A estrutura da evolução de Ice Blue

A estrutura da evolução de Ice Blue
Foto: Daryan Dornelles

CULT: Você e o Mano Brown se conheciam desde crianças, mas a aproximação com o Edi Rock e com o KL Jay aconteceu mais tarde. Como foi isso?

ICE BLUE: Eu e o Brown já andávamos juntos, porque minha mãe e a mãe dele são amigas de baile. Nós não conhecemos nossos pais. Quando nossas mães se conheceram, foram morar perto desse terreiro que elas frequentavam. O pai que a gente tinha era emprestado, um pai de santo, Seu Isaac – que chamamos de pai até hoje. Crescemos juntos, começamos a frequentar os bailes juntos. Foi quando conhecemos o Miltão [Milton Salles, agitador cultural da época]. Ele nos convidou para gravar uma fita demo junto com o KL Jay, com quem o Brown trabalhava numa empresa no Centro. Foi quando conhecemos o Edi Rock. O louco é que eu e o Brown já convivíamos juntos no Capão, e o Edi Rock e o KL Jay eram da zona norte.  Para a gente ir até lá, era uma viagem de três horas. Mas a gente fazia isso todos os dias, com dinheiro, ou sem dinheiro. Eles tinham as coisas, as condições que nós ainda não tínhamos. Com o grupo feito, Miltão nos levava pra lá e pra cá, conversando politicamente com a gente. Ele é um grande braço do movimento hip hop, porque foi um cara que transitou, entendeu, tentou juntar, aproximou, teve visão política na época, dedicou tempo, trouxe os políticos para próximo. Intermediou.

Ele enxergou um poder político em vocês…

Um poder político, uma fuga. Enxergou que o rap poderia ser um partido político, com todo mundo falando suas ideias, sua visão de rua, sua visão de crime, sua visão de dentro de casa – as coisas que supostamente incomodavam o jovem e ele não queria falar. O preto, favelado. Ele viu que tinha um caminho, compreendeu rápido.

Em que momento você percebeu que era a hora de se dedicar exclusivamente ao rap e ao Racionais?

Eu não esperei momento nenhum, eu me dediquei cem porcento desde o primeiro instante. Acordei um dia e falei “não vou trabalhar, é isso que eu quero fazer”. Vou fazer música e ponto. Aí eu pedi demissão da empresa que eu trabalhava  e minha mãe ficou louca. Com o Brown foi a mesma coisa. Nos dedicamos cem porcento desde o primeiro instante, quando entendemos que éramos um grupo. Tudo bem que passamos os maiores venenos da vida nesse tempo, ficamos sem dinheiro pra cortar o cabelo, a gente juntava cinco caras para comprar um pacote de bolacha. Mas mesmo sem termos condições, mesmo sem fazermos dinheiro, nós acreditávamos naquilo. Nós fazemos parte de uma geração entre o samba e a música black e isso foi uma das coisas que “deu o molho” do Racionais. A sequência de todo o movimento dos bailes black, que acontecia desde 1970, era o rap. Mas o samba estava estourando comercialmente e fazendo dinheiro. Não era interessante para as equipes dos bailes gravar rap, então eles apostaram no samba, mas se dessem continuidade ao rap, ele aconteceria organizado. Os bailes são praticamente os responsáveis pelo rap ter um retardamento de alguns anos de profissionalismo. Nos bailes da Chic Show, por exemplo, sabíamos que não podia ir de calça dobrada, tinha que estar com o ingresso na mão e pegar fila. Não tinha conversa. O rap não teve essa organização e, quando cresceu, pensamos “Temos um movimento, e agora?”. Os próprios caras que nunca tinham produzido nada começaram a meter a cara. Para o rap, a estrutura não existiu. O que havia era muito grupo na ativa e nós íamos a shows desses caras para ver como era e percebemos que o rap estava acontecendo sem precisar do Racionais. Liberto, mas órfão, sem estrutura. Hoje, o movimento andou para frente e há uma geração nova que está fazendo coisas que a nossa geração não fez. Só que nós cantamos para eles serem assim. Vivemos um momento diferente, com a internet principalmente. Ela foi um braço que precisava, porque democratizou a produção e a distribuição, algo que era monopólio de gravadoras.

A internet teve um papel importante também no sentido de trazer novos públicos para o rap?

Exatamente. Ela desmistificou a ideia de que fulano de tal arranca cabeças ou que outro cara não gosta de brancos. Ela começou a mostrar os seres humanos, tirou os monstros. Mas tem muita conversa desencontrada também. Os caras inventaram trilhões de coisas do Racionais e nós nunca tivemos essa preocupação em desmentir. Se você andar com a gente, vai ver que realmente somos uns caras estressados, principalmente Mano Brown e Ice Blue, mas rimos de tudo. Só que se está trabalhando com a gente e está dando mancada, pode preparar que o bagulho vai ficar louco [risos]. A internet reaproximou as pessoas, além de te mostrar que não é só no Brasil que há esse movimento. O jeito que a gente se veste virou moda mundial. É branco, preto, jogador de futebol, funkeiro. Todo mundo se veste que nem os caras do rap.

E por que isso está acontecendo agora, especificamente?

Porque nós viramos referência total. Sem contar os bilionários que começaram a aparecer na ponta: Dr. Dre, P. Diddy [rappers e produtores musicais norte-americanos]. No Brasil ainda falta esse intercâmbio dos caras entenderem a comunidade negra e o seu consumo. Falta um Dr. Dre entender que uma faculdade Zumbi dos Palmares pode ser alguma coisa, ou ver a quantidade de pessoas que vão num show de rap e pensar em fazer um canal de TV, uma rádio. Isso falta porque ainda é muito segregado. Não existe uma rádio de hip hop que você pode sintonizar. As pessoas têm a mania de ouvir música no pen drive, por bluetooth – e precisamos fazer que elas tenham a mania de sintonizar uma rádio de hip hop.

Esse é o próximo passo para o movimento hip hop? 

O rap buscou primeiro ficar livre: os pretos serem pretos, o preconceito ficar estampado, o favelado ser favelado. Tudo isso o rap cantou e mudou. Acabou. O crime não é mais o mesmo que cantamos nos anos 1990, as pessoas não se matam mais daquela forma. Não adianta fechar os olhos para esse momento. Se conquistamos tudo isso, as próximas conquistas são uma rádio e que as nossas marcas se estabilizem no mercado. É introduzir a periferia no contexto geral, como os caras do funk estão fazendo. Temos que incluir a periferia no mainstream. Esse é o foco hoje. A revolução já foi feita e a próxima revolução é essa. É preciso vir um cara desses e dizer “Tem quantas marcas de preto nos EUA? Vou levar todas para o Brasil”. Do mesmo jeito que lá negão só usa as marcas de negão, precisamos fazer isso aqui. Vamos empregar mais pessoas. E não adianta trazer pessoas do outro lado, tem que ser dos nossos. Temos que trazer as coisas para dentro da periferia. Essa é a evolução que precisamos no momento.

O que falta pra essa evolução acontecer? Maior profissionalização, mais estrutura, mais união do movimento?

Falta que as pessoas se libertem das ideias antigas. Nós cantamos para elas não terem vergonha de serem faveladas, não terem vergonha de onde moram, do cabelo, do jeito de se vestir, falar ou andar. Foi isso, nós não perpetuamos a favela, não dissemos para as pessoas morrerem na favela. Trabalhe, conquiste e faça uma casa melhor para você, compre um carro melhor todas as coisas que um ser humano normal quer fazer. Não é porque você é favelado que vai morrer aqui. O que os caras dizem é que agora não somos mais “favela”. O que é ser favela agora? Muitos que estão na internet falando de favela nunca moraram num barraco de pau e nem sabem o que é isso. Eles se sentem ofendidos quando falamos para o cara comprar uma casa com piscina, um grande carro. O funk ostentação ofende por quê? Porque é um favelado com corrente de ouro, num carrão, morando nos condomínios. Estão nos vendo nos elevadores e está incomodando? Nossas bancas estão nos prédios mais nervosos da cidade, tomamos conta. Chegamos de bonde. Essa é a próxima revolução. Invadir os outros espaços. Não é perpetuar favela. A primeira coisa era ensinar o cara a não ter vergonha, agora a segunda e a terceira são dizer que ele precisa de um carro, precisa instruir seu filho.

O Racionais conseguiu se manter relevante durante esses vinte e cinco anos justamente porque foi capaz de acompanhar as mudanças do país, do discurso e da sociedade?

O Racionais se manteve relevante porque falou muito não. Vai no Rock in Rio? Não. Tim Festival? Não. Globo? Não. A gente não teve medo de dizer não, mesmo eu sendo um moleque favelado. Os caras ofereceram milhões para nós, mas levantamos e fomos embora. E, cinco minutos depois, juntávamos cinco caras para comprar um pacote de bolacha. Eu tinha vinte anos e não tinha casa para morar. Eu podia ter falado sim, mas o “não” foi essencial para nós, porque aquele não era o momento para dizer sim. As pessoas precisavam ter certeza de que havia alguém realmente do lado delas, com um discurso firme. Por isso demoramos muito tempo para tocar no Lollapalooza, por exemplo. Só que, vinte anos depois, não teve mais como segurar, principalmente com a internet. Então pensamos: “vamos fazer empresa e mandar contratar todo mundo”. Tivemos que aceitar o que nunca quisemos aceitar: o tamanho que temos.

E como vocês lidaram com isso?

Montamos a empresa, sabíamos que iam cobrar disco novo e estamos fazendo. Abrimos um pouco, porque a internet ia fazer isso de forma desordenada, como fez no começo. As pessoas disseram que perdemos muito dinheiro, mas não estávamos preparados para aquilo. Hoje estamos. Todo mundo tem uma marca, então vamos vender umas camisetas do Racionais, montar um site, um Facebook. Pronto. Não podemos mais ficar tocando para setecentos pessoas. Vamos tocar no Credicard Hall, vamos tocar nos festivais. O cara pagou, nós vamos.

Há quem diga que, por conta dessa abertura, vocês deixaram de ser “favela”, como você mesmo disse. O que você acha disso?

São pessoas que querem perpetuar favela. Eu tenho que andar rasgado para provar que eu sou da periferia? Falam que não representamos a favela, mas eu não quero nem representar mais. Estou passando esse bastão. Para representar, fui sequestrado e quase morri. Não morremos porque Deus não quis. As pessoas não sabem a responsabilidade e as coisas que passamos. O Racionais nunca se colocou nessa posição. Nos colocamos sempre como um braço, um irmão, uma força que estava do lado. Mas nunca quisemos representar representamos espontaneamente. Essas pessoas que falam, muitas vezes, não têm conhecimento nem do que é o movimento. Críticas existem, claro, eu adoro ser criticado, porque não me deixa acomodar. Alguns, se estivessem na posição do Racionais, iam pintar a unha de rosa e andar de salto. Vários no rap são assim, e são esses caras que ficam no buchicho. Temos que entender que o rap em si é um partido que evolui para frente. Eu tinha dezoito anos e não tinha nada. Hoje eu sou um empresário, tenho trinta funcionários para pagar e o Racionais viaja com vinte pessoas. Tenho outras prioridades. Com dezoito anos você tem uma mentalidade e com trinta você tem outra. Nós passamos vinte anos intolerantes. Agora somos mais tranquilos e os caras que estão do lado nem acreditam. Mas tem uma hora que você tem que entender. Mudou. Mas também há vários culpados por essa posição dos próprios fãs.

Quem são esses culpados?

Eu tenho um programa de domingo na 105 FM chamado “Balanço Rap”. Os caras da rádio continuam perpetuando músicas antigas porque dizem que os ouvintes ligam e pedem. É um público viciado, que não quer renovar e ao mesmo tempo a rádio está com medo do novo. Foi ela quem fez aquelas pessoas ouvirem aquelas músicas. Tem que tocar outras coisas, porque a maioria dos grupos de quem as pessoas pedem as músicas já nem existe mais. Eu fico louco. Estão com medo dessa geração nova, o que está acontecendo? O público foi educado pelo rádio e a rádio agora segue o público. Fica esse ciclo sem fim, sendo que a rádio tem que inovar e botar os produtos novos.

Por que isso não acontece?

Porque dentro do próprio movimento existem pessoas que estão travadas. O próprio Racionais abriu. Liberta, mano, porque se a gente segurar, o bagulho vai travar mesmo. Se o mais radical mudou, todo mundo tem que mudar. Mas não, os caras ficam com essa ideia de “deixa eu ser preto, deixa eu ser radical”. O negro tem que entender que precisa apoiar outro negro. Mas nosso movimento negro ainda é pequeno enquanto a Parada Gay junta três milhões de pessoas na Paulista. Eles reivindicam e são ouvidos. Por que não colocamos nem cem mil pretos na Paulista no dia da Consciência Negra? Porque cada organização do movimento negro está preocupada com seu próprio movimento, cada uma faz sua ação. O movimento negro, então, sou eu mesmo. Vamos parar a Paulista? Talvez aí o Dr. Dre falaria, “caramba quanto negro na Paulista, tem um dinheiro aí, vou investir nisso”. Do mesmo jeito que os gays estão conseguindo várias coisas. É assim que mostramos força. Tem que ter uma evolução mental total. Assim vamos conseguir transcender essas ideias tolas de preto, de favelado.

E como você encara essa conexão que vocês têm, além do preto e do favelado, com as pessoas nascidas do outro lado da ponte?

Essas pessoas estão atrás de coisas boas. Músicas boas, roupas boas, as melhores praias. Por isso eles são amantes de Chico Buarque, Caetano Veloso, Cazuza. E esses caras do outro lado talvez tenham sido os primeiros entendedores da causa. Hoje todo mundo ouve rap. A maioria desses caras com dezesseis, dezessete anos já estava fora do Brasil e, fora do país, eles podem ser ricos, mas continuam sendo latinos e muitas vezes vivem num meio social em que convivem com o negro. O cara que assina o cheque, hoje, mudou e ele tem mais essa linguagem e essa compreensão, porque vê o próximo. Ele sabe quem é Tupac, quem é o Notorious B.I.G. [grandes referências do rap norte-americano]. Todas essas coisas as pessoas têm que perceber. Hoje o problema está batendo na porta de cada um. No rap, houve uma resistência maior pela entrada das pessoas do lado de lá, porque não tinha ninguém preparado para fazer esse intercâmbio entre o favelado e o empresário. O favelado nunca foi até eles com medo de ser enxotado.

Vocês são quatro caras que pensam de forma diferente sobre esses assuntos. Como as decisões individuais são debatidas entre vocês?

Não existem decisões individuais no Racionais. Se eu tiver vontade de pular, eu tenho que trazer para a banca. Cada um tem uma posição dentro do grupo que funciona muito bem, e todos respeitam essa hierarquia. O Brown é o líder porque, se tiver vinte pessoas do lado de fora da van, ele vai pegar na mão de todos. O Ice Blue não vai fazer isso. O Edi Rock já está no camarim. Por isso ele é o Mano Brown. É natural, não foi nada estabelecido. Se há uma decisão, se eu quero fazer alguma coisa, eu tenho que trazer para conhecimento do grupo, porque quando o cara vai falar meu nome, o nome do Racionais vai junto. Ele está presente na minha pessoa Eu nem consigo ser mais o Paulo.

Nesses vinte e cinco anos de Racionais, que mudança você identificou no Brasil e nas periferias?

Todas. Vi uma periferia mudar. O cara ter oportunidade de ter RG, comprar um carro, uma moto, uma televisão e não ser descriminado só por ser da periferia. Vimos os moleques não terem vergonha de andar com o cabelo trançado, ou do jeito de se vestir, de falar. Mas principalmente vimos os negros se assumirem. Eu mesmo decidi deixar meu cabelo rastafári. Um dia me peguei sentado almoçando numa mesa com seis caras brancos. Só brancos no restaurante e um negão sentado numa mesa na porta do banheiro. Fui ao banheiro e passei por ele. Nos Estados Unidos, todo preto se comunica, nem que seja no olhar. Aqui, os pretos, quando se veem no lugar dos brancos, têm vergonha. Em vez de o negão olhar pra mim, olhou para o chão. Voltei do banheiro, dei uma olhada para ele, sentei na mesa e pensei: “Caralho, preciso me libertar dessas ideias”. Eu estava muito padrãozinho. Decidi deixar meu cabelo crescer, não vou ficar como aquele cara ali. Não vou ser marionete dos caras, eu quero incomodar. Você não gosta de mim? Legal, mas eu não vim para te deixar à vontade. Não podemos ficar na cultura que lutamos para quebrar. Vai onde você quiser, faz o que você quiser, incomoda mesmo. Somos o que somos. (A. M. e P. H.) 

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