No Equador, os demônios da violência na prisão se precipitam

No Equador, os demônios da violência na prisão se precipitam
No Equador, o massacre é entre os homens, mas as agredidas também são as mulheres que se encarregam de costurar o tecido social (Foto: Reuters)

 

A pandemia fez explodir o inferno que encerram as prisões do Equador. A ostentação alegórica de cadáveres, órgãos e sangue derramado coroou o poder de matar das máfias, que em fevereiro passado, de forma sinistra e diante dos olhos de um país atônito, eliminou 81 homens nas principais prisões do país. Rituais de terror e competição masculina marcaram a capacidade de governar e controlar o território por narcoempresários às custas do sacrifício de homens absolutamente empobrecidos, usando e zombando da ineficácia estatal.

Perplexas, com dor e com medo, nós, companheiras presas, mulheres ex-encarceradas, amigas e familiares de pessoas na prisão, procuramos compreender. E o fazemos do nosso ponto de vista: o de pessoas penalizadas por estarem vinculadas a gente presa sem condenação, o de mulheres presas em pavilhões femininos organizados por lógicas diferentes daquelas que possibilitaram os massacres. A nossa é uma perspectiva feminista, atenta à existência de mulheres e dissidentes de gênero como sujeitos singulares, mas também aos grupos familiares, de bairro e comunitários produzidos e reproduzidos pelo trabalho feminizado de construção de tecidos sociais. E nossa perspectiva é histórica, porque o estado penal dominou as nossas vidas por gerações.

O instituto de pesquisa Kaleidos do Equador registrou um aumento exponencial de mortes violentas nas prisões após as transferências maciças da população carcerária para as modernas cidades penais construídas pelo governo progressista da Revolução Cidadã. O Plano Nacional de Desenvolvimento da época, foi projetado para superar a superlotação e equalizar as condições de vida dos presos, modernizando o sistema prisional após anos de abandono do Estado. Mas, como não poderia ser de outra forma, o novo sistema de gestão materializou-se como um desejo de vigilância totalizadora, de isolamento e alienação em monumentais presídios de alta segurança. Novidade em nosso país, essas cidades carcerárias eram salpicadas de prédios antigos permeáveis ​​destinados ao confinamento penitenciário, quase todos localizados nas cidades e abandonados à cogestão da pena entre funcionários mal pagos, pessoas presas que tecem suas redes de apoio social e comerciantes da economia popular de rua.

Nas novas e herméticas prisões localizadas longe dos centros populosos, água, comida, saúde, lápis, papel, tornaram-se escassos. A distância e as medidas de segurança expulsaram organizações da sociedade civil, universidades, comerciantes, instituições de caridade, familiares e amigxs que costumavam ir às prisões desordenadas com fluência e frequência. Logo, as novíssimas cidades-prisões transbordaram, as necessidades básicas tornaram-se luxos que os mais experientes e mais contatados usavam para extorquir dinheiro dos mais frágeis, controlando a circulação dos bens e as condições de vida.

Mães, esposas, filhas, irmãs, amantes, amigas, visitantes acossadas ​​por funcionários tiveram que percorrer longas distâncias para tentar dar continuidade aos laços e, por meio deles, à humanidade das pessoas presas. A distância era um talho que abria e aprofundava a ferida no tecido afetivo, o fechamento era um muro que expulsava a ética do cuidado que a duras penas era sustentada pelos familiares. “O martírio não reabilita”, proclamamos familiares e amigas das pessoas presas, alertando que as reformas do Sistema de Justiça e do Código Penal Integral (2014) só garantiram penas mais longas em locais mais desumanizados.

 

A definição da justiça como
punição, paradoxalmente
exercida pelo governo
progressista, consolidou
um novo regime que pretendia
disciplinar a preguiça. Em um
gesto de populismo punitivo,
o presidente Rafael Correa se
gabou de sua mão pesada.

 

 

Ele afirmou então que “os privados de liberdade devem compreender que não estão de férias”. Dessa forma, o Estado consolidou um ecossistema de tortura cotidiana, um ambiente fechado e desumanizado onde tudo pode acontecer. Dois anos após a inauguração dos novos presídios, em 2016, um vídeo que circulou nas redes sociais chocou o país. Mostrou como um grupo de agentes penitenciários violentava centenas de presos no Centro Regional de Turi. A queixa não foi punida porque os funcionários estavam encapuzados e seus rostos não podiam ser vistos. Esse e tantos outros fatos consagraram a excepcionalidade do sistema prisional, parte indissociável, tolerada e até estimulada pela disseminação da narcoeconomia.

Durante o governo neoliberal de Moreno, o confinamento da pandemia, os cortes no orçamento, a crise de fome, doença e desespero, bem como os anos de cumplicidade masculina entre funcionários e criminosos experientes, desencadearam a guerra latente. Declarações oficiais dos tabloides culpam a infiltração de cartéis colombianos e mexicanos pelo massacre. O que não se diz é que o terreno estava preparado para o massacre e que o projeto modernizador do confinamento e da economia transnacional das drogas criaram as condições de cooperação para o que aconteceu. Paradoxalmente, a “centralidade estatal” promovida pelo governo progressista da Revolução Cidadã, que varreu o difamado sistema anterior, mas curiosamente mais humano, exacerbou a violência.

Os membros da família clamam pelos nomes de seus mortos. Seus filhos, sacrificados à crescente violência paralegal, desmembrados durante a guerra. Esses homens, bucha de canhão para uma economia patriarcal e racista, a maioria deles condenada por crimes de pobreza, foram devorados pelo inferno da prisão. O massacre é entre os homens, mas as agredidas também somos as populações das quais foram dilacerados e as mulheres que se encarregam de costurar o tecido social danificado.

Após o furto milionário de suprimentos médicos por funcionários do Estado em diversos centros médicos, prática normalizada em um país onde o sistema de saúde, além de estar condenado à extinção, faz parte do negócio com a vida, os presos condenados ficaram confinados em seus lares ou foram levados para prisões femininas. Mais uma vez, o que este massacre revela é que no Equador, como em muitos outros lugares da América Latina, a vida das pessoas absolutamente empobrecidas se tornou descartável e que essa é uma guerra contra as mulheres que assumimos o sustento da vida.

Este texto é resultado de
uma parceria entre a Revista
Cult e a La Laboratoria:
espacio transnacional de
investigación feminista

 


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