Escuta, Zé-Todo-Mundo
(Foto: Bob Sousa)
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Zé, quando eu estive na sua casa no dia 18 de março deste ano, um sábado, à tarde, para entrevistar você para a edição de abril da Cult, eu lhe disse que gostaria de acompanhar de perto a criação do seu novo espetáculo, A queda do céu, como eu já tinha feito com O banquete e Mistérios gozosos. Você concordou e eu me animei todo porque escrever sobre o seu teatro é confrontar a nossa própria escrita, sempre insipiente, muito aquém da expressão da sua sabedoria. Eu já havia estado na sua casa em 2016 para convidá-lo a posar para a capa da Cult de julho daquele ano. Você generosamente aceitou o convite, e o Bob Sousa fez uma foto incrível no Oficina, com você liderando um grupo de artistas e de pensadores que se opunham publicamente ao desmonte da cultura no país na ocasião.
Parecia uma missão a qual você nunca fugiu: quando o país se esfarelava, você deglutia os farelos e propunha uma nova nutrição para as coisas. Na quarta-feira, dia 28 de junho último, estive com você no Sesc Pompeia, acompanhando a leitura de duas cenas de A queda do céu. Você abriu uma roda de conversa e quis ouvir o que aquelas cerca de vinte pessoas tínhamos a dizer sobre o encontro. Você ouviu muito e falou pouco, mas fez questão de enfatizar que A queda do céu não era um trabalho “do Zé Celso”, era um trabalho do Oficina. Chegou até mesmo a se incomodar com essa excessiva personalização, lembrando que o Oficina é um grupo, e que tudo lá se resolve no coletivo. Eu falei para o Roderick que iria ver também a leitura seguinte, marcada para a segunda-feira dia 10 de julho no Sesc Paulista. Não deu tempo…
Será que não deu mesmo, Zé? Tal como Exu, você sempre proclamou o direito ao avesso e está no través de tudo. E já é a pura transversal do tempo. A gente foi aprendendo que você e Artaud são dois momos heresiarcas, e se surpreendeu com o fato de em Para dar um fim no juízo de Deus você presidir ao ato da sua própria autópsia! Ali, Artaud-Momo se convertia em Zé Celso-Pharmakós, ambos demiurgos obstinados em fazer a linguagem do teatro copular com a linguagem da vida. A gente aprendeu também que o Teatro (no) Oficina é sempre uma coisa viva, embora não se furte a denunciar o que nos amortalha. E alegre, ainda que não escamoteie as nossas dores. E sagrado, a despeito de chocar somente os que não são dignos de glória. Um teatro gozoso pela via da graça e do prazer. “Com Eros é à esquerda.”
Ao contrariar o hábito de encenar um Godot que sempre renovará a promessa de sua vinda, a gente aprendeu que você clamava pela nossa emancipação. Utopia, esperança e poesia não aprisionam o espírito. E a seiva poética do Oficina continua lá, na Cesalpina plantada pela Lina Bo Bardi, que não somente dizia respeito na encenação à “arvore desfolhada” do texto do Beckett, mas também parecia contradizê-la. O que seria do planeta sem árvores? O que seria do Oficina sem a Cesalpina? O que seríamos nós sem as coisas que urgem ser contrariadas?
Então, Zé, vamos contrariar o que aconteceu na manhã de ontem em São Paulo: você não morreu e está atravessando a experiência deste instante-já. Existindo (ex-istere, isto é, arrebentar) como pura explosão. Como o Rebento do Gil: “a arte, a criação e o seu momento”. Como a voz da Elis, que explode “como um trovão dentro da mata”. Com O banquete, eu aprendi que o amor e a amizade são as formas fundamentais que dão base à convivência humana, esteja uma comunidade passando por uma fase de equilibrada alegria, esteja atravessando ela um momento de graves e dramáticas cisões. Zé, você foi o artista de teatro que eu mais amei na vida. E de que outras coisas essenciais fala a arte da cena senão da amorosidade que há em tudo?
Abaixo, confira algumas críticas publicadas na coluna Cena contemporânea sobre peças montadas por Zé Celso e o Teatro Oficina:
Para dar um fim no juízo de deus
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.