Com Eros e à esquerda

Com Eros e à esquerda
Zé Celso em cenas de O banquete (Foto Marília Halla /Divulgação)

 

ano de 2015 está transcorrendo de modo muito auspicioso para Zé Celso Martinez Corrêa e a Associação Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Depois de terem vencido, na categoria teatro, o Prêmio Governador do Estado Para a Cultura 2014, com a Odisseia Cacildas – que propôs um mergulho dionisíaco na vida e obra da “atriz matriz” – e de terem cumprido uma nova (e bastante concorrida) temporada de Pra dar um fim no juízo de Deus, de Antonin Artaud, o diretor e a companhia se lançam agora à nova encenação de Um banquete de gala orgiástico!, uma recriação do clássico diálogo de Platão sobre o amor feita por Zé Celso sob a forma de inspiradíssimos versos musicados.

Montado a convite do Festival de Zagreb, na Croácia, em junho de 2009, o espetáculo – que, além de ter ficado em cartaz em São Paulo, passou, no ano seguinte, por várias capitais brasileiras no projeto “Dionisíacas em Viagem” –, traz para a cena um célebre grupo de personagens históricos e de entidades míticas, reunidos em uma grande festa da qual o público também é convidado a participar. Na adaptação do Oficina, Agatão, grande ator grego, acaba de encenar as Bacantes e recebe para um banquete em sua casa um grupo de convidados muito especiais, dentre eles, o filósofo Sócrates, o comediógrafo Aristófanes, a sacerdotisa Diotima, o médico Erixímaco, o aspirante a filósofo Fedro, o general Alcebíades e Pausânias, de quem não se sabe muita coisa além do fato de que, talvez, tenha sido discípulo do sofista Pródico. Ao lado deles, entes divinos como Orpheu, Eurídice, Zeus, Jesus e Iemanjá também participam do festejo.

É notória a capacidade que Zé Celso Martinez Corrêa tem para fazer o teatro dialogar com a sociedade brasileira sob o signo de um “aqui e agora” sempre potente e agudamente provocador. Em tempos nos quais o exercício da consciência política tem se convertido em amplo leque de demonstração de ódio explícito e velada violência, manifestados em ágoras as mais diversas, sejam elas concretas, sejam virtuais, um dos mais importantes homens do teatro e da cultura brasileira, ainda em franca atividade – para o deleite de nossa sensibilidade e o desfrute de nossa inteligência –, empenha toda sua energia criativa em recriar um texto que trata da alegria da convivência humana e do combustível fundamental para movê-la: o amor.

Politicidade sensível

Escrito entre 385 e 370 a.C., O banquete é considerado um dos mais belos diálogos de Platão (e um dos mais simples também), obras por meio das quais o fundador da Academia ateniense procurou preservar a memória socrática. “… o Sócrates dos diálogos platônicos torna-se centro de uma companhia fantástica de seres superiores cuja reunião máxima, cheia de alegria sublime, é O simpósio”, afirma Otto Maria Carpeaux em sua monumental História da literatura ocidental, completando em seguida: “… é uma noite de ebriedade patética; e durante a discussão desenfreada surge o mito de Eros, explicação da atração física e espiritual entre as criaturas humanas. Ao amanhecer, entra Alcebíades, e com ele a realidade de Atenas, associando-se ao banquete filosófico. Quer dizer, o Eros que está nas regiões ‘baixas’ do corpo e igualmente no céu da especulação filosófica, o Eros também seria a nova força de ligação entre os cidadãos, o novo mito da Cidade. Desde então, Platão abandona os abismos do seu inferno de sofistas e as prisões do purgatório das almas, em que Sócrates sofreu, para subir ao paraíso de sua mitologia”.

Aproveitando-se das muitas indicações dramáticas presentes no original grego (ao contrário de alguns diálogos platônicos, eminentemente discursivos, O banquete apresenta uma potencialidade cênica viva e pulsante), Zé Celso instaura no Oficina, uma vez mais, aquela fascinante atmosfera de teatralidade lúdica e lúbrica vazada em um arrematado tom de politicidade sensível, de acordo com a perspicaz definição de Jacques Rancière. No espetáculo, a concepção platônica do amor, explorada por um método de exposição que alia as técnicas da discussão e do discurso, está essencialmente preservada, mas ela se deixa entremear o tempo todo com as concepções antropofágicas do teatro, da política e da cultura que o Oficina vem defendendo há tantas décadas. Assim, ao racionalismo de um pensador que influenciou inequivocamente a filosofia, a ciência e a educação no Ocidente alia-se – em uma bem-urdida trama de saberes do passado e de reflexões sobre o presente – o dionisismo irrefreável de um diretor a quem também se podem imputar os epítetos de Iaco, Brômio ou Zagreu, posto tratar-se de um avatar, entre nós, do próprio deus.

Engana-se, entretanto, quem se deixa ofuscar primordialmente pelos elementos festivos, desabridos, carnavalescos que emanam das encenações do Oficina e alimentam certa mística em torno do grupo, simpática, porém, como toda profissão de fé exige, limitada e limitadora. O método de trabalho que Zé Celso imprime à companhia em momento algum dispensa a compreensão profunda das palavras que estão sendo ditas e um exercício rigoroso das formas que irão sustentá-las. No ensaio em que o colunista esteve presente, realizado no mês de abril, um pouco antes do fechamento desta edição, era visível a preocupação do diretor com a execução técnica e bem-acabada das ideias e das imagens pelas quais o espetáculo transita. Delicadeza, cadência, ritmo, escuta interior e exterior eram as ações que Zé Celso mais demandava de seus atores – submetidos a sucessivas repetições de cenas, gestos e inflexões. Há um tênue, mas firme cinzel nas mãos do diretor, responsável por extrair da densidade das matérias socrática e platônica toda a maleabilidade de significações nelas implícita.

Os momentos mais penetrantes em que a Grécia de outrora se encontra com o Brasil que nos rodeia ocorrem em duas instâncias que dão suporte ao texto original. Em primeiro lugar, se O banquete é, como postulam os comentadores, a comprovação da precedência da filosofia sobre a poesia, como Platão defende na República, o certo é que para atingir tal estágio será necessário que a filosofia aprenda a se expressar por meio da grande inventividade que pauta a poesia. Assim é que Um banquete de gala orgiástico! configura-se um espetáculo de grande beleza poética, seja pela presença da musicalidade lírica e ditirâmbica que lhe dá constante suporte, seja pela força da grande imaginação criativa que envolve o emblemático edifício teatral concebido por Lina Bo Bardi – ele também uma peça de resistência lírica contra o bruto automatismo das edificações da cidade.

Apolíneo e dionisíaco

Em segundo plano, porque tanto para Platão como para o Oficina, impulso e entusiasmo são elementos fundamentais. Em Paideia: a formação do homem grego, o eminente helenista alemão de cuja epígrafe se vale o presente texto afirma: “… Platão obriga as duas forças, Eros e Dioniso, a se colocarem a serviço da sua ideia. Anima-o a certeza de que filosofia infunde sentido novo a tudo o que vive e tudo converte em valores positivos, mesmo aquilo que já bordejava a zona de perigo. Atreve-se a instalar este espírito em toda a realidade circundante e está certo de que deste modo afluirão à sua paideia todas aquelas energias naturais e instintivas que de outra maneira teria de combater em vão. Na sua teoria do eros lança uma audaciosa ponte sobre o abismo que separa o apolíneo do dionisíaco. Ele julga que, sem o impulso e o entusiasmo inesgotáveis e incessantes renovados das forças irracionais do Homem, jamais será possível atingir o cume daquela transfiguração suprema que atinge o espírito, quando este contempla a ideia do Belo”.

Dentre as inúmeras possibilidades de fruição deste orgiástico banquete, duas parecem inquestionáveis ao espectador: de um lado, ele haverá de reconhecer um Oficina apolíneo tão bom e consistente quanto o Oficina dionisíaco que constantemente lhe faz sombra; de outro, compreenderá, com a fecundidade das verdadeiras proposições éticas, que o amor e a amizade são as formas fundamentais que dão base à convivência humana, esteja uma comunidade passando por uma fase de equilibrada alegria, esteja atravessando ela um momento de graves e dramáticas cisões.


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