Especial Paulo Arantes | Depoimentos de José Miguel Wisnik, Michael Löwy, Olgária Matos e outros sobre o filósofo

Especial Paulo Arantes | Depoimentos de José Miguel Wisnik, Michael Löwy, Olgária Matos e outros sobre o filósofo
Paulo Arantes continua distribuindo Eros em tempos de apocalipse, sem a solução “sedentária e preguiçosa”, de alguma revelação final (Foto: Marcus Steinmeyer)

 

A edição 272 da Revista Cult convidou, para compor o especial “Paulo Arantes”, algumas pessoas que conviveram com o filósofo para darem um depoimento sobre ele.

O resultado é uma manifestação de afeto. Os textos de José Miguel Wisnik, Priscila Figueiredo, Jade Percassi, Michael Löwy, Olgária Matos, Denílson Soares Cordeiro e Eduardo Garcia C. do Amaral abrem a série de depoimentos exclusivos do site.

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Sensatez

José Miguel Wisnik
Pianista, compositor, ensaísta e professor aposentado da USP

Inspirado numa ideia que Bento Prado Jr. aplicava ao seu time, o Palmeiras, Paulo Arantes diz, com mais propriedade, que quem viu jogar o Santos Futebol Clube de Pelé, e mesmo antes dele, nos anos 1950 e 1960, pôde contemplar a aparição da Ideia platônica em pleno mundo sublunar, tendo descortinado, assim, o absoluto. A boutade, figura retórica relevante no seu estilo, e que não se confunde com a ironia simples, é uma afirmação séria que disfarça maliciosamente uma piada, mas também, e ao mesmo tempo, uma piada que esconde uma afirmação séria. Paulo maneja o recurso com especial prazer e, geralmente, com efeitos cáusticos. Mas, neste caso, o aparente exagero testemunha a excepcionalidade de uma experiência.

Aos nativos da Baixada Santista, naqueles tempos áureos do futebol, era dado conviver cotidianamente com uma arte popular em sua quintessência, que tocava a forma da perfeição, ao mesmo tempo que se podia praticá-la informal e democraticamente no espaço da praia, como se suspensas as distâncias de classe. Ali, com a bola em jogo junto à linha do mar, o sentimento utópico era como se tivéssemos chegado à impossível linha do horizonte (para brincar levemente, aqui, com a carregada densidade dessa palavra, sobre a qual ele discorreu magistralmente em uma live recente sobre a ideia de horizonte e suas implicações no Brasil). Em momentos raros do nosso ofício, diz ele também em outra parte, quando uma aula ou uma palestra parece estar fluindo como se por si mesma, é algo daquela “plenitude” futebolística, daquela “beatitude” e daquela “felicidade indescritível”, segundo palavras dele mesmo, que parece retornar.

Nos divertimos, ora eu, ora ele, com o paradoxo de que, tendo contemplado, ambos, o absoluto na Vila Belmiro, isso o terá feito pessimista quanto ao resto, enquanto eu sou tido por otimista incorrigível – ele o corrosivo contumaz, eu querendo ver sentido em tudo. Talvez sejam danos irreversíveis e inevitáveis, afinal, para quem foi exposto continuadamente, na primeira juventude, ao absoluto. Em Veneno remédio – O futebol e o Brasil, eu disse que a sua visão do Brasil como “vanguarda do pior”, uma espécie de “país do futuro” com sinal trocado, não deixava de soar como um “ufanismo às avessas”, enunciado com “júbilo hipercrítico”. Hoje, com a fratura brasileira agravada ou tipificada pelo bolsonarismo no poder, muito do seu radicalismo nada modesto me parece beirar simplesmente a sensatez.


Apreender a máquina do mundo atual

Priscila Loyde G. Figueiredo
Professora no departamento de letras clássicas e vernáculas da USP

O Paulo Arantes editor é continuação natural do Paulo ensaísta e do Paulo coordenador dos Seminários das Quartas. Esses Paulos todos vêm assimilando proteicamente (isto é, no sentido do deus Proteu mesmo) o melhor das pesquisas e teorias críticas produzidas no país e fora dele, daí ser tão vital para seu trabalho como autor e editor o convívio com jovens pesquisadores de várias áreas das Humanidades, aí incluída a Economia, e de várias partes do país, uns tantos deles ligados a movimentos sociais. Muitos, mestres ou doutores recentes, vêm expor seu trabalho nos seminários, se beneficiar de um colóquio nada esotérico, conquanto exigente na reflexão. A fala final do professor, sentado em geral a um canto da sala, em silêncio ao longo de toda a exposição e discussão subsequente —em silêncio, mas expressivamente atento, às vezes com ar divertido quando observa a turma se estapear pra fazer perguntas—, é, sempre, mais que esperada. Começando como quem não quer nada, a voz baixinha (o que me lembra que ele já foi chamado por alunos de “João Gilberto da Filosofia”, lá no início de seu magistério), retoma uma observação ali, outra acolá, pega uma sugestão no ar, vai esquentando, esquentando, harmonizando uma tênue linha melódica e eis que… eis que “tira o canto novo”, como se diria de um improvisador de música popular. Aliás… Mário de Andrade identificou em Chico Antônio, cantador de emboladas do Rio Grande do Norte, a exemplaridade do processo de improviso, constituído de repetição da linha tradicional, assimilada e simplificada, e de diferença, esta produzida por meio de variações cada vez mais autorais, que resultavam num verdadeiro “canto hot”… Voltando ao Paulo: a voz inicialmente baixa vai se elevando, a fala se enriquece de relações e associações, e então se desenha um canto inteiramente novo — e não apriorístico. O fato de ter ficado em silêncio todo o tempo até então não fora estratégia para surpreender a plateia com uma grande carta na manga depois de ver o circo pegar fogo. Sua reflexão tem uns tantos fios daquelas cinco horas transcorridas…

Como é sabido desde o trabalho de Gilda de Mello e Souza, a estrutura de Macunaíma funde dois processos compositivos fundamentais do populário musical, analisados por Mário de Andrade, a suíte e a variação, bastante discutida por ele justamente a propósito das criações do genial emboladeiro nordestino. Como estas, diz a crítica, a rapsódia seria também parasitária e inventiva. São dois adjetivos que eu aplicaria à síntese do Paulo a que me referi e ao seu modo de ser como intelectual propriamente, que foi armando com os anos uma verdadeira força produtiva para com isso obter o que nenhuma teoria sozinha pode hoje nos dar: uma explicação abrangente da realidade.

O palco de onde o intelectual “periférico” agora fala se alargou — o planeta globalizado, o colapso da modernização, a “brasilianização do mundo” e o “fim da História” romperam cercamentos físicos e espirituais, mediações foram suprimidas, e, num movimento vertiginoso, ele nos mostra como que o espetáculo da cena mundial, a máquina do mundo atual, ou, para usar uma expressão de Hegel (cuja filosofia da história foi não por acaso seu tema de doutorado), “o espírito do mundo” (Weltgeist). Toda essa abordagem, totalizante, não poderia se dar sem uma exposição, oral e escrita, muito peculiar, que de modo breve poderíamos caracterizar como dotada de extremo dinamismo, uma espécie de lepidez ou aceleração, necessária para a absorção fáustica de bibliografias contemporâneas, nacionais e internacionais, e para o salto reflexivo dado a partir dessa absorção (o movimento é, como dissemos, inventivo e parasitário todo o tempo, até na forma de fazer uma paráfrase). Ligado a isso, mencione-se o espírito de síntese (nada contrário à proverbial longue durée de suas explicações), a tendência irônica e auto-irônica (sente-se a batida aí da prosa e do chiste modernista, com suas ramificações até o grupo de Clima, além de certa dicção francesa), as hipérboles divinatórias, o ouvido muito sensível ao rasto de danificação social e moral que palavras ou constelação de palavras podem sugerir (nesse sentido, é um deleite vê-lo evocar, usar e estraçalhar com o seu sarcasmo o jargão do mundo corporativo, entre muitos outros, inclusive o acadêmico), articulações iluminadoras, nem sempre fáceis de acompanhar e, por fim, digressões constantes, que nos remetem a Adão e Eva — como Pandora o fez com Brás Cubas, e este, posto no alto de uma montanha, pôde assistir ao desfilar dos séculos. Adão e Eva pode ser o 1848 europeu. Pode ser a leitura que Roberto Schwarz fez de Machado de Assis (“a.C., d.C.”, ele me disse uma vez). Pode ser o Holocausto nazista. Ou o Golpe Militar de 1964, ou, ou…

O fato é que tudo que apontei, combinado, resulta numa elocução ao mesmo tempo escarpada e fluente, extremamente convidativa, conjunção que é um paradoxo — ou vem a constituir também paradoxo um intelectual cuja linguagem não regateia e faz jus à sofisticação de seu pensamento ser tão ouvido e lido por jovens, centros acadêmicos, militantes sociais, que em nada parecem incomodados com esse “aristocratismo”? Só esse ponto merecia uma análise por si só, e sobre ele tendências anti-intelectuais no campo da esquerda deveriam começar a refletir.


Companheiro

Jade Percassi
Doutora em Educação pela USP e educadora popular em áreas de assentamentos e acampamentos de reforma agrária

Paulo esteve presente na vida das pessoas da minha geração de tantas maneiras, e a todas nós tocou com o tal sentimento da dialética. Através do assombro com suas falas densas, por vezes, indecifráveis, ou com intervenções cirúrgicas nos espaços de formação dos movimentos sociais e coletivos artísticos por onde andou, sou testemunha de sua capacidade de debater sobre as ideias em qualquer lugar, com interlocutores dos mais imprevisíveis. Um episódio anedótico em particular rendeu-lhe a fama de ser “mais simpático como avô do que como companheiro”, com a qual seguiu lidando de forma muito bem humorada. Na ocasião, questionado por uma criança sobre a pertinência da dureza de seu discurso acerca do trabalho de um grupo de teatro que acabara de comentar, o professor parou, escutou, refletiu, argumentou, sem esboçar qualquer traço de desdém, respeitando aquele fiapo de gente, retribuindo-lhe genuinamente a atenção. Defendeu-se com a premissa de que sua melhor contribuição, estando entre companheiros, era apontar as falhas e os aspectos que poderiam ser melhorados. Ficamos com a lição de casa: busca radical pela essência da transformação, no meio do redemoinho.


Vocação subversiva

Michael Löwy
Sociólogo e diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS)

Não sou a pessoa mais indicada para falar de Paulo Arantes. Para começar, não sou filósofo:  estudei na USP (Maria Antônia!) mas foi em Ciências Sociais; nunca frequentei o famoso Departamento de Filosofia.  Por outro lado, é verdade que a obra do Paulo é uma tentativa ousada e radical de superar os limites da filosofia como disciplina acadêmica. Algumas de suas obras, como por exemplo o já “clássico” Departamento Francês de Ultramar, parecem se enquadrar no campo da história da filosofia; mas é uma aparência enganosa: seus objetivos são mais ambiciosos e menos ortodoxos.

Na verdade, os principais escritos do Paulo são a expressão (Ausdruck : um dos termos favoritos de Walter Benjamin) de uma visão crítica da realidade social e política, associando filosofia, teoria política, antropologia e sociologia.  São obras com vocação autenticamente subversiva,  no sentido nobre e profundo da palavra.

Por estas e outras razões,  Paulo Arantes é uma figura singular e sem equivalente no panorama intelectual brasileiro.


Atrás dos óculos e do bigode

Olgária Matos
Doutora em Filosofia pela USP, professora titular aposentada da mesma instituição e professora titular da Unifesp

Paulo Arantes, meu jovem professor em 1968, que vi, de repente, tão primeiro, tímido, só, sentado em um dos bancos do prédio da USP na Rua Maria Antônia, atento à hora da aula. “Tem poucos, raros amigos. O homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus por que me abandonaste. Se sabias que eu não era Deus”. Era um deus sim, que narrava Nietzsche numa voz confidencial, lendo discretamente seus papéis,sempre uma obra-prima! Sobre o normal e o patológico citava Bichat como uma máxima: “a morte é a verdade da vida patológica”. De professor a amigo, de amigo a mais que professor, faz da paideia um brincar como coisa séria,de finíssimo humor. Daí poder tratar do Novo Tempo do mundo, o da “degradação filosófica da espera” das populações mundiais em perpétuo exílio. Ou confinadas no espaço dos campos de refugiados e no tempo que parou e, simultaneamente, se acelerou. Paulo continua distribuindo Eros em tempos de apocalipse, sem a solução “sedentária e preguiçosa”, de alguma revelação final. Paulo dos chopps da rua Henrique Schaumann também! Apolo e Dioniso, Péricles e Leônidas juntos, diria Walter Benjamin!


Uma filosofia vívida e provocativa

Denílson Soares Cordeiro
Doutor em Filosofia pela USP e professor da Unifesp

Eu continuava assistindo às aulas do primeiro ano, apesar de já ter sido aprovado, com o intuito de aprofundar um pouco mais a compreensão das aulas de Paulo Arantes. A disciplina começou, a partir de 1992, com uma afirmação mais ou menos assim: o que vamos estudar neste semestre vai, com sorte, nos ajudar a ler melhor os cadernos de cultura da imprensa. Os dois principais filósofos tematizados no curso foram Bento Prado Jr. e Oswaldo Porchat. E, surpresa, alguns dos textos estavam publicados somente em jornais. Era surpresa, mas, no meu caso, misturada com um certo regozijo de neófito que descobria um mundo novo nos estudos filosóficos e esperava ansioso pelo próximo capítulo. A aula retraçava os pontos principais dos argumentos de cada texto e por uma espécie de campo magnético estabelecido por uma linguagem torrencial e cheia de circunvoluções e referências, às vezes cifradas, outras menos, peculiar e surpreendentemente concatenada era a volta, quase que como um refrão, de um tema que, na contramão, assepticamente a propedêutica em voga no departamento solicitava deixar, por enquanto e estrategicamente, entre parênteses: o Brasil. O assunto surgia com a sofisticação e argúcia de quem vai ao ponto e não volta ao assunto porque, na verdade, nunca saiu dele. A última aula teve a presença dos próprios filósofos em pauta. Bento à esquerda e Porchat à direita do mediador. “Prefácio a uma filosofia”, “Por que rir da filosofia?”; “O conflito das filosofias”, “Por que filósofo?” Uma tremenda e inesquecível cena de filosofia vívida e provocativa.


Endemoniados além do método

Eduardo Garcia C. do Amaral
Formato em Filosofia, é professor da rede estadual de São Paulo e militante político

Naquele fim de século (e dali já se vão mais de 25 anos), não era raro que estudantes de Filosofia nos embaraçássemos muito com as técnicas escolares (nossa “lição de casa”) tão impregnadas nas rotinas e nos rigores do ensino que se fazia na Filosofia da USP. A publicação de Um departamento francês de ultramar em 1994 colocava nossa experiência acadêmica, um tanto estéril em relação aos assuntos do “aqui e agora”, sob outra visada. A história meio provinciana, de um bonde da filosofia que havia muito já não circulava mais, permitia que melhor nos situássemos em nossos afazeres e, por outro lado – e é o que mais importa – falava à nossa imaginação, ao recuperar da memória coletiva a simpática figura de Jean Maugüé – professor das primeiras turmas do curso, entre 1935 e 1944 – de quem a desenvoltura desde a sala de aula, testemunhada por seus alunos, inspirara o que de melhor surgiu àquela época como crítica da cultura. Guardadas as devidas proporções, reencontrávamos o mesmo demônio soprando aos ouvidos quando das aulas pouco escolares de um certo professor Arantes.

 


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