Érico Veríssimo: tosca e carnívora

Érico Veríssimo: tosca e carnívora

O tempo e o vento não pode ser uma epopéia; seu resultado final é uma crônica da decadência e reflete, num jogo de espelhos, por um lado, a crise da democracia, do liberalismo clássico e, por outro lado, o triunfo das ideologias autoritárias

Erico Verissimo costumava dizer que havia pretendido “o corte transversal duma sociedade”. Daí o traço realista dos romances que escreveu a partir dos anos 1930, quer se observe o retrato da classe média em Caminhos cruzados, quer se verifique o compromisso declaradamente político de Saga. Essa era também a inclinação da literatura brasileira na época, protagonizada por Lins do Rego, Jorge Amado ou, se buscarmos um patamar de excelência, Graciliano Ramos, de São Bernardo e Vidas secas. No caso de Verissimo, o ponto forte de seu projeto literário se ofereceu em 1949 com a publicação da primeira parte de O tempo e o vento.

Trata-se preliminarmente da nomeação de uma “sociedade tosca e carnívora”, para usarmos a expressão do próprio romancista. No extremo meridional do Brasil aos vastos campos abrigavam a propriedade rural e o tipo inconfundível que a imaginação coletiva já transformara em um ser bifronte, pastor e guerreiro: o gaúcho.

Ressalvada a tentativa de José de Alencar no século anterior e a de Simões Lopes Neto, que ficou circunscrito nos limites regionais, o gaúcho ainda não alcançara a cidadania no quadro da nossa prosa de ficção. Ao abrigá-lo nas páginas de O Continente, o narrador estabelece uma perspectiva nítida. Quer vê-lo em um arco de duzentos anos, cujas datas matrizes residem em 1745 (quando as missões jesuíticas se espalham às margens do rio Uruguai) e 1945 (exato ano da queda de Getúlio Vargas e do chamado Estado Novo). Ampliou-se, assim, a dimensão dos primeiros livros. O tempo e o vento é romance histórico intencionalmente datado. Dividido em três partes – O Continente, O Retrato e O Arquipélago –, suas 2 mil páginas só estarão conclusas em 1962.

A narrativa apresenta-se sob um duplo signo: inscreve a crônica duma região e nela quer instaurar uma visão da História, que aqui comparece com letra maiúscula.

Erico Verissimo tinha ao seu alcance matéria riquíssima que a literatura ainda não havia explorado em grau de sufi-ciência. A fronteira meridional do país foi a última a ser fixada; era uma raia móvel, disputada entre lusos e castelhanos, demarcando enfim um território irrigado por guerras ao estrangeiro e revoluções separatistas. Foi sobre esse cenário que se desenharam os dois arquétipos tão definitivos quanto indispensáveis à arquitetura de O tempo e o vento.

Sobressaindo numa quantidade verdadeiramente impressionante de personagens, algumas decalcadas sobre figuras reais e outras puramente imaginárias, o Capitão Rodrigo Cambará impõe-se como o protótipo do guerreiro desassombrado, irre-dutível na expansão de sua liberdade, extravagante e desabusado. Retirando-o da tradição oral, em que circulava pela palavra dos can-tadores, o escritor plasmou-o como uma força horizontal, impelida no tropel dos combates e das cavalhadas. É uma força primária e na sua sucessão desfilam os homens que forjaram a Província de São Pedro, velhos caudilhos e chefes políticos.

No outro extremo aparece, entretanto, uma força vertical, também ela legada pela tradição. Está formada pelas mulheres de uma estirpe que inaugura em Ana Terra, prossegue em Bibiana e vem até Maria Valéria, Flora e Sílvia. Os homens estraçalham-se nos combates infindáveis, mas elas permanecem no Sobrado e, no fundo, são elas que garantem a continuidade da existência. Constituem a perseverança e a resistência.

Entre esses dois pólos, o narrador não vacila. Estará sempre no partido de Ana Terra, manifestando aberta preferência por suas personagens femininas. E disso depende toda a complexa engrenagem que aciona o romance. Ao observar já nos seus dias a face da história, ele dirá sem meias palavras e para desgosto do machismo sobrevivente que, sem as mulheres, não existiria o Rio Grande; e logo acrescenta que “elas eram o chão firme que os heróis pisavam”.

Essa perspectiva acaba por relativizar o próprio “heroísmo” e, assim, o conjunto das tradições provinciais que estão em pauta. Ora, aqui interessa ver a história numa rigorosa dialética entre o transitório e o permanente, pois não é outra a sugestão do próprio título da obra de Verissimo e da respectiva epígrafe que o acompanha, colhida no texto do Eclesiastes. Os arquétipos do masculino e do feminino – traduzidos como destruição e preservação – constituem a sua expressão simbólica. Por isso mesmo, a vila imaginária de Santa Fé, onde transcorre grande parte das ações de Terras e Cambarás, não é apenas o lugar privilegiado que identifica uma dada região. Nela está espelhada uma imago mundi, isto é, a visão do mundo oferecida pelo narrador.

O tempo e o vento define-se como um romance de fundação, certamente; retroage aos princípios de uma família e ao cenário primordial duma sociedade. Mas não é, em nenhuma hipótese, uma epopéia e menos ainda um canto de louvor aos feitos guerreiros. A nossa leitura não pode ser reducionista e limitar-se tão-só ao primeiro volume, O Continente, talvez o único a ser atravessado por certo sopro épico ao deitar suas raízes em um tempo remoto. Teremos de considerar toda a extensão da obra. A partir de O Retrato e principalmente em O Arquipélago as ações estão ancoradas já no século 20 e a descendência dos fundadores ultrapassa as divisas paroquiais.

O segundo Rodrigo Cambará acompanha Getúlio Vargas à capital do país, no rastro da Revolução de 30, e empalma o poder político. Erico Verissimo mostrou a onda da história já espraiada nos seus dias e, dotado de serena ironia, não fez concessões. Ele dirá que, ao contrário do Capitão Rodrigo, que arremetia contra as cidadelas castelhanas, seu descendente, o Doutor Rodrigo Cambará, assaltou os cartórios do Rio de Janeiro, sob a proteção generosa da ditadura. É a história do Brasil contemporâneo que entra em julgamento.

Portanto, o que se lê na totalidade de O tempo e o vento não pode ser uma epopéia; seu resultado final é uma crônica da decadência, a falência moral dos Cambará. Aí também se reflete, num jogo de espelhos, por um lado, a crise da democracia, do liberalismo clássico e, por outro lado, o triunfo das ideologias autoritárias, que o escritor substantiva como “o horror moderno”. Sob esse ângulo, a ditadura getulista e sua blindagem política sugerem a desgraça da última geração dos Cambará, engolfados todos em uma derrocada, quando duzentos anos transcorreram desde a fundação do continente. Mas esse também é o exato ponto de partida para uma crítica à maldição de nosso tempo: a privação da liberdade. Autodefindo-se na condição de “um contador de histórias”, o narrador escolhe a mesma posição de suas criaturas imaginárias, Ana Terra e Bibiana. Sua atitude é a resistência; ele será sempre um humanista.

Podemos voltar ao ano emblemático de 1949, marco inaugural de O tempo e o vento, para relacioná-lo a dois acontecimentos muito próximos. Em 1953, Graciliano Ramos publicará o primeiro volume das Memórias do cárcere e, logo no ano seguinte, Jorge Amado dará início a Os subterrâneos da liberdade. Assinalava-se assim a metade de um século e sua trágica herança. Os três textos instalam um processo que não é outro senão o da sociedade brasileira buscando “enxergar pedaços de verdade nos absurdos mais claros”, expressão lapidar de Graciliano.

Erico Verissimo, por sua parte, conduziu os “heróis” de O Continente até o limiar de nossa época, observando a sua degradação. Aqui, a ficção incide sobre a mesma realidade que lhe deu origem para, verbalizando-a, melhor iluminá-la ao misturar livremente figuras reais e personagens imaginárias. Então, a epopéia se faz romance ao completar-se “o corte transversal duma sociedade”, porque tal ocorre no cruzamento intencional entre a história e a literatura. A originalidade do escritor não residiu propriamente na redação do romance histórico, praticada desde o Romantismo, mas no fato de ter obtido a chave de sua resolução formal, que, fossem quais fossem os antecedentes, não havia sido encontrada até então.

A malha dos relacionamentos pode ser ampliada se considerarmos a literatura do nosso tempo. Um pouco antes do aparecimento de O Continente, Miguel Angel Astúrias havia publicado O Senhor Presidente, colocando a ficção latino-americana na crista da onda. Simultaneamente, surge O reino deste mundo, do cubano Alejo Carpentier. Pouco mais adiante,

O outono do patriarca, de Gabriel García Márquez, e Eu, o supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos. Quero dizer: num mesmo período, a decifração e a representação da história propuseram um desafio crucial aos escritores da América Latina. Foi justamente aí que se rompeu o subdesenvolvimento cultural nesses e noutros textos paradigmáticos da modernidade. Será interessante projetar a contribuição de Erico Verissimo nesse panorama.

Ao propor o modelo do romance histórico brasileiro, O tempo e o vento desempenha um papel essencial em nosso diálogo com a literatura ocidental.

Flávio Loureiro Chaves
doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP),  coordenador  do  Programa de Pós-graduação em Letras e Cultura Regional da Universidade de Caxias do Sul; professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade Federal de Santa Maria, é autor de Erico Verissimo: o escritor e seu tempo (Editora da Ufrgs, 2001), dentre outras obras

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