Carlos Reichenbach – lição das coisas

Carlos Reichenbach – lição das coisas

O cineasta Carlos Reichenbach mostra por que a capital paulista é todo um gênero cinematográfico
São Paulo nunca é o que nos parece, assim também é o cinema de Carlos Reichenbach. Como um típico paulistano, ele nasceu em outro lugar: Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, mas é o mais paulista dos cineastas vivos. Discípulo de Luís Sérgio Person, ele conta como conheceu a cidade pelas rodas de uma bicicleta. Para os desavisados, poderíamos criar relações com E.T., de Steven Spielberg, e ver a bicicleta como instrumento de liberdade, tema tão caro ao cineasta. Mas nada nos é como nos parece. E o filme realmente apropriado para ilustrar esse retrato do artista quando jovem é o magnífico O grande momento, de Roberto Santos. O filme tem uma seqüência de total felicidade quando Gianfrancesco Guarnieri, o protagonista, sai com sua bicicleta pelas ruas da periferia de São Paulo.

A periferia de São Paulo volta a ser tema de seu mais novo filme. Garotas do ABC foi apresentado no último Festival de Brasília. Mas Carlão, como é conhecido no meio cinematográfico, não pára. Ele também está finalizando outro filme com Beth Faria, Bens confiscados. Para a CULT, o diretor de 14 longas, 5 curtas e 4 episódios fala de sua relação com a cidade e com o cinema e como essas paixões não podem nunca estar desassociadas.

O início
Meu pai é editor e meu avô veio da Alemanha, de Leipzig, a convite do governo brasileiro, na virada do século, para montar a primeira litografia no Brasil. Ele e o sócio montaram uma empresa que se chamava Hartmann e Reichenbach, logo no começo do século, e ensinaram o pessoal a lidar com litografia, a impressão em pedra. Essa empresa, logo depois, viraria a Companhia Litográfica Ipiranga. Então, na verdade, eu nasci pra ser industrial gráfico, eu nasci pra ser editor. Esse desvio de rota aconteceu quando meu pai teve o segundo infarto, em 1959. Meu pai passou quase seis meses debaixo de um balão de oxigênio, porque tinha tido o segundo infarto e não podia fazer muito barulho em casa. Eu fui estudar em Rio Claro, em um colégio interno. Então, por duas razões eu fui estudar lá: para estudar alemão como língua corrente e um pouco para que a casa ficasse em silêncio. Era um preparo para me mandarem pra Alemanha estudar artes gráficas. Um dia antes de eu fazer 14 anos, meu pai morreu, em 13 de julho de 1960.

O Japão paulistano e a crítica
Desde 1960, 61, eu tinha interesse pela cultura japonesa. De 62 até 65, freqüentei templo zen-budista e tinha uma ligação muito forte com o cinema japonês. Era assíduo freqüentador dos cinemas da Liberdade – o Cine Niterói, o Cine Nippon, o Cine Jóia, o Cine Nikatso – da Aliança Brasil – Japão, onde assisti ao primeiro filme japonês sem legendas da minha vida, e que mudou minha vida – O intendente Sansho, de [Kenji] Mizoguchi. Teve um impacto tão grande pra mim… Até hoje!

O São Paulo Shinbum foi um pouco mais para frente. O que me levou ao jornal foi a amizade com dois críticos do São Paulo Shinbum. O Orlando Parolini, que era o verdadeiro crítico de cinema japonês, e o Jairo Ferreira, que era uma espécie de discípulo do Orlando Parolini. O Parolini eu já conhecia, porque na verdade o via muito no cinema japonês. Então tinha esse convívio, tomávamos saquê juntos. Eu conheci Jairo Ferreira um pouco antes, no Fotocineclube Bandeirantes, que ficava na rua Avanhandava, perto da 9 de Julho. Era onde o pessoal do 8 mm se encontrava. Tinha um festival do 8 mm lá, organizado pelo Adhemar Carvalho, que era crítico de cinema na época. Eu lembro de ter saído de uma sessão de premiação e de não ter conseguido deixar de exprimir uma perplexidade. E lembro de ter saído aos berros de uma premiação que achei absolutamente injusta e burra. E o Jairo também, e a gente se encontrou aos berros. Acabamos saindo de lá e fomos para o bar, e nossa amizade começou nesse dia.

Underground
Foi exatamente o fato de ter uma câmera de 16 mm e saber fotografar em 16 mm, ainda como aluno do primeiro ano da São Luiz, que me fez ir fotografar o primeiro underground feito no Brasil, que se chamaria Via Sacra. É um filme praticamente todo rodado no centro de São Paulo. Um filme que tinha a cara de São Paulo e, sobretudo, dos andarilhos, como o poeta Orlando Parolini. Um filme muito audacioso para a época, com cenas de nudez frontal, cenas de homossexualismo explícito, cenas de homem com homem, homem com mulher, um verdadeiro festim, uma orgia movida a sexo e sangue, que na época, para 1965, era uma coisa muito audaciosa. Algumas dessas filmagens acabavam em juizado de menores, na cadeia, onde fomos descobrir que a filha de um delegado estava participando do filme. Foi um filme que, na verdade, depois, com a repressão da ditadura, causou uma paranóia muito grande no diretor do filme, que picotou todo o negativo, fotograma por fotograma. Entrou em crise e destruiu o negativo, não existe registro, a não ser o fotográfico, desse que seria o primeiro e grande filme marginal e underground feito no Brasil. Mesmo depois de ter terminado o movimento underground, não lembro de ter visto imagens tão ousadas, impactantes, violentas e uma forma de filmar São Paulo tão particular. Embora não tivesse o desejo de imitar o cinema americano, ele indiscutivelmente remete aos filmes feitos em Nova York daquela época, o cinema feito na rua mesmo, com personagens da rua, e no meio disso tudo um Cristo sendo crucificado por uma horda de burgueses, caretas e pessoas que de uma certa forma representavam o poder. Havia cenas de canibalismo explícito… Nesse filme há uma seqüência notável, porque conseguiu pôr em um apartamento do Glicério quase 40 pessoas, mal cabia a câmera lá dentro. Era uma coisa bru-tal-mente coletiva, de figuras taradas e de uma au–dácia que na verdade tinha muito a ver com o cinema underground como um todo americano, mas também tinha muito a ver com o teatro do absurdo.

Cinefilia de bairro
Via muito cinema. Eu gostava muito… Vou explicar um pouco a minha vida. Meus pais tinham uma vida tranqüila, de classe média alta. Daí, com o baque que meu pai sofreu, a gente se mudou do Jardim Paulistano para o Jabaquara, que na época era quase um bairro periférico, era bairro de alemão, mas era periferia. Foi uma mudança de nível social brutal.

Eu lembro que a minha infância era andar de bicicleta por São Paulo e era assim, sair do Jabaquara para ir à Vila Maria. Eu acabava com as rodas da bicicleta. Conheci São Paulo através dos cinemas de periferia, os chamados cinemas de bairro. Isso para você imaginar que na década de 50 você conseguia andar de bicicleta sem o menor perigo. Hoje é um risco você sair de casa três quarteirões de bicicleta. Mas, naquela época, quantas vezes a gente foi até a Vila Carrão! Às vezes, ficava uma hora e meia para chegar e uma hora e meia para poder voltar. E uma das coisas que me levava a fazer esse trajeto era o meu grande prazer em conhecer os cinemas. O que me dava maior prazer era conhecer o Cine Júpiter, na Penha, conhecer o Cine Carrão, na Vila Carrão, o Cine Monumento, no caminho para Vila Maria, o Cine Pérola, na Vila Maria propriamente dita, que era longe pra caramba… em Sapopemba, eu conheci o Cine Sapopemba. Eu tive a primazia de conhecer São Paulo de cabo a rabo e, durante toda a década de 50, de ter conhecido todos os cinemas de bairro de São Paulo. Sempre conseguia um jeito de entrar no cinema com a bicicleta. Lembro de ver Vertigo e Ladrão de casaca,  com a bicicleta do lado, no Cine Pérola, na Vila Maria, porque sempre tinha sessão dupla de tarde e voltava para casa ao cair da noite. Essas idas aos cinemas de bairro era como se estivesse indo para a Ilha do tesouro. O cinema, indiscutivelmente, era a razão para eu conhecer cada bairro de São Paulo, cada reduto da cidade. Foi uma das coisas mais prazerosas da minha vida. O grande prazer de ir ao cinema em São Paulo, na Praça da Sé, era ir ao único cinema que passava três filmes, o Cine Mundi, e era subterrâneo. Era um cinema que ficava ao lado do Cine Santa Helena. O Cine Santa Helena era um cinema que dava um pouco de medo porque corria um boato que encontraram um cara morto lá, então virou assim uma coisa meio mitológica [risos]. Tinha um clima de horror. Mas, não importa, ao lado tinha um cinema muito mais barato que era um cinema canhestro, mas tinha uma grande vantagem, pois passava três filmes por dia. Então, eu lembro de ter trocado minhas viagens de bicicleta pelas minhas sessões no Cine Mundi.

Para maiores de 18
Os cinemas todos do centro eu conheci quando eu estudava no Porto Seguro, que fica na Praça Roosevelt. Então, na saída, quando liberavam para voltar mais tarde, eu freqüentava todos os cinemas do centro. Eu me lembro de que eu não conhecia era o Cine Broadway, era um cinema, naquela época não tinha muito aquilo que tem hoje, aquele “cinema de adulto”. Tinha, na década de 50, o Cine Jussara, que passava filmes para maiores de 18 anos, mas esse não dava nem pra entrar, porque naquela época alguns cinemas do centro obrigavam o cara a entrar apenas se estivesse de terno. E tinha o comando do Juizado de Menores na porta dos cinemas. Então eu nunca me arrisquei a entrar no cinema para maiores. Eu lembro de ter arriscado aos 14 anos e de ter ido com a minha mãe ver filmes, porque depois que meu pai faleceu, eu virei o grande companheiro dela. Na minha memória, acho que a última vez que fui ao cinema com o meu pai ele me levou no Cine Broadway, que ficava na avenida São João, perto de onde fica hoje essas casas de mate. E eu nunca vou me esquecer porque fomos ver um filme que me marcou muito que era Fúria de uma região perdida. O filme era sobre um louva-a-deus gigantesco que ficava atacando as pessoas, grudava nos aviões e eles não conseguiam voar. Todas essas coisas a gente consegue reciclar futuramente nos nossos filmes e estão “linkadas” com essa idéia de ser o último filme que vi com o meu pai antes de ele morrer. 

Memória proustiana
Óbvio que esses registros todos aparecem futuramente nos filmes. Talvez o mais nítido deles é minha aproximação, por exemplo, com a cidade de Dois Córregos, que eu conheci no ano em que perdi meu pai. Eu lembro de um amigo ter me levado para cidade de Dois Córregos e daquela imagem da estação de trem, porque sempre tive uma fixação muito grande por estação de trem. Tem cineastas, como o [Jean] Renoir, o [Valério] Zurlini, que sempre filmam estações de maneira magnífica, e há essa marca das estações, que são lugares a que as pessoas vão, mas dos quais não voltam, essa é uma marca que me ficou da estação de Dois Córregos, que é uma reprodução da estação de Marselha. É uma coisa que me marcou imageticamente e relaciona-se com a perda do meu pai. Mas não acredito nesse negócio de angústia da influência. O prazer é tratar de todas as delícias da influência. Viram parte integrante da obra, disparam o gatilho do processo criativo. Uma coisa fascinante no ato de escrever, e isso eu posso falar porque escrevo meus roteiros, é você deixar se influenciar pelo que está ao seu redor. O que torna fascinante você pensar em um novo filme é deixar ser tomado pelo que você está lendo e ouvindo. Ser comido pelo que está consumindo, culturalmente falando, a delícia de reaver os seus gostos. Amo Jorge de Lima, Murilo Mendes e Mário Faustino, que dizia “quando baixa o branco absoluto, abra o livro de seu poeta preferido”. Não como cópia, mas como gatilho, apenas para disparar o imaginário.

Cinema Novo, Cinema Udigrudi?
Toda a minha geração, no fundo, foi influenciada pelo Cinema Novo. Ela, na verdade, queria mudar a história com o cinema, mudar a realidade brasileira com o cinema. Ela acreditava piamente que seria possível mudar a realidade brasileira com o cinema. Nós todos, de uma forma ou de outra, éramos filhos bastardos, ou não, do Cinema Novo. Mas eu não tinha preconceito contra nenhum tipo de filme. Gostava de filme mexicano, que muita gente abominava, lembro que uma das minhas marcas era não ter preconceito com estilo, escola ou gênero de cinema. E tinha o barato de o cinema brasileiro mostrar a mulher que era a sua vizinha, não tinha aquela coisa de ser estrangeiro, você estava vendo uma mulher que você poderia tocar na esquina. Era um diferencial muito evidente, e eu era fascinado pela mulher brasileira. Hoje, olhando com certa distância, o chamado cinema udigrudri, ou pós-novo, ou cinema de invenção, ele, de certa forma, nasceu nos corredores da São Luiz, mais do que na Boca do Lixo. O cinema boca-do-lixo é o tropicalismo levado ao cinema, ou toda aquela fase do desbunde da contracultura, muito movido pelo desencanto pela censura da ditatura, ou porque o cinema brasileiro foi ficando cada vez mais metafórico.

Metrópole
Esses filmes têm a cara de São Paulo, pois eles retratam o embate, o confronto com a cidade. Eles apontavam para a idéia de que a saída, se havia, era antes de mais nada passar pelo asfalto e pela sarjeta, e que o caminho da salvação seria a sarjeta. Não é à toa que muitos desses filmes terminam em uma estrada vazia, com personagens à deriva, que significa uma falta de perspectiva típica do final dos anos 60. Mas é muito curioso que 80% desses filmes tenha a cidade de São Paulo como cenário. Há um registro permanente de imagens simbólicas, como a rua dos bancos, a rua Boa Vista, em Orgia. Mas a imagem símbolo é a da Galeria Metrópole, que está em quase todos os filmes importantes daquela época, que sempre têm um plano da galeria que representa os anos 60 à perfeição, todos nós freqüentávamos, de loucos a tiras, bandidos, intelectuais, beatniks, os artistas… A galeria é uma imagem muito presente no cinema brasileiro do final dos anos 60 e começo do 70. Com raras exceções, o meu cenário é sempre São Paulo. E, para mim, o que foi deturpado em São Paulo é o centro de São Paulo, e o que eu gosto de São Paulo é o centro. É um acinte você não cuidar do centro, e é engraçado que o cinema tenha preservado bem a memória do centro.

Person
Meu vínculo com Person faz com que São Paulo seja um personagem integrante desses filmes. Mas tem realmente referências expressas. O Fausto, em Filme demência, quando vai embora de São Paulo, é a música do coral de São Paulo S/A invertida. A saída do personagem de Person é filmada toda de cima para baixo, e minha saída do Fausto é também invertida, filmei tudo de baixo para cima. Os filmes começam idênticos, com uma briga de casal, mas, como meu filme é nos anos 80, uma mulher dos anos 80 não fica caída, ela mete o pé no cara. Esses filmes urbanos dialogam entre si.

Água
A presença da água é a mesma que para Nicholas Ray, no qual a natureza tem uma presença devastadora, ela está na alma dos personagens, ela entra e afeta a vida e o convívio dessas pessoas. E se pensarmos o homem e seus feitos como também pertencentes à natureza, podemos falar de São Paulo nos meus filmes. São Paulo é uma esfinge. É difícil para qualquer pessoa que não morou nem viveu na cidade porque ela é uma esfinge. São Paulo é decifra-me ou devoro-te. É condição para qualquer artista que vive em São Paulo conhecê-la. A filósofa Olgária Mattos fala que “para conhecer São Paulo é preciso se perder em seus contrastes”. Nenhum artista que conhece São Paulo pode passar impune de se perder em São Paulo. Não vale Jardins e Vila Madalena, tem de ter a vivência que tive com a bicicleta.

Vitor Angelo
jornalista e cineasta, autor, entre outros curtas-metragens, de A voz do morto, sobre o cineasta Glauber Rocha, e Do dia em que Macunaíma e Gilberto Freyre visitaram o terreiro da tia Ciata mudando o rumo da nossa história, sobre o nascimento do samba

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Brás – Sotaques e desmemórias (Lourenço Diaféria, Boitempo Editorial, 2002)

São Paulo antigo – 1554 a 1910 (Antonio Egydio Martins, Paz e Terra, 2003)

São Paulo, cidade invisível – Uma reportagem afetiva (Marcílio Godoi, Bom Texto, 2003)

– São Paulo de meus amores (Afonso Schimidt, Paz e Terra, 2003)

– São Paulo nos primeiros anos – 1554 a 1601 (Afonso D´Escragnolle Taunay, Paz e Terra, 2003)

– São Paulo 450 Anos Luz – A redescoberta de uma cidade (Okky de Souza, Cultura Editores, 2003)

– São Paulo – Trajetória de uma cidade: história, imagens e sons (Milton Parron, Nobel, 2003)

– Saudades de São Paulo (Claude Lévi-Strauss, Companhia das Letras, 1996)

– Um homem sem profissão (Oswald de Andrade, Globo, 2002)

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