio de propaganda mais poderoso (…). Vou aqui apresentar apenas dois exemplos trazidos por Klemperer: o uso da palavra heroico e da palavra fanático.

A palavra “heroico” no período pré-nazista gozava de sentido humanista (o herói era um protetor, um salvador, um sábio). Na estética fascista a palavra está primeiramente vinculada à força física, ao serviço militar, a um programa pedagógico que não valoriza a formação intelectual, vista, aliás, com enorme desconfiança. O heroico é o combativo, o agressivo, o beligerante, não exatamente o protetor. Na língua alemã a palavra “fanático” não tem um sentido positivo, ao contrário. O termo fanático vem de fanun, que significa templo. Daí que o fanático é o sujeito em estado de êxtase religioso. É um termo vinculado ao irracionalismo, avesso ao racionalismo iluminista. Era uma palavra realmente mal-vista, que no Terceiro Reich, contudo, foi muito empregada como resultado de “uma feliz mescla de coragem e entrega apaixonada”, numa acepção altamente positiva, portanto.

Outra compreensão importante trazida por Klemperer é a desumanização embutida na “novilíngua” nazista. Característica inconteste da LTI é a mecanização da própria pessoa. “O orador não compara a si e seus fiéis a máquinas, mas identifica a si a e eles como as próprias máquinas. Impossível conceber forma de pensar mais desumanizada”. (Quando li isso logo pensei em expressões que usamos corriqueiramente hoje, sem pensar, a exemplo de “vou chamar o uber” ou “chegou o delivery”, numa substituição do trabalhador, da pessoa pelo serviço, em movimento de desumanização neoliberal de índole semelhante que talvez sirva de sinal de identificação de um processo de fascistização a que estamos sendo submetidos sem nos darmos conta).

Em 1946 Klemperer publicou A linguagem do Terceiro Reich, desvendando com mestria a estrutura manipuladora envolvida na linguagem da política fascista, uma estrutura que em suas próprias palavras traz “toda a falsidade de sentimentos (…), todo o pecado mortal de mentir conscientemente, transferindo questões da razão para a esfera dos sentimentos, de modo a deformá-las e obscurecê-las deliberadamente”. Trata-se de trabalho muito rico, desbravador de caminhos para a compreensão do enorme poder da linguagem sobre o coletivo a que se destina.

Conforme, nos últimos meses, lia as reflexões, constatações e ensinamentos de Klemperer, tanto no LTI como no maravilhoso Os diários de Victor Klemperer que também recomendo vivamente, muitas associações, muitas sinapses iam se montando, muita coisa que vivenciamos nos últimos anos iam se encaixando e revelando o quanto dessas estratégias fascistas estiveram e estão presentes no nosso cotidiano.

Lembrei das motociatas em plena pandemia – demonstração inequívoca da liderança masculina patriarcal; do imbrochável, mais recentemente acrescido do incomível – exemplo da exaltação da virilidade masculina; das quatro linhas da Constituição, frase repetida à exaustão e que aludia a uma ideia particular de lei e ordem; da exaltação ao “heroísmo” de Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador reconhecido dos tempos da ditadura militar e da exaltação da própria ditadura militar que de tão naturalizada levou um ministro do STF a se referir ao golpe de 1964 como movimento e ainda antes disso o jornal Folha de S.Paulo a falar em “ditabranda”. da valorização do elemento militar e da colonização do serviço público civil por servidores militares, tendo lembrado na sequência das escola cívico-militares, abraçadas em São Paulo pelo governador Tarcísio de Freitas e objeto de questionamento judicial nestes nossos dias; da “arminha” formada com a mão em meio a sorrisos debochados e esganiçados do ex-presidente e seus fiéis seguidores; da guerra às universidades, identificadas como lugar de maconheiro e comunista; da negação da ciência e da luta para obtenção de vacinas; do tratamento rude dedicado aos jornalistas e especialmente às jornalistas pelo até aqui inelegível ex-presidente; do uso turbinado das redes sociais para disseminação de fake news, expressão estrangeira que entrou pro nosso léxico. Por fim, lembrei da humilhação diária ao inimigo, do termo petralha e da própria palavra petista como sinônimo de imoralidade, de sujeira, de corrupção, em movimento de desumanização angustiante e aterrorizador, que transformou a ida a um restaurante em atividade de risco e que dividiu, talvez para sempre, muitas e muitas famílias no movimento de nós e eles.

Na semana passada ocorreram por todo o país os primeiros debates eleitorais na TV aberta. Em São Paulo, o candidato da extrema direita cumpriu todo o scritp apresentado por Klemperer e Stanley. Vestido de camisa preta, com porte de quase fisiculturista, linguagem chula e agressiva, Pablo Marçal, longa manus de Jair Bolsonaro na capital, usou da mentira, da ofensa, da desqualificação alheia para plantar os pânicos morais. Nesta semana, acompanho um tanto perplexa a movimentação do ex-ministro Nelson Jobim, relativizando a gravidades dos atos de 8 de janeiro de 2023, afirmando que eles não constituem propriamente atos atentatórios ao Estado Democrático.

Faltam cinco minutos para a meia-noite. O fascismo já entrou. Não se trata mais de fechar a porta. Primeiro temos que empurrá-lo para fora de casa. Para finalizar, invoco Levitisky e Ziblatt, mas agora na obra Como salvar a democracia. São suas palavras, as palavras da academia: “Precisamos não apenas de uma agenda de reformas democráticas, mas de um movimento capaz de mobilizar os cidadãos numa campanha permanente para despertar a imaginação e mudar os termos do debate público. (…) Precisamos evitar repetir o erro de nos afastarmos da vida pública por exaustão. A democracia continua à deriva. A história nos convoca novamente.”

Palestra proferida no 28º Congresso do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública-IBAP, em agosto de 2024, na cidade de João Pessoa, Paraíba.

Márcia Maria Barreta Fernandes Semer é doutora em Direito do Estado e Mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É advogada e procuradora do Estado de São Paulo aposentada.

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