Etnografia do corpo despossuído: hileia em andrajos, de pés descalços
(Foto: Bob Sousa)
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Fotos de Bob Sousa
.“Marajó já teve fama de gado e cavalaria
Hoje já vive explorado pelos piratas da vigia.”
Mestre Marajó, tema folclórico
Sóbrio em seu formato (um espetáculo de inexcedíveis 60 minutos em que o único ator em cena não tem outro elemento à disposição senão o próprio corpo envolto em um figurino despojado e delineado por um igualmente austero projeto de iluminação), Solo de Marajó, em cartaz no Auditório do Sesc Pinheiros até o próximo dia 11 de fevereiro, é uma experiência teatral de incomensuráveis beleza e densidade. Seja por revelar a obra de um escritor paraense muito pouco conhecido no Sudeste – o modernista Dalcídio Jurandir (1909-1979) –; seja por evocar, diretamente, a história da Amazônia e, indiretamente, uma série de questões socioculturais de amplo espectro, tratadas sob uma ótica que em momento algum cede à aura de exotismo de que a cultura do Norte do país costuma se revestir nos meios de comunicação de massa; seja ainda por constituir um solo de teatro sui generis, bastante diverso de iniciativas similares praticadas no eixo Rio-São Paulo.
Embora constitua tema de um bom número de estudos acadêmicos (o levantamento feito pelo site da Casa de Cultura criada em homenagem ao autor relaciona as monografias, dissertações e teses escritas sobre sua espessa produção literária), a obra de Dalcídio Jurandir ainda está para ser descoberta, sofrendo desde 1941, ano da publicação de seu romance de estreia, Chove nos campos de Cachoeira, dos males crônicos de nossa rarefeita atividade intelectual: o preconceito, a indiferença, a seletividade. Nos onze romances que escreveu, aos quais denominou de “Ciclo do Extremo Norte”, Dalcídio alia os registros fabular e documental, de natureza antropológica, cujo amálgama tão expressivo foi denominado por Zélia Amador de Deus de “ficção etnográfica”. Marajó, segundo título da série, publicado em 1947, não foge à regra, retratando a vida dos caboclos da ilha a partir da perspectiva político-ideológica do escritor, segundo a qual, nas palavras de Willi Bolle, garante-se “amplo espaço às falas das pessoas do povo”, que, não circunscritas à ambiência da vida privada, “se fazem presentes com a sua voz na esfera pública”. Encarando a forma romanesca como um instrumento de investigação e revelação sociológicas do país, o escritor, em meio às muitas vozes que disputam espaço no burburinho geral da polifonia social brasileira, ouve com especial atenção o que os vencidos têm a dizer. A ordem dominante está lá, e contra a tirania é preciso resistir para, quem sabe, alterar o curso dos acontecimentos e reverter o sucedimento de derrotas. Por meio do misto tão bem caracterizado pelo professor Bolle de “literatura documental, crítica, sátira e denúncia”, Dalcídio confere estatuto especial ao “pessoal miúdo”, que ele mesmo chama – seria terno, se não fosse acerbo – de “aristocracia de pé no chão”.
A primeira grande qualidade do espetáculo concebido pelo grupo Usina é a dramaturgia (assinada pelo diretor Alberto Silva Neto em parceria com Claudio Barros, o intérprete), construída a partir de oito fragmentos do romance, que, embora não reconstituam a fábula integralmente, fazem pulsar de modo muito expressivo o sentido maior da obra. O título do trabalho é um achado, dada sua riqueza semântica. Solo de Marajó. Do latim solum: a terra marajoara, a superfície, a crosta, a parte arável. Do latim solus: performance de um único intérprete, indivíduo sem companhia, sujeito solitário e, por extensão, insulado. Insulado na ilha de Marajó. Pleonasmo ou ironia?
O segundo ponto de destaque fica por conta da fluida relação que se estabelece entre as formas épica e dramática na condução do trabalho, seja pela consistente concepção da direção, a cargo de Alberto Silva Neto, seja pela atuação memorável de Claudio Barros. O ator narra algumas das histórias do romance e adere às atmosferas emocionais vividas pelos personagens que apresenta e, logo depois, encarna. De corpo e alma. De soma e psyché. De almas flagradas com seus corpos vivos mortificados pela sujeição às estruturas imemoriais de poder. Externo à ação, o ator-narrador opera a mediação entre o espaço representado social e antropologicamente e o espectador, lançando mão dos tons de denúncia e sarcasmo contidos na ficção de Dalcídio Jurandir. Internamente, o intérprete alça à condição de protagonistas de cada cena aqueles aristocratas descalços, construídos a partir da observação dos corpos cotidianos da vila marajoara em que nasceu o escritor. Eis que Solo de Marajó se configura, então, em uma espécie de etnografia do corpo nortista reificado. A “criaturada grande de Marajó, Ilhas e Baixo Amazonas” dá murro em ponta de pedra e fracassa sempre mais e melhor.
Claudio Barros, ator de dicção cristalina e domínio corporal impecável, lança-se à tarefa compreendendo muitíssimo bem os variados estratos da topografia social da ilha e conferindo uma dimensão rapsódica à empreitada, como defende Sócrates no Íon de Platão (na tradução aqui de André Malta):
Na realidade, Íon, muitas vezes eu invejei a vocês, rapsodos, por sua arte. Pois o fato de convir à arte de vocês ter o corpo sempre adornado e se mostrar o mais belo possível; e de ser forçoso a se dedicar a vários bons poetas, especialmente a Homero, o melhor e mais divino dos poetas, e compreender a fundo o pensamento dele – não só os versos – é invejável! Porque um rapsodo jamais seria bom se não entendesse o que é dito pelo poeta: é preciso que o rapsodo seja, para os ouvintes, o intérprete do pensamento do poeta. E é impossível fazer belamente isso sem saber aquilo que o poeta diz.
De repente, a arte do teatro opera mais uma de suas inúmeras maravilhas, compatibilizando um paradoxo e brincando com o sentido das palavras e das coisas. Em espaço cênico diminuto, o intérprete extrema corpo e voz norteado, intelectual e sensivelmente, pelo pensamento do escritor cujo grande projeto literário foi se dedicar às longínquas paragens setentrionais.
Renunciando à grandiloquência de alguns espetáculos em cartaz na cidade de São Paulo comprometidos com a temática decolonial, Solo de Marajó, em seu aparente despojamento, presta uma inestimável contribuição à compreensão da complexidade da questão amazônica, região onipresente no noticiário catastrófico, no imaginário turístico e no discurso ecológico como um fato-mercadoria, sobre o qual os poderes instituídos lançam diariamente o manto da hegemonia das mesmas representações. As populações da Amazônia hoje – tradicionais, interioranas ou urbanas – privam de toda sorte de heterogeneidade e têm a desigualdade como mote em seus “diferentes padrões de realização da existência” (a expressão é de Marilene Corrêa da Silva), seja pela via da exclusão, da apropriação ou da expropriação. O sociólogo Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto adverte que o atraso e o subdesenvolvimento da Amazônia não são da ordem da fatalidade:
… é algo que tem sido produzido por forças e interesses perfeitamente identificáveis ao longo da história passada e presente. Existe, portanto, uma produção do atraso, como existe um investimento sistemático e permanente na manutenção e no crescimento das desigualdades.
A contrapelo, a obra de Dalcídio Jurandir mostra o que seria a Amazônia se os caboclos tivessem direito à palavra e pudessem recontar sua história. As escavações na Ilha de Marajó mostram, nos quarenta sítios arqueológicos descobertos, que ali surgiu uma portentosa civilização. Entre 400 a.C. e 1300 d.C., a população do monte de Teso dos Bichos, por exemplo, testemunhou um alto desenvolvimento tecnológico e uma ordem social bem definida. Em História da Amazônia, Márcio Souza afirma que “muitos dos hábitos e costumes posteriormente herdados pelos povos indígenas e pelas populações cabocas foram criados e desenvolvidos por essas sociedades antigas”. O orgulho dessa Amazônia ancestral renasce na Cabanagem e forja nas populações subjugadas da região, a partir de então, um novo estilo de resistência.
Cada fragmento da dramaturgia de Solo de Marajó, em íntima conexão com o romance que lhe serviu de inspiração, revela sua vocação historiográfica. Para além das histórias íntimas e privadas, apresentadas no âmbito da superfície, da crosta (do solo), é possível identificar, como sedimento mais profundo, a polarização entre ricos e pobres, as relações de poder entre eles, os malfadados projetos de modernização, a falta de comunicação entre os caboclos e os donos da terra, as estruturas coloniais vigorando em pleno século 20, e 21. É como se, diante do silêncio da História e do colapso da Memória, cada corpo apresentado em cena denunciasse por si só, sinestesicamente, a violência do projeto colonialista naturalizada pela “incontornável” expansão territorial “civilizadora”, em curso desde que Vicente Yañez Pinzón, em 1500, tomou de assalto a ilha de Marinatambalo (forma como o explorador entendeu os indígenas a chamarem, pela qual Dalcídio Jurandir quis batizar inicialmente seu romance), escravizando os primeiros “negros da terra”, como os índios eram denominados então.
Para nós do Sudeste, desnorteados, mas sempre de posse das velhas opiniões eurocêntricas sobre tudo, Solo de Marajó talvez possa constituir um exercício de alfabetização sociocultural e histórica. Aqui, uma Amazônia outra é revelada por uma criação artística não preocupada com a exacerbação da pessoa, seja do ator em cena, seja das personagens que o atraíram. Os tipos humanos aos quais o espetáculo se dedica com reverência e solenidade estão mergulhados em suas próprias vivências, mas a prontidão crítica do romance, e do espetáculo, desenvolve em nós, espectadores, um inequívoco impulso rumo ao aprimoramento do pensamento histórico, demandando a elaboração de raciocínios mais complexos sobre a questão amazônica. Podemos aprender, como defende José Varella Pereira, “com os mestres da dita cuja universidade ribeirinha, que são os índios, os pretos mocambeiros e os cabocos mais velhos”. É essa “gente mais comum, tão ninguém”, segundo Dalcídio Jurandir, que nos ensina que contra as antigas e as novas formas de dominação há sempre antigas e novas formas de resistência.
SOLO DE MARAJÓ
Sesc Pinheiros – Auditório, 3º andar (98 lugares)
Rua Paes Leme, 195 – Pinheiros, São Paulo
Quinta a sábado, às 20h
Ingressos: R$ 30, R$ 15 e R$ 9
Duração: 60 minutos
Classificação: 12 anos
Até 11 de fevereiro
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero, onde atualmente é diretor.