Exortação à afasia

Exortação à afasia

 

“A palavra falada é irreversível, tal é a sua fatalidade”
Roland Barthes, O rumor da língua

Com texto e direção de Marcio Abreu, PROJETO bRASIL, da companhia brasileira de teatro, antes de se configurar em um espetáculo artístico, constitui mais propriamente um ato cultural organizado em torno de dezesseis discursos verbais e não verbais, de natureza performativa – cabe também chamá-los de “sensíveis” –, proferidos/apresentados aos espectadores. Discursos estes que, embora privem de certa autonomia temática e formal, não abrem mão de fazer parte de um mesmo eixo, que os motiva entre si estética e politicamente. No primeiro deles, que funciona como uma espécie de exórdio ou proêmio, o trio de atores e um cantor e instrumentista cantam canções reais ou inventadas enquanto transitam do palco às cadeiras da plateia oferecendo a quem chega e nelas se acomoda pequenas doses de cachaça passadas de mão em mão em ato solidário. Afinal, como nos lembra Luís da Câmara Cascudo, “a cachaça possui sinonímia infindável e seus bebedores guardam ritos especiais para degustá-la, dependendo de ocasião e pessoa, havendo fórmulas velhas para convidar, beber, repetir, agradecer”. O momento é de comunhão, entretanto, nunca é demais lembrar que a cachaça – a mais brasileira das bebidas no âmbito popular – também serviu de moeda aquisitiva de escravos africanos durante a “civilização da cana de açúcar” (a expressão é de Gilberto Freyre), de cujas mazelas, parece, não conseguimos ainda nos desvencilhar. Mas por que se preocupar com isso justamente em uma experiência teatral que carrega em seu título o auspicioso nome do país ao qual pertencemos? Fiquemos com a música, que é agradável – samba, prontidão e outras bossas –; com os atores, cordiais, acolhedores; e com o suco da cana, que é barato, inebriante. Eis aí um autêntico projeto brasileiro.

A partir de então, inicia-se propriamente o desenvolvimento (de acordo com os preceitos retóricos clássicos, a segunda parte da estrutura discursiva) do ato-espetáculo, com os discursos de número dois e três. O primeiro deles é “um discurso para depois do fim”, em que Rodrigo Bolzan, fazendo uso de sua bela voz, diz para desdizer (“não há uma voz dizendo nada para vocês aqui”). Vale notar que o discurso foi criado pelo próprio intérprete em sala de ensaio. Segue-se, então, o discurso no qual Giovana Soar desdiz o tempo todo, entre claudicante e trôpega, uma única frase – “Eu gostaria de agradecer” – com a qual, aliás, Rodrigo iniciara, havia pouco, a sua fala. “O fim está no começo e, no entanto, continua-se”, parecem, beckettianamente, querer nos comunicar os atores.

Cena de PROJETO bRASIL (Foto: Maringas Maciel)
Os atores Rodrigo Bozan, Giovana Soar e Felipe Storino (Foto: Maringas Maciel)

O discurso seguinte evoca de modo muito especial o conceito de “politicidade sensível” desenvolvido por Jacques Ranciére. Ouvem-se as vozes em off de Rodrigo Bolzan e Nadja Naira (detentora também de um belo e expressivo registro vocal) produzirem em português a defesa que Christiane Taubira, ex-ministra da Justiça da França, fez da proposta de lei para o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção. Logo, um longo beijo entre ambos os intérpretes irrompe no palco e, em paralelo ao discurso igualmente longo da ministra, ouvimos a belíssima canção Dimokransa, da cantora cabo-verdiana nascida em Cuba Mayra Andrade. O beijo inicial irradia-se em direção à plateia, e os dois atores caminham entre os espectadores, promovendo com eles uma espécie de beijaço. À cientificidade da razão se alia a fenomenologia da percepção, levando o espectador a ouvir palavras proferidas em ambiente político e a ampliá-las a limites sensoriais bem mais abertos, que se confundem com a prosa do mundo, na perspectiva de Maurice Merleau-Ponty. Não à toa, a cena termina com a proposição da percepção do Outro e com o convite ao diálogo – brutalmente interrompidos pelo discurso seguinte, traduzido por uma cena de violência sexual atávica, imemorial, da qual algoz e vítima saem lambuzados de tinta preta.

O ator Rodrigo Bolzan em cena (Foto: Nana Moraes)
O ator Rodrigo Bolzan em cena (Foto: Nana Moraes)

O sexto discurso conta com a presença em cena do cantor e instrumentista Felipe Storino ladeado pelo trio de intérpretes. A canção apresentada (escrita coletivamente e musicada por ele) é pura desconstrução semântica – o que convida Rodrigo e Giovana a executarem uma coreografia titubeante de forte efeito plástico, sobretudo pelos movimentos descoordenados encarnados pelo primeiro. O mesmo titubeio passa para o discurso seguinte, mas migra dos músculos do corpo para a musculatura da voz. Bolzan – ator de admiráveis recursos técnicos e emocionais – inicia uma longa fala, fonologicamente desarticulada, que aos poucos vai fazendo sentido, “apesar de todas as contradições”. (Tanto este como o penúltimo discurso foram escritos por Marcio Abreu durante o processo de criação da peça). Segue uma espécie de remanso em toda a loucura apresentada até ali (o discurso n. 8), sucedido por uma cena (o discurso n. 9) em que dois corpos nus coreografam, de modo simples, mas com muita expressividade, a primeira parte do enigma-tríptico que a Esfinge propõe a Édipo. Quadrúpedes são os bichos, mas é também o homem, sob a forma de um bebê. (Somente sob a forma de um bebê?, perguntamo-nos nós).

Cena de PROJETO bRASIL (Foto: Nana Moraes)
Cena de PROJETO bRASIL (Foto: Nana Moraes)

O décimo discurso é similar ao quarto. Nele, Rodrigo Bolzan, fazendo uso de um microfone, reproduz em espanhol a conferência que o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica conferiu na ONU a respeito das desigualdades sociais e do consumo desenfreado no mundo globalizado. O público ouve a voz do ator, mas pode também acompanhar as legendas em português projetadas no fundo do palco, cuja exibição encerra a cena. Segue-se um momento de muita intensidade dramática, quando Giovana Soar, entre enlevada e patética, executa na linguagem corporal de libras a letra de Um índio, de Caetano Veloso – primeiramente em silêncio (quando ainda não sabemos que se trata da canção), depois ao som da própria gravação da música por Maria Bethânia. Uma nova canção desconjuntada é apresentada por Felipe Storino (trata-se do discurso n. 12, cujo processo de composição é idêntico à canção do discurso n. 6), seguida da dissonante interpretação a capella e em off de Rodrigo Bolzan para Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (discurso n. 13).

E eis que se chega à peroração do ato-espetáculo, composta pelos três discursos finais. À festa sombria e decaída, comemorada em tons negros, ao som das Bachianas brasileiras n. 5, de Heitor Villa-Lobos, sucedem o discurso de Giovana Soar proferido em meio à plateia (“Quem será o primeiro a dizer uma palavra?”) e o discurso de encerramento, ouvidos por todos, que, retomando o problema do fim (”Depois do futuro, o fim como começo”), faz a plateia mergulhar em silêncio e escuridão.

Nadja Naira e Rodrigo Bolzan em cena (Foto: Nana Moraes)
Nadja Naira e Rodrigo Bolzan em cena (Foto: Nana Moraes)

O texto e a dramaturgia de PROJETO bRASIL foram concebidos paralelamente à criação do ato-espetáculo e constituem uma estrutura aberta. Como aberta é a maneira pela qual esses artistas-criadores propõem um exercício crítico ao estado de coisas vigentes a que ainda podemos chamar de país. O nome do trabalho reúne uma dupla utopia, precipitada em desastre. “Projeto” é a palavra latina que implica a noção de “fazer ou realizar (algo) no futuro”, que deu origem, por sua vez, à forma francesa “projétil”, cujo sentido, aqui, é de uma ironia a toda prova. Chama-se projétil a “qualquer sólido pesado que se move no espaço, abandonado a si mesmo após haver recebido impulso”. Assim é que em seus dezesseis discursos, PROJETO bRASIL (forma agigantada pelos caracteres maiúsculos entre os quais se insinua, apequenada, a primeira letra do é da coisa) também pode ser lido na chave semântica de PROJÉTIL bRASIL, totem às avessas desta enorme massa sólida errante no espaço-tempo e entregue à própria sorte em que nos transformamos. Como errante é o próprio ato-espetáculo, desconstruído em suas dezesseis estações dispostas em paralelo ao modo do teatro medieval ou da literatura de cordel. Como errantes ainda são as palavras proferidas pelos atores e os corpos com os quais eles as energizam na cena, sejam elas balbucios, rumorejos, formas hesitantes ou assertivas. (Aqui vale registrar o imenso talento e a habilidade técnica com os quais o trio de atuadores e o cantor se lançam à empreitada).

Os inúmeros impasses que este ato cultural articula potencializam ao máximo sua envergadura política, assentada não sobre uma retórica vazia (pretensamente humanista, edificante…) e sim sobre sua vocação para constituir um experimento de linguagem, o experimentum linguae de que fala Giorgio Agamben em Meios sem fim: notas sobre a política. Lembrando que política é a esfera de “uma medialidade pura e sem fim como espaço do agir e do pensamento humano”, o filósofo italiano assevera: “Se conseguirem articular o lugar, os modos e o sentido dessa experiência do evento de linguagem como uso livre do comum e como esfera dos meios puros, as novas categorias do pensamento político – sejam elas comunidade inoperante, comparecimento, igualdade, fidelidade, intelectualidade de massa, povo por vir, singularidade qualquer – poderão dar expressão à matéria política que está diante de nós”.

Conduzido por Marcio Abreu com a ousadia de desejar ser uma medialidade/linguagem pura, PROJETO bRASIL é uma resposta para uma questão que não conhecemos ou a proposição de um discurso silencioso e, por isso mesmo, violento diante de um novo começo – para ficarmos no mesmo diapasão de Slavoj Zizek em O ano em que sonhamos perigosamente. “Estamos diante de algo grande” anuncia uma das últimas falas desta experiência performativa que faz da vulnerabilidade tão própria à arte teatral um modo político de saber dizer e se calar perante a politicidade de tudo.

PROJETO BRASIL
ONDE: Teatro Cacilda Becker (Rua Tito, 295 – Vila Romana)
QUANDO: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 11 de dezembro.
QUANTO: Entrada franca
INFO: (11) 3864-4513

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