“Eu preciso seguir cuidando do meu filho. Eu preciso ser a voz dele”
(Arte: Monique Malcher)
Ana Paula de Oliveira, criadora do coletivo Mães de Manguinhos, teve seu filho Johnatha assassinado por um policial militar há sete anos no Rio de Janeiro. Gravamos esta entrevista em 19 de julho de 2021. Na parede do cômodo onde ela estava, havia uma foto de um jovem com um sorriso aberto, afixada numa placa azul onde se lê: Rua Marielle Franco (1979-2018). Johnatha e Marielle foram nossos guardiões. Moradora da favela de Manguinhos, Ana Paula soma-se à luta de outras mães de outras periferias que clamam por justiça.
A quantidade de coletivos de mães que tiveram seus filhos assassinados pelo Estado é um indicador incontornável e define os marcos políticos e conceituais nos quais nos movemos (vide a exposição virtual Em luta: vítimas, familiares, terrorismo de Estado, no site expo.abant.org.br/em-luta). Não se trata de excepcionalidade, mas de uma política estruturante do Estado brasileiro. Não é um genocídio “de uma tacada”, mas um processo de genocídio de longo alcance temporal. Os territórios das populações mais precarizadas tornam-se também os mais vulneráveis ao terrorismo de Estado. O esforço do Estado está na produção de uma narrativa que qualifique as vítimas como “bandidos”, e a luta por justiça das mães tem como efeito a humanização da vítima. Quando a mãe diz o nome e sobrenome e a idade do filho – gestos linguísticos tão simples –, produz-se uma fissura na narrativa do Estado. Maternidade, aqui, se transfigura em verbos: resistir, lutar, lembrar.
Em uma de suas entrevistas, você disse: “Meu filho chegou ao mundo e transformou a minha vida. Meu filho se foi e transformou a minha vida pela segunda vez”. Quais são essas transformações?
Antes, eu que quero agradecer, sei da minha responsabilidade, porque sempre que uma mãe fala está trazendo a luta de milhares de mães também. É a memória de milhares de filhos. Eu fui mãe aos 17 anos. Nessa época, meu pai tinha arrumado outra pessoa e ido embora de casa. Abandonou minha mãe com os quatro filhos, ao deus-dará. Minha mãe tentou suicídio. Ela sofreu muito, e a gente, os filhos, consequentemente. Quando eu engravidei do Johnatha, escondi pelo tempo que pude. Uma das preocupações era que iriam culpabilizar a minha mãe pelo que tinha acontecido comigo, pela gravidez, porque é sempre assim que acontece. Johnatha chegou de uma forma surpreendente, trazendo vida para minha mãe e para nosso lar. Ele foi o primeiro neto dos meus pais e acabou fazendo essa aproximação. Foi muito forte para nossa família. Ele trouxe alegria, força, um elo de amor e afetividade.
Johnatha era seu filho único?
Não, eu tenho uma menina. Depois de dez anos, tive uma menina, Maria Paula, eu sou mãe de um casal de filhos. Tenho um menino e uma menina.
Johnatha se vai e transforma sua vida de novo.
Exatamente. O Johnatha foi assassinado em 14 de maio de 2014. Eu achava que iria morrer também. Ficava me perguntando “como é que vai ser agora?”. Não via luz no fim do túnel, não via vida para mim. No dia seguinte do assassinato do meu filho, quando eu estava aguardando minha família me pegar para levar ao velório, a televisão estava ligada numa reportagem. Passou uma foto do Johnatha e disseram: “Mais um jovem assassinado pela polícia em Manguinhos. A família alega que ele não tinha envolvimento com o tráfico, mas os policiais dizem que ele morreu em uma troca de tiros”. Aquilo foi como se estivessem matando de novo meu filho. Eu comecei a chorar copiosamente, desesperadamente, e falei: preciso cuidar do meu filho, seguir cuidando do meu filho, preciso ser a voz dele. Ninguém vai falar por ele com tanta legitimidade, com tanto cuidado, com tanto amor, com tanto carinho quanto eu, que sou a mãe dele. Então, preciso falar pelo Johnatha. E essa força foi nascendo. Já ouvi algumas mães dizerem que é uma força que vem do nosso útero. Essa força está se colocando para fora e cada dia mais eu queria falar do Johnatha. Um menino bom, amado, querido, iluminado, de muitos amigos, e as pessoas ficavam assim: “Nossa, eu consigo ver o Johnatha na sua fala, eu consigo visualizar o Johnatha, o sorriso dele”. E foi acontecendo essa transformação. Comecei a perceber que seria uma forma de exercer minha maternidade, continuar cuidando do Johnatha, ser a mãe dele, independentemente de ele estar aqui fisicamente. Eu sinto muito a presença dele aqui. A gente encontra várias mães para quem já se passaram dez, quinze anos, e até hoje não conseguiram alcançar essa tal justiça. Muitas vezes eu falava comigo mesma: meu Deus, como é que vai ser se, ao chegar no final disso tudo, o policial que matou meu filho não responder pelo crime que cometeu e continuar achando que é normal tirar a vida de outra pessoa? Comecei a entender que, ao longo desses sete anos, eu, a mãe do Johnatha, tenho feito essa justiça. Isso vem me fortalecendo porque, infelizmente, a justiça institucional tem dois pesos e duas medidas. Na maioria das vezes, ela só age para nós, que somos da favela, povo negro, quando é para nos encarcerar.
Como tem sido a luta por justiça?
Ao longo desses sete anos, eu venho acompanhando outros familiares e a gente vê que é tudo muito parecido, do momento do assassinato à criminalização da vítima. É algo corriqueiro na polícia. Quando Johnatha foi assassinado, assim que a gente recebeu a notícia na UPA [Unidade de Pronto Atendimento em Saúde] de Manguinhos, o meu cunhado foi orientado a ir até a delegacia e fazer o registro. Minha irmã perguntou: “Você quer entrar para ver o Johnatha?”. Eu não queria porque ainda não acreditava que aquilo estava acontecendo. Eu não queria acreditar.
Foi um representante do Estado quem matou seu filho e você tem que ir ao Estado para obter justiça. Como lidar com todos os trâmites, a repetição da história, o tempo de espera?
É muito difícil. Nunca tinha entrado num Tribunal de Justiça até o dia da primeira audiência, que foi quase um ano depois do assassinato dele. Foi a primeira vez também que eu estive frente a frente com o assassino do meu filho. É difícil entrar por aqueles corredores imensos, frios. Graças a Deus, eu tinha apoio da minha família, das pessoas do Fórum Social de Manguinhos e de outras mães. Mas há muitos casos em que a mãe enfrenta isso tudo sozinha, o que é muito difícil. Foi uma experiência muito dolorosa, torturante, e a gente não pode se manifestar de forma alguma, tem que engolir o choro. Eu ficava o tempo todo entre o choro e o desespero, pedindo para as pessoas ficarem quietas, não se manifestarem, porque eu tinha muito medo de adiarem a audiência. Era como se estivessem matando meu filho novamente, tentando de todas as formas incriminá-lo. O policial que fazia cara de vítima era uma pessoa envolvida em outros homicídios, já tinha sido preso por outros crimes, e nada disso foi levado em conta naquele momento da audiência. As vítimas e as testemunhas foram interrogadas com perguntas preconceituosas, incriminadoras: se as testemunhas trabalhavam, se tinham algum vício, se na favela onde a gente mora tem venda de drogas.
As Mães de Acari são um marco. A chacina aconteceu em 1990 e até hoje o caso não teve nenhum desfecho. Como vocês se organizam, tanto no Rio de Janeiro como nacionalmente?
A gente hoje tem a rede nacional. Na verdade, é uma rede internacional porque tem mães de outros países e estamos sempre fazendo essa conexão. Existe um encontro anual dos familiares de vários estados e algumas vezes a gente consegue também a vinda de mães e familiares de outros países. As redes tentam trocar informações sobre nossas lutas e o que está dando certo. As Mães de Maio de São Paulo conseguiram aprovar uma lei estadual que concede a semana de luta. Trouxemos a lei para o estado do Rio de Janeiro e a intenção é expandi-la para outros estados. Assim vamos criando conexões, tentando fazer as articulações de luta, levar o que está dando certo, absorver alguma coisa de outros estados para nos fortalecer.
Onde estão os homens (pais, tios, irmãos)? Nas manifestações se vê apenas um ou outro homem.
É um ou outro mesmo. São poucos os que eu conheço, com que tive a oportunidade de ter contato nesses sete anos de luta. Eu conheci o José Luiz, que é da Favela de Acari e pai do Maicon, um menino de 2 anos assassinado pela polícia. O José Luiz, para mim, é uma referência de pai que está na luta. Conheci também o Seu Jorge, pai de um dos meninos que foi assassinado com 111 tiros no carro, quando voltava de um passeio com quatro amigos. O Seu Jorge também vira e mexe está aí, com a gente, nas lutas, nas ruas. Quando você me perguntou onde estão esses homens, eu posso dizer, por experiência própria, e também ouvindo outras mães: eles estão se evadindo de casa e, quando estão em casa, falam para a esposa parar de chorar porque essa luta não vai adiantar nada.
Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da UnB, pesquisadora do CNPq.