“Eu não vejo o BBB”: um ensaio sobre os iluminados

“Eu não vejo o BBB”: um ensaio sobre os iluminados
(Foto: Reprodução/Rede Globo)

 

O reality show Big Brother Brasil ( BBB) tem já os seus 22 anos. São duas décadas e mais um biênio. Surpreendente? Assustador? Inquietante? Conheço umas tantas pessoas amigas – e nem tão amigas também – muito conscientes, cheias de senso crítico e certamente muitíssimo cultas e intelectualmente iluminadas, que consideraram tantos anos de BBB uma tragédia, um exemplo inquestionável da alienação da sociedade brasileira; estes são os oráculos da conscientização, as pitonisas inebriadas com a própria inteligência, verdadeiros personagens de uma mitologia contemporânea corporificada. Todos conhecemos uma ou outra destas figuras, já que surgem todos os anos nas mais diversas redes sociais, para oferecer-nos a solene declaração, misto de vaticínio, desabafo e admoestação: “Eu não assisto BBB. Não discuto BBB. Não falo sobre BBB. Prefiro ler um livro, ouvir uma música. Me oponho à alienação. À sociedade do espetáculo. À manipulação da mídia para controlar o debate público”.

Essa descrição é certamente um tanto hiperbólica e caricatural, é verdade. Serve, contudo, como ilustração ótima para este texto. Nas linhas que seguem exponho porque tal postura me parece não apenas equivocada, como também reveladora de uma certa concepção de mídia, cultura, conhecimento e politização que compõe o cenário catastrófico de incompreensão conjuntural das demandas do Real.

Uma pitada de memória: o BBB e a adolescente que fui

 

Para mais de uma geração, o Big Brother Brasil é componente fixo da paisagem televisiva, do ambiente doméstico, das interações nas redes sociais. Talvez até mais lembrado que as conhecidas novelas das 9 ou demais programas. Parece-me seguro afirmar que exista uma marca na cultura popular de nosso país deixada pela presença deste programa: de expressões que ganham espaço na língua falada (paredão, por exemplo), até a organização de torcidas e disputas, tão ou mais intensas que aquelas que observamos no futebol.

Desculpo-me aqui com o leitor, pois nesta seção, situando-me como nativa de uma das gerações marcadas pelo BBB, exponho um tanto das memórias e afetos que a exibição do reality tiveram em minha adolescência e certamente de tantas outras pessoas.

O ano era 2002 e eu tinha 12 anos quando assisti ao primeiro BBB, morava em Guarulhos e estava na quinta série do ensino fundamental. Não tinha particular interesse pelo programa, é verdade. Achava um tanto estranho e só com o tempo, acompanhando porque estava ali, após a novela, antes do jornal, é que passei a acompanhá-lo. Como a televisão do meu quarto não tinha controle remoto, toda noite, por preguiça mesmo, sintonizava sempre no mesmo canal e assistia o que quer que passasse, até que viesse o sono. O BBB era um tanto parte da paisagem, até que então ganhava minha atenção. Na adolescente que eu era, cheia de hormônios e descobrindo muito sobre os efeitos deles em meu corpo, o BBB movia também afetos e imaginários eróticos. Lembro de alguns tantos participantes que compuseram a fauna desejante e solitária de boa parte da minha adolescência: Bam Bam, Rogério Dragone, Fernando Fernandes, Dan Dan, Diego Alemão, Thiago Lira, Rafinha e talvez outros cujos nomes já não lembro.

Minha vida de adolescente resumia-se à escola, atividades religiosas – venho de uma família budista – e televisão. Nunca fui de muitos amigos e nem gostava de sair de casa. Fui sempre das melhores alunas da escola, bastante elogiada, voluntária da biblioteca, engajada no grêmio estudantil, querida pela direção, por professores e um tanto rejeitada pelos demais alunos. Durante todo este período eu fazia o tipo meio metida a sabichona, exibia o que lia, gostava de fazer longas intervenções nas aulas, exibida que só – não me julguem, viu? Era este um dos mecanismos para sobreviver ao bullying corpornormativo e homofóbico. Nessa época, sempre que se mencionava o BBB, eu me transformava na pitonisa do primeiro parágrafo deste texto, para sinalizar cultura mentia descaradamente: “Prefiro ler um livro. Prefiro assistir à TV Cultura, que tem uma programação cultural, inteligente”. Dizia com tom superior, tentando me diferenciar. Diferente das figuras aludidas em nosso parágrafo introdutório, eu era tão somente uma adolescente, cheia das inseguranças e falsas certezas típicas deste período.

 

Enunciando e produzindo distinção: saindo da caverna e entrando no buraco

 

Na recusa expressa em minha mentira adolescente – “não vejo o BBB” – havia, como em muitas recusas que ganham o mundo dos enunciados verbais, uma condenação de fundo, um juízo curatorial e uma imagem constituída daqueles que escolhem diferente. No caso da jovem Helena, tratava-se de produzir distinção em um duplo movimento: a valoração das próprias escolhas e a depreciação daqueles que escolhem diferentemente. Obviamente os debates que acompanhamos nas redes não necessariamente são artifícios ou mentiras, mas inevitavelmente se ancoram em uma curadoria valorativa que toma aquilo que é demasiadamente pop, correspondente à “ cultura de massas”, como sendo alienante, de baixo valor, pouco consciente.

Obviamente todos temos gostos e predileções. Optamos por assistir a um ou outro filme, por ler este ou aquele livro ou conto, por um tipo ou outro de música etc. As reclusas que fazemos, aquilo que deixamos de assistir não correspondem necessariamente a esta curadoria valorativa. A forma de recusa que se vê em períodos de Big Brother Brasil é de outra ordem: ela precisa ser dita, precisa ser afirmada, é uma recusa que precisa aparecer como significante. Não se trata apenas de um gesto, de mudar o canal, de ir fazer outra coisa. É uma recusa que precisa ser exibida, pelo que significa, pelo que representa, por sinalizar uma posição.

Tenho a impressão que essa posição espetacularizada e sua necessidade de afirmação pública é resultado de uma distorção elitista da ideia de “consciência política”, de “ conscientização”, que implica muito mais em recusar o que é produzido por um veículo comunicacional ou de entretenimento qualquer do que em dedicar-se a pensar a respeito dele. Parece haver um deslocamento moral em que “ consciência política” e “fuga do senso comum” representam posição culturalmente elevada e destinam aos não “ conscientes” o lugar de alienados. Tal fenômeno é uma atualização, uma reedição da clássica distinção entre alta e baixa cultura, entre alta e baixa teoria.

Essa distinção tem como efeito separar as pessoas em sábias ou conscientes e ignorantes. O que assistir ou não Big Brother Brasil tem a dizer sobre cada um de nós? Absolutamente nada. Imaginem se decidíssemos buscar um significado, um sentido, uma pista sobre nós e nossa relação com o mundo em cada uma das coisas que assistimos?

Retomo brevemente a distinção entre alta e baixa cultura para localizá-la nas proposições de Jack Halberstam em A arte queer do fracasso, nesta obra o autor ancora suas discussões em filmes de animação como Fuga das galinhas ou Procurando Nemo, produtos da indústria cultural, cuja codificação de conhecimento estaria, desde o princípio, negada. Dizer que este ou aquele programa de entretenimento serve à alienação demanda uma razão anterior que estabelece uma relação “consciente” com o objeto, uma relação que precisaria ser aprendida por aqueles que são alienados. E os alienados devem aprender das reflexões dos conscientes porque nada possuem de conhecimento próprio e por isso se tornam presas fáceis de um fantasmagórico e inominado “Sistema”.

Ainda discutindo a noção de “baixa teoria”, Halberstam nos lembra da pedagogia de Jacotot com que Rancière discute em seu clássico O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual, quando o autor distingue a emancipação intelectual da ilustração dos explicadores. Em determinada altura da obra, Rancière dirá que não é a explicação o remédio da suposta incapacidade de compreensão dos ditos ignorantes, ao contrário, é o próprio “ explicador” aquele que cria a incapacidade ao asseverar que apenas os conhecimentos que ele possui possibilitam a compreensão de dado elemento da realidade. Para Rancière a emancipação intelectual não estaria em tomar um certo número de conhecimentos de seu “explicador” ( mestre ou professor), mas em saber das coisas que se sabe, dos conhecimentos que a vida oferta e que povoam o universo intelectual de todos, inclusive daqueles que neste esquema binário seriam os ignorantes. Não se deveria tratar o conhecimento como virtude. É apenas porque, em nossa sociedade, a ideia de “cultura” e “ilustração” produz distinção que alguns insistem em sinalizar virtude.

A analogia com que comecei essa seção do texto tenta ilustrar a distorção a que me refiro, afinal, o mito platônico da caverna é frequentemente compreendido como o abandono das representações que nos iludem e alienam e o encontro doloroso com o conhecimento. Neste sentido, a necessidade de distinguir-se dos alienados está em franca relação com o trauma do abandono da caverna, por saber que antes o que via eram sombras, este humano traumatizado passa a supor que tudo é sombra. Não haverá mais nada que não seja sombra, a realidade estaria apenas na consciência da dor que sentiu inicialmente quando o sol bateu em seus olhos ao sair da caverna. Qualquer conforto, entretenimento ou trivialidade será imediatamente confundida com uma nova caverna. Solitário este humano zomba de todos os que gozam no mundo, porque apenas ele vê que a sombra é sombra. Este humano sinaliza a virtude do buraco em que tropeçou quando deixou a caverna.

O Big Brother Brasil, a caverna e a alienação ou a trama psicossocial da consciência

 

Não se trata de uma analogia despropositada ou hiperbólica a que fiz entre aqueles que espetacularizam a própria recusa frente ao Big Brother e os que saídos da caverna caíram no buraco. É comum que se pense que os programas televisivos, jornais e demais mídias promovam alienação. Concordo que nenhum roteiro é neutro, nenhuma notícia é o retrato fiel de um acontecimento. Contudo, com que autoridade ou conhecimento se pode supor que os receptores destes conteúdos seriam por eles alienados desde o princípio?

Os processos de comunicação e as informações não chegam em sujeitos em branco e nem mesmo deixam de passar por um certo crivo pessoal. Há uma tendência entre intelectuais e teóricos brasileiros – um tanto discutida pelo eminente psicólogo social Salvador Sandoval – que supõe que as pessoas em geral, os indivíduos, sem um processo de ilustração direcionado, ou seja, sem um processo formativo sobre política e afins, não conseguiriam consolidar posições autênticas ou refletidas sobre temas políticos e sociais em geral, que estes atores individuais seriam passivos no complexo processo de formação das próprias consciências políticas, o que penso, não é verdadeiro.

Chamo a atenção, em função deste tema, para as discussões propostas por William Gamson em Talking Politics. Logo na introdução do livro o autor diz algo como “as pessoas não são ignorantes”, no sentido de que não se deixam acreditar ou conduzir por tudo o que veem na televisão ou nos noticiários, ao contrário, tecem um conjunto de relações entre as diversas informações, trajetória social, crenças familiares e religiosas. Gamson conduziu uma série de conversas sobre temas como políticas afirmativas, energia nuclear etc. com grupos de pessoas comuns, e percebeu que as posições sobre temas de interesse público, e também as formas de engajamento, se constituíam em processos complexos.

A associação imediata ou performada entre espectadores de reality shows e alienação decorre justamente do desmerecimento que se realiza para os processos de constituição de consciência política alheios à formação política específica obtida nos mais diversos meios: da instrução formal na universidade até grupos de internet, partidos políticos, movimentos sociais ou sindicatos.

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O Big Brother Brasil tem pautado uma série de debates públicos no Brasil. Sua transformação ao longo dos anos revela que a visibilidade que se obtém com ele é a verdadeira moeda, o verdadeiro prêmio. Penso que, para além das questões já expostas, a atitude de desprezo, seja ele direto ou indireto, promove a despolitização e desvitalização das potências que nele se poderia encontrar. Peço desculpas se de alguma forma o texto soou mordaz, ele certamente também se insere nas dinâmicas que criticam. Contudo, ou tomamos a realidade gozosa como potência, ou seguiremos habitando os buracos da verdade, da consciência e da pretensão messiânica da superioridade intelectual.

 

Helena Vieira é escritora e transfeminista.


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