“Evangelistão”: um Brasil rebatizado?

“Evangelistão”: um Brasil rebatizado?

 

Três fatos recentes, noticiados pelas mídias, chamam a atenção e suscitam uma reflexão profunda não sobre o Brasil de hoje, mas o que se vislumbra. Vamos a eles.

Cena 1: Em São Paulo, pai policial aciona a PM com metralhadoras para ir à escola de seu filho, onde uma aula sobre cultura afro-brasileira acontecia e as crianças eram apresentadas a outras deidades, os orixás, a fim de entender a pluralidade.

Cena 2: Projetos de Lei instituem o Dia do Movimento Evangélico Legendários em estados como Espírito Santo, Goiás, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraná, São Paulo e Amapá. Por ora.

Cena 3: No Rio de Janeiro, um terreiro de umbanda foi alvo de ataque e roubo. Em troca, os vândalos deixaram uma bíblia de “recordação”.

Poderíamos listar outros episódios semelhantes, mas como o propósito é analisar o fenômeno do radicalismo cristão crescente no Brasil e para onde ele caminha, os três acima nos bastam.

Para debater esse tema, é interessante começar pelo termo “fundamentalismo”. Ao contrário do que se poderia supor, ele não passou a ser usado para designar grupos terroristas islamistas, mas foi cunhado no início do século XX, a partir do livro The Fundamentals (1915). A obra, concebida pelo presbiteriano e explorador de petróleo Lyman Stewart, reúne 90 ensaios que defendem a inerrância bíblica e rejeitam qualquer traço de liberalismo ou modernidade cultural. Considerando o perfil de Stewart, envolvido na indústria petrolífera dos EUA, esse movimento não deve ser visto como exclusivamente religioso; trata-se também de um marco político e econômico, ancorado em raízes históricas profundamente conectadas aos movimentos socioeconômicos da chamada Idade Contemporânea.

Como afirmam André Leonardo Chevitarese e colaboradores em Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares Transdisciplinares (Kliné, 2021), os princípios religiosos que até então balizavam o Ocidente se viram ameaçados no século XIX pela laicização, urbanização com um grande apelo ao consumo de bens e mercadorias, explosão de novas formas de arte e pelo surgimento de novas ideologias, tais como o socialismo e o anarquismo. Acrescente-se a esse caldo o avanço científico e a revolução de Darwin com A Origem das Espécies (1859), colocando definitivamente em xeque o criacionismo e outros dogmas.

Portanto, não é de se estranhar que houvesse essa “contrarresposta” no início do século XX, a fim de refrear mudanças paradigmáticas que poderiam enterrar instituições religiosas cristãs ocidentais e seus preceitos mais caros.

Mas como isso chegou ao nosso país e para onde vai? E mais: por que ganhou tantas facetas e passou a ocupar cada vez mais espaços?

É inegável que a gênese histórica do Brasil está diretamente ligada ao cristianismo, em especial, ao catolicismo português.

No contexto artístico, como afirma Sábato Magaldi, “as primeiras manifestações cênicas no Brasil cujos textos se preservaram são obras dos jesuítas, que fizeram teatro como instrumento de catequese”. Conforme Décio de Almeida Prado, “o teatro brasileiro nasceu à sombra da religião católica. A primeira pessoa a escrever peças com certa regularidade na terra que a princípio se chamou de Santa Cruz foi, apropriadamente, um santo, ou quase”, numa referência ao padre José de Anchieta. O fato é que, conclui Prado, “o seu aparecimento coincide com a formação da própria nacionalidade, tendo surgido com a catequese das tribos indígenas feita pelos missionários da recém-fundada Companhia de Jesus”. No Auto de São Lourenço, de José de Anchieta, cabe destacar que a língua, a cultura e a crença dos povos indígenas são apresentadas como diabólicas.

Apesar disso, a religião cristã se entrelaça com a formação da idiossincrasia brasileira. Não é coincidência, portanto, que após a Independência e, mais ainda, depois da Proclamação da República, a pluralidade religiosa começasse a se manifestar, a ponto de que a primeira constituição (1891) declarasse o país como Estado laico. Teoricamente, abria-se, naquele momento, o livre exercício de todos os cultos religiosos e até mesmo a decisão de não ter qualquer crença.

Nesse cenário, por exemplo, as religiões de matriz africana, sufocadas pelo catolicismo colonial sangrento durante séculos e que haviam encontrado no sincretismo uma forma de sobrevivência, puderam assegurar com bastante dificuldade a manutenção das práticas religiosas e culturais, considerando as perseguições e repressões que perduram até hoje.

Porém, é aí também que se consolida o pentecostalismo. A atuação destacada dos protestantes (agrupados sob o termo “evangélicos”) no cenário político é um resultado da Nova República, apesar da antiga origem dessas igrejas e de sua presença em território nacional. As pentecostais entram em cena e ganham força a partir de 1910 e, inicialmente, não tinham representatividade política ou contingente de adeptos que competisse com a ainda hegemônica Igreja Católica.

Com o passar das décadas, entretanto, especialmente com a eleição de 1986 para a Constituinte, “uma marcada presença evangélica” (a Bancada Evangélica), qualitativa e quantitativa começa a acender o debate sobre a relação entre Estado e religião e as fronteiras que devem ou não ser mantidas entre essas instituições.

De 1910 a 1986, o avanço de causas progressistas como feminismo e inclusão de minorias, no Brasil e no mundo, conviveu com a eclosão de golpes e ditaduras, que se opunham frontalmente a essas pautas. A entrada dos evangélicos nas esferas de poder fortaleceu o conservadorismo no país com um novo vetor.

O carro-chefe do discurso crente extremista é a ameaça de destruição da família tradicional e o afastamento das “leis de Deus” (equivocadamente) consideradas pétreas na bíblia cristã. O “mal” a combater se subidivide entre a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo e do divórcio, bem como a legalização das drogas e do aborto, temas associados ao comunismo e, consequentemente, à figura do demônio.

Enquanto o pentecostalismo se estabelece na chamada “primeira onda” (1910), com a Assembleia de Deus, o neopentecostalismo radical, derivado deste, se delineia na “terceira onda”, com a Igreja Universal do Reino de Deus (anos 1970-80). Dá-se uma radicalização no combate ao “maligno”, com exorcismos dignos de cinema, combates ferrenhos a outras religiões, apropriação indevida e despropositada de ritos judaicos e o chamado às massas para o resgate de um pretenso passado “decente”.

Ao usar medidas extremas, os neofundamentalistas desejam anular, a partir das suas ações, tudo o que for contrário às suas percepções de vida e de mundo. Assim, as igrejas neopentecostais, longe da palavra que se atribuiria ao seu mestre, Jesus Cristo, buscam evitar ao máximo a corrosão dos fundamentos de uma cosmovisão teleológica cujo fim é o “Reino de Deus para a gente de bem”.

Com o uso massivo das mídias, o esforço dos neopentecostais se volta para o proselitismo dirigido às vítimas da desigualdade social. O escambo de uma parte do salário mínimo por uma melhoria de condições aqui e do outro lado da vida se torna o caminho imaginado para a ascensão de fiéis e a rota mais rápida e concreta para o poder que os pastores que “apascentam seus rebanhos” almejam.

Mas como das massas vulneráveis chegou-se a poucos, uma casta diríamos, de adeptos poderosos e milionários? E por que os discursos de intolerância chegaram a extremos tão graves?

Uma das respostas está na teologia da prosperidade, que determina que a bênção financeira é o desejo divino para os fiéis. Sob essa ótica, a riqueza é um prêmio dado por Deus para os “merecedores”, oferecendo uma validação espiritual.

Além disso, há o apoio ao conceito de “meritocracia”, já que se enfatiza a responsabilidade individual pelo próprio êxito material, obtido através da fé, do dízimo e das ofertas, alinhando-se assim a princípios capitalistas e neoliberais. Por sua vez, forma-se a aliança com a política de extrema-direita, que comunga com as mesmas noções, gerando um efeito de retroalimentação contínuo. A massa, adepta a essa religião, não prospera. Mas por que então não se questiona? Talvez porque viva numa bolha em que só é permitido ouvir e ver o que o pastor manda? Por que não se rebelam? Por que o lema dessa teologia neoliberal é a resiliência?

Já a hostilidade contra diversos grupos sociais encontra sua origem no proselitismo desenfreado e numa guerra espiritual imaginária construída sobre uma “tradição inventada”. Segundo Eric Hobsbawm, em A invenção das tradições (Paz e Terra, 2008, tradução de Celina Cardim Cavalcante) essa ideia fantasiosa se cristaliza em regras de natureza ritual ou simbólica, que visam incutir valores de conduta pela repetição, o que garante, por si só, uma ligação indissolúvel com um passado igualmente ilusório.

De acordo com os estudos deixados por Zeferino Rocha em obras como Ensaios psicanalíticos em interface com a filosofia (Cepe, 2000), a noção de “bárbaro” é construída como um oposto externo, aquele que não compartilha nossos ideais. Esta lógica binária alimenta o fundamentalismo, de adesão narcísica e dogmática a uma única verdade, rejeitando fanaticamente qualquer diferença. Para Rocha, esta atitude contrasta com as forças libidinais que buscam a harmonia e a construção de um mundo mais justo. No entanto, se há este impulso vital, há também uma pulsão de morte, que pode eclodir violentamente como o desejo de destruição do diferente. O fundamentalista, portanto, “encarna essa contradição: em seu narcisismo destrutivo, ele projeta a barbárie no exterior, enquanto dentro de si habita tanto o desejo de um mundo possível quanto a tendência à aniquilação”.

Para onde vai o Brasil do fundamentalismo cristão? O avanço é inegável e preocupante, mas algumas variáveis podem frear essa aceleração, entre elas, a disputa por fiéis entre as diferentes vertentes existentes. A quantidade talvez não deva ser o nosso maior receio, mas a eventual associação de uma parte (pequena, mas poderosa) evangélicos com facções criminosas e redes de contravenção que documentadamente é vista em lugares como o Rio de Janeiro. Para tanto, é preciso reprisar que fé não deve ser sinônimo de autoritarismo, uso indevido da força e menos ainda radicalismo.

Em meados do século passado, Vilém Flusser observava que “épocas e sociedades religiosamente férteis educam e fortalecem a capacidade individual para a religiosidade”. Já nas “épocas e sociedades religiosamente pobres, como a época que está para encerrar-se e a sociedade tecnológica”, essa capacidade é “reprimida e abafada”. Segundo ele, “um resultado dessa repressão é a deformação da religiosidade, que assume formas grotescas e monstruosas […]. Outra consequência é o desvio do ardor religioso da dimensão sacra para a profanidade chata do mundo, o que resulta em pseudorreligiosidades como o endeusamento do dinheiro ou do Estado”. Tais “deformações e perversões da capacidade religiosa” acabam por “dificultar a contemplação do fenômeno da religiosidade”.

Para Flusser, religiosidade é “a nossa capacidade para captar a dimensão sacra do mundo”. Embora não seja “uma capacidade que é comum a todos os homens”, é, afirma ele, “uma capacidade tipicamente humana”. Ele acrescenta que “pessoas religiosamente surdas vivem em mundos rasos e chatos […]. A capacidade religiosa torna profundo o mundo, opaca as coisas porque nunca inteiramente explicáveis e torna problemática a morte”. Por isso, “a capacidade religiosa torna, portanto, obscura a visão antes clara do mundo, assim como a contemplação da paisagem torna obscura a visão clara do mapa”.

A religiosidade nada tem a ver com as recentes cisões e contradições expressas por políticos radicais de púlpito e palanque. Espera-se que esses discursos explosivos despertem a sociedade brasileira para os perigos de qualquer extremo e as consequências eventualmente irreversíveis para uma real e constante evolução civilizacional.

Afinal, como diz a música da banda irlandesa U2 em uma de suas canções, “as bênçãos não são apenas para os que se ajoelham, felizmente”.

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Dezembro

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