performance – cavalo – meio – rádio

Edição do mês
performance – cavalo – meio – rádio
(Foto: Glória Flugel/Acervo MUI.TA)

 

Uma proposta de escuta

A música pode afetar partes distintas de nosso cérebro como nenhuma outra manifestação artística. Através dela mobilizamos afetos, memórias, revivemos sentimentos bons e ruins. As músicas que nos rodeiam nos dizem muito sobre quem somos, o mundo em que vivemos e nosso meio social, mas nem sempre temos controle sobre o que escutamos e sobre nossas preferências auditivas, um mercado escolhe e escuta por nós. Portanto, ter uma escuta ativa é uma forma de afirmar nossa humanidade num mundo de objetificação em que somos apenas números.

No que se refere à obra de Itamar Assumpção, músico ligado à movimentação cultural que ficou conhecida como Vanguarda Paulista, não há nada que eu possa dizer que não seja melhor compreendido pela escuta atenta de suas músicas. Por isso, antes de ler, ouça.

Nesse momento em que vivemos relações extremamente mediadas, atravessadas por interferências, ruído branco, picotamentos e diálogos em áudio acelerado em 2x, a obra de Itamar Assumpção exige presença, nada mais que isso.

Track 01: Nego Dito

Se chamar a polícia eu viro uma
onça, eu quero matar
a boca espuma de ódio.
Eu vou cortar tua cara, vou
retalhá-la com navalha!

As frases acima caberiam na boca de qualquer pessoa negra do Brasil. Da minha já espumaram algumas vezes, confesso.

Mas faça você, prezadíssima leitora, o exercício de imaginar essas palavras ditas especificamente por um homem de um metro e noventa, negro, retinto, com uma feição séria, desafiadora e com olhos fixos na câmera ou no espectador. Esse homem é Nego Dito, apelido do perigoso marginal Benedito João dos Santos Silva Beleléu, a mais famosa criação de Itamar Assumpção, que, por meio dessa máscara-personagem, consegue dizer o que qualquer pessoa prudente jamais diria fora do espaço protegido pela suspensão da lógica social permitida pela performance e pela teatralidade.

Essas palavras podem ser lidas como um ensejo de resposta à violência estatal, simbólica e real, que por séculos vem sendo o pano de fundo da imagem de um Brasil pacífico e acolhedor, construída sobre o chão encharcado de sangue negro. A sanha de Beleléu é sintoma nacional e corre solta em São Paulo à midnight ou ao meio-dia.

Sintetizar a raiva, a dor, a revolta, a injustiça, o medo do futuro, a beleza extrema e a simplicidade absoluta eram habilidades que Itamar Assumpção tinha de sobra, num fazer de músico-ourives, cirúrgico, em que cada detalhe do arranjo, da letra, cada entoação da voz, cada trejeito no palco tinha significado. Nada era em vão.

Beleléu leléu eu, disco no qual Nego Dito pela primeira vez se manifesta, é um dos álbuns mais icônicos da música brasileira. Conceitual, a obra carrega quase todos os elementos que o músico aprofundaria ao longo de sua carreira: a teatralidade, a poética, o ritmo, as camadas de significado, a importância da oralidade, da palavra, o papel do contrabaixo e dos movimentos cíclicos. Um inegável trabalho de cientista musical, de um douto que desenvolveu metodologia própria e única.

Poderíamos ainda acrescentar ao rol das múltiplas capacidades artísticas de Itamar Assumpção a alcunha de poeta, mas isso ele – ironicamente – não era. “Grande Poeta-não” foi o apelido que carinhosamente recebeu e que resume um pouco de sua complexidade. Traquinas, positivando o NÃO – que ouviu diversas vezes em sua trajetória de músico independente – ao mesmo tempo que negativava o SIM. No país da escravatura, quem sempre concorda, perece.

“Entre o sim e o não, existe um vão.”

Track 02: Bom crioulo

Itamar Assumpção tinha uma relação complexa com o mercado de discos. Ao mesmo tempo que queria se fazer ouvido, televisionado e transmitido radiofonicamente, queria manter a propriedade sobre sua obra e era pouco afeito a concessões estéticas que o desrespeitassem como artista. No documentário Daquele instante em diante (2011), dirigido por Rogério Velloso, Arrigo Barnabé – companheiro de caminhada de Itamar – conta que, ao apresentar seu trabalho nas gravadoras, Itamar quase sempre tinha sua obra ignorada e era encorajado a gravar discos “de preto”: pontos de umbanda ou samba. De fato, ele gravou pontos e sambas, mas totalmente à revelia do que era esperado.

Em 20 de novembro de 1995 vinha a público o álbum Ataulfo Alves por Itamar Assumpção: pra sempre agora, fruto de um estudo intenso da obra do sambista mineiro. Nenhuma faixa nesse disco é de autoria de Itamar Assumpção, mas absolutamente todas têm sua marca indelével. Redesenhando arranjos, desconstruindo significados e fazendo inserções e comentários nas letras, o disco apresenta uma miscelânea de ritmos afrodiaspóricos que vão do jazz ao funk, passando pelo reggae e pelo rock, sem se apegar a nenhuma dessas linguagens. À tentativa de estereotipação, Itamar respondeu com fina ironia, subvertendo e brincando com o ritmo que é símbolo da nação e da modernização do país.

Itamar em show do disco “Ataulfo Alves por Itamar Assumpção: pra sempre agora, de 1996 (Foto: Mônica Bento/Acervo MUI.TA)

Na primeira metade do século 20, quando a tecnologia permitiu que os sons fossem gravados com mais facilidade e qualidade, quando o rádio entrava na casa de cada vez mais pessoas, quando discutíamos sobre que tipo de país seríamos, o Estado Novo de Getúlio Vargas tentou embranquecer e higienizar o samba para que ele pudesse – só assim – tornar-se um símbolo do Brasil moderno.

Anos depois, Itamar vai lá e escurece.

“Bate, crioulo, bate!”

Track 03: Fon Fin Fan Fin Fun

Quando desembarquei em São Paulo pela primeira vez, vivi um misto de surpresa, encanto e decepção. Não era costumeiro em minha cidade interiorana encontrar pessoas que viviam, comiam e pediam pelas ruas. Não que eu desconhecesse a pobreza, mas porque ela se manifesta de formas diferentes nas cidades menores. São Paulo é tudo muito, excesso e falta; e eu era só uma jovem caipira assustada.

Essa relação com a capital paulista talvez seja um dos aspectos que mais me conectam com a obra de Itamar Assumpção e sua caipirice negra ultramoderna e experimental. É possível sentir o deslumbre do músico ao desbravar a cidade na década de 1980, vivenciar seus embalos, seus giros, e acompanhar a relação de amor e ódio que ele desenvolveu com esse espaço cheio desigualdades e belezas escondidas.

Itamar Assumpção nasceu na cidade de Tietê, no interior de São Paulo, cresceu ouvindo de longe os tambores dos batuques de umbigada, suas fórmulas rítmicas, seus sotaques, e acabou por incorporar muito dessas sonoridades em seu fazer musical, para além das temáticas tão comuns à música caipira.

“Fon Fin Fan Fin Fun” é, na verdade, uma onomatopeia, o som que emite a sanfona, um samba sertanejo cujo cenário onírico e denso é contraposto à leveza da letra, que relembra grandes tópicos da canção popular: o amor, a natureza, a saudade. A sanfona torta e os improvisos desfilam mil conflitos e deixam pouco espaço para binarismos reducionistas. Nessa música, acredito, muitos viventes de São Paulo se reconhecem.

A “dura poesia concreta” das esquinas dessa cidade verteu-se em diversas faixas presentes em diferentes álbuns da discografia de Itamar Assumpção. Seus discos podem também ser lidos como geografias audíveis onde cabe tudo, a Liberdade preta dos haicais, o terror dos apagões na Consolação, encontros furtivos na Paulista, um lugar para descansar na Penha ou o sufoco dos dias secos passando pela Marginal poluída.

“Venha até São Paulo ver o que é bom pra tosse!”

Track 04: Prezadíssimos ouvintes

Zona Oeste paulistana, década de 1980. O clima geral mesclava esperança e medo. O Brasil vivia um período de redemocratização em que a juventude estava sedenta de vida e as diretas já botavam na rua o bloco do desejo de finalmente encerrar o sombrio período da ditadura militar. Vila Madalena e Pinheiros pulsavam criatividade com estudantes e artistas transbordando por bares baratos. Ali, ao lado da praça Benedito Calixto, surgiu o Lira Paulistana, um porão-teatro precário que recebeu artistas hoje consagrados na cultura brasileira, mas nem sempre devidamente lembrados. Naquele espaço, Itamar Assumpção estreou com a banda Isca de Polícia e fez o lançamento de seu primeiro disco, também o primeiro produzido pelo selo independente que recebeu – justamente – o nome do teatro: Lira Paulistana.

A cena musical dita “independente” crescia como um âmbito possível para arriscar o novo, e era permitido brotar uma proposta artística como a de Itamar Assumpção, borrando o entendimento de onde começa o palco, onde termina o estúdio. Disco-espetáculo, faixa-performance. Do precário surgia o experimento.

Infelizmente, a aventura do Lira durou pouco e em 1986 o teatro fechou suas portas, anunciando as grandes mudanças pelas quais passaria a indústria e o mercado fonográfico brasileiro, cada vez mais segmentado e fechado a inovações, priorizando o lucro e amenizando os riscos.

Itamar Assumpção assinou a autoria de 12 discos, 10 lançados em vida e 2 póstumos, organizados por sua família e músicos parceiros após sua passagem, que ocorreu em 2003. A grande maioria dos discos foi lançada por gravadoras independentes, pequenas ou mesmo às próprias custas.

À espera por ser desbravada, mastigada, sentida, esmiuçada em seus detalhes, sua obra é prato cheio para quem já aceitou que a arte – em conexão intrínseca com a vida – só pode mesmo florescer à margem. Aproveita que chegou até aqui e faz um mergulho na discografia toda. Afinal de contas, será que esses microfones sempre funcionarão?

 

Rosa Couto, doutora em História pela UNESP – Franca, com estágio de doutorado na NYU. Participou da curadoria do Museu Virtual Itamar Assumpção. É educadora no Museu Afro Brasil.


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