Estranhas no Paraíso

Estranhas no Paraíso

Filme perturbador esse A Filha Perdida, dirigido por Maggie Gyllenhaal em exibição na Netflix. Filme feminino, feminista, que toca em uma série de questões espinhosas e incômodas, colocando à prova a ideia de “amor incondicional” das mães e a maternidade redentora para as mulheres.

O filme, adaptado do livro A filha perdida, de Elena Ferrante, traz toda uma carga de culpas e sofrimentos pesados que são “deixados de lado” socialmente para enfatizar e santificar o fato de as mulheres carregarem nas suas existências a decisão de parir ou não, serem ou não mães. Uma decisão individual cuja obrigação social se tornou pesada demais quando não é amparada pelo coletivo.

Mas o que está em questão é menos essa decisão (ter ou não ter filhos) do que as cruas consequências de sustentar e manter vínculos, decidir o momento de cortá-los ou reforça-los, seja com o marido, os filhos ou o amante. Quando separar as meninas de suas bonecas, quando exercitar certa “crueldade” pedagógica para que os vínculos se rompam e mudem as relações. As mães têm sentimentos conflituosos em relações a seus filhos e como em todas as relações amorosas há sempre algo “fora de lugar”.

Não precisa ser mãe para experimentar as sensações contraditórias da personagem Leda diante da maternidade e das duas filhinhas adoráveis que dão em felicidades e alegrias tanto quanto sugam e restringem seu corpo, sua sexualidade, seu cotidiano, sua carreira como professora. Nem sempre essa conta fecha, mas a ideia de “amor incondicional” impede que os conflitos sejam vocalizados ou expressos.

E certamente as mães (e pais) terão mais mil histórias como essa para contar: o amor não é incompatível com as pequenas crueldades maternas e paternas que atravessam as relações e os vínculos familiares.

Como filhas e filhos basta cada um de nós “baixar” algumas memórias felizes-dolorosas para entrar no filme: quem nunca viu os olhos de desespero, cansaço, resignação de suas mães? Eu vi muitas vezes, mas não conseguia sequer entender, e só bem mais tarde, já adulta, pude elaborar retrospectivamente algumas das questões que o filme A Filha Perdida traz e que assisti como um filme de horror psicológico, misterioso, banal, cruel e real.

Quando minha mãe morreu em 2020 lembrei de dramas maternos com cada um dos seus 6 filhos, e comigo mesmo, que dariam uma ópera, um melodrama mexicano, uma comédia como a série A Grande Família ou um filme de terror: pequenos acontecimentos que nos formam e forjam.

O filme vai montando um quebra-cabeças com grande sutileza e um ir e vir de flashbacks. E o que parece tão singular e individual se torna uma dor coletiva. A personagem de Leda (a magistral atriz Olivia Colman) olha uma jovem mulher, também de férias no mesmo balneário na Grécia, e se vê em um espelho partido: Nina (Dakota Johnson), pura juventude e desejo, vive uma maternidade exaustiva em uma prisão familiar.

A filha pequena demanda Nina incessantemente, o marido ameaçador e violento a ronda, uma família nova-iorquina, barulhenta, invasiva, com suas dinâmicas cristalizadas como tantas outras. Em comum, Leda e Nina têm a coragem de viver seus desejos, não sem medos e culpas. Mulheres debaixo do manto pesado da maternidade e do casamento, que tem que criar linhas de fuga.

E que atrizes maravilhosas, o rosto de Olivia Colman, de Jessie Buckley e Dakota Johnson são extraordinários e refletem como se passa da leveza ao abismo em frações de segundos.

A questão mais interessante do filme ao meu ver é se perguntar por que as mulheres que decidem ter filhos têm que encarar uma função – o cuidado, a maternagem, a sustentabilidade das vidas – como um fardo/gozo individual e não como uma função social e coletiva? É bonito demais, é transcendental, é o maior amor do mundo etc. etc. Sim, mas é também, em uma sociedade patriarcal, assimétrica, misógina, de abandono das mulheres, de pais ausentes, de filhos eternamente demandantes é pesado demais, opressor demais etc.

Vi alguns comentários, de homens e mulheres, chateados com a personagem de Leda, essa mãe que deixa por 3 anos as duas filhas pequenas com o pai, até finalmente voltar e se reconciliar com a maternidade, até refazer os vínculos com as filhas. A decepção por a personagem quebrar a crença tão cara à nossa sociedade, que a maternidade é mágica, “instintiva”, “natural”, “vocacional” e tem que estar acima de qualquer outro sofrimento.

O fato é que no Brasil e no mundo o número de mulheres que decidem não ter filhos só cresce. O vínculo mãe-filhos é um vínculo carregado demais de todas as expectativas e responsabilidades do mundo: reproduzir, produzir e sustentar vidas. Ou seja, a maternidade nas condições atuais precisa se reinventar e ser encarada para além de uma aventura individual, como responsabilidade coletiva com a expansão das redes de apoio e de políticas públicas.

Afinal de contas, se não tiverem umas mulheres loucas querendo parir, em um sistema tão assimétrico e perverso para as mulheres, a sociedade terá que “pedir” e dar condições para que as mulheres tenham filhos, para que mais cuidadores possam adotar crianças, gerir e cuidar da vida.

Apoiar com auxilio financeiro, psicológico e subjetivo essa aventura da maternagem, dos cuidadores e cuidadoras (de crianças, de jovens, de idosos etc.) que sempre foi vital para nossa espécie. Essa é uma questão coletiva, para além das mulheres.

Fiquei esperando o momento que Leda iria encarar uma aventura sexual, afinal de contas a professora vai de férias para a Grécia, aberta aos acasos, ao sol, ao mar, é espirituosa, curiosa e, apesar de seus dramas, está vivíssima.

Mas o filme acaba sendo o espelho de certo etarismo que considera que uma mulher de 48 anos está fora da área de cobertura dos desejos, remoendo fantasmas do passado. A personagem de Leda é constantemente confrontada com personagens que se espantam pela sua idade e autonomia, um clichê que o próprio cinema contemporâneo e filmes dirigidos por mulheres podem ajudar a explodir.

A montagem de A Filha Perdida faz com que o espectador sempre saiba menos ou pouco, sempre fique em dúvida se está realmente entendendo o que vê e ouve, exatamente como as personagens. Um atordoamento necessário, sobrepondo camadas do presente e do passado, fazendo que co-existam em uma trama densa, um labirinto claustrofóbico de tempos em plena paisagem solar e grega.

A maternidade foi apresentada como a mais completa tradução da plenitude para as mulheres, e é assim que muitas a vivem, mas elas também morderam a maçã proibida da autonomia e da liberdade e podem construir outros paraísos.

 

Ivana Bentes é pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.


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